O conceito de “continuidade de operações”, referido habitualmente como “going concern”, é fundamental para a sustentabilidade das organizações da sociedade civil (OSC), e não só, que dependem de financiamento externo para operar. Ele reflecte a capacidade de estas trabalharem de forma sustentável e contínua. A consideração refere-se à suposição de que uma entidade continuará as suas operações no futuro previsível, sem a intenção ou a necessidade de liquidar ou reduzir significativamente as suas actividades.
Este termo desenvolveu-se ao longo do tempo com a evolução da contabilidade e das práticas financeiras. No entanto, ele tornou-se formalmente reconhecido no início do século XX, especialmente com a publicação de normas contabilísticas e de relato financeiro, que enfatizavam a importância da continuidade de operações de uma entidade. O termo e sua aplicação foram amplamente discutidos em textos contabilísticos e regulatórios, como os princípios contabilísticos geralmente aceites (GAAP) e as normas internacionais de contabilidade (IFRS), que abordam a continuidade das operações como um dos princípios fundamentais na elaboração de demonstrações financeiras.
No caso das OSC, a manifestação do conceito dá-se através de práticas de gestão financeira sólida, diversificação de fontes de financiamento, planificação de longo prazo, transparência e adaptação às mudanças. As considerações de “Continuidade de Operações” são essenciais para garantir que as OSC possam continuar a cumprir as suas missões e atender às necessidades das comunidades em que estão inseridas.
A retirada de doadores afecta directamente as OSC que dependiam do seu apoio, mas também levanta preocupações sobre a possibilidade de um efeito cascata sobre outros doadores, podendo agravar ainda mais a situação financeira dessas organizações. Veja-se o caso recente da Agência de Cooperação dos Estados Unidos da América, a USAID. Este artigo analisa, sem grandes pretensões filosóficas ou deontológicas de qualquer natureza, os desafios e riscos associados, resultantes dessa dinâmica, bem como as implicações para a continuidade das operações das OSC, trazendo algumas estratégias para mitigar riscos.
A relevância dos doadores para as OSC
Os doadores têm sido um pilar de apoio para a maior parte, senão todas as OSC, a operar em Moçambique, fornecendo recursos financeiros e técnicos para a implementação de projectos em diversas áreas críticas como saúde, educação, direitos humanos e desenvolvimento económico. A saída de doadores de programas de cooperação ou de apoio às OSC representa uma perda significativa, não apenas em termos de financiamento, mas também em termos de continuidade das actividades ou da existência dessas entidades, em virtude da inexistência de fontes internas para gerar meios financeiros para as sustentem.
A saída de doadores de programas de cooperação ou de apoio às OSC representa uma perda significativa em termos de financiamento e da sua continuidade
Diversas consequências derivam dessa cessação de apoios, tais como:
1. Perda de recursos financeiros: A saída de doadores pode resultar em cortes drásticos no financiamento, levando muitas OSC a reavaliarem as suas operações ou eventualmente a encerrarem as suas actividades.
2. Efeito cascata nos doadores: A saída de doadores pode desencadear um efeito cascata, em que outros doadores, preocupados com a estabilidade e a continuidade dos projectos, também reconsideram o seu apoio, especialmente quando a ajuda principal vier da entidade que deixa de apoiar, temendo que as suas contribuições não sejam suficientes. Este efeito cascata pode ser exacerbado por factores como:
- Percepções de risco: A percepção de que as OSC estão em dificuldades financeiras pode levar doadores a reconsiderar seu apoio, criando um ciclo de desconfiança.
- Mudanças nas prioridades de financiamento: A saída de um doador pode sinalizar mudanças nas prioridades de financiamento, levando outros a reavaliar as suas próprias estratégias de investimento.
- Fragilidade do ecossistema de doadores: A interdependência entre doadores e OSC significa que a saída de um grande financiador pode desestabilizar todo o ecossistema, afectando não apenas as OSC directamente afectadas, mas também aquelas que dependem de um ambiente de financiamento saudável.
3. Desconfiança e incerteza: A saída de um doador de grande peso, por exemplo, pode gerar desconfiança entre outros financiadores. As OSC podem enfrentar dificuldades em justificar as suas necessidades financeiras e em demonstrar a eficácia dos seus programas, especialmente se a percepção for de que a sustentabilidade é incerta.
4. Aumento da competição por recursos: Com a diminuição do financiamento, as OSC podem entrar numa competição acirrada por recursos limitados dos doadores ainda com disposição de continuar com os programas de apoio. Isso pode levar a uma fragmentação de esforços, em que organizações que antes colaboravam podem tornar-se concorrentes, prejudicando a eficácia geral das iniciativas de desenvolvimento.
Com que estratégias podem as OSC mitigar o risco?
1. Diversificação de Fontes de Financiamento: As OSC devem procurar diversificar as fontes de financiamento, reduzindo a dependência de doadores únicos. Algumas iniciativas:
- Recurso a financiamento público: As OSC podem procurar parcerias com o governo, solicitando subsídios ou financiamentos para projectos específicos que estejam alinhados com as políticas públicas.
- Doações privadas: Estabelecer relações com indivíduos e empresas que possam contribuir financeiramente. Isso pode incluir campanhas de angariação de fundos e eventos solidários.
- Fundos de Fundações: Muitas fundações oferecem financiamento para projectos sociais. As OSC podem identificar fundações que compartilhem objectivos semelhantes e submeter propostas para financiamento.
- Actividades geradoras de receita: As OSC podem desenvolver actividades que gerem receita, como a venda de produtos ou serviços relacionados com a sua missão. Isso pode incluir a realização de cursos, workshops ou consultorias.
- “Crowdfunding”: Utilizar plataformas de financiamento colectivo para mobilizar recursos de um grande número de pessoas, como o Mpesa, Facebook, etc. Essa abordagem pode ser eficaz para projectos específicos.
- Parcerias com o sector privado: Estabelecer parcerias com empresas que desejam apoiar causas sociais, seja através de patrocínios, doações ou programas de responsabilidade social corporativa.
- Programas de membros: Criar um programa de associação onde os membros pagam uma taxa para se juntar à organização e receber benefícios, como acesso a eventos exclusivos ou informações.
- Investimentos de Impacto: Procurar investidores que estejam interessados em financiar projectos que tenham um impacto social positivo, em troca de um retorno financeiro.
- Apoio Internacional: Explorar oportunidades de financiamento de organizações internacionais, agências de desenvolvimento e OSC que actuam em Moçambique.
- Programas de capacitação e formação: Oferecer programas de capacitação e formação para outras OSC, comunidades ou para empresas, cobrando uma taxa pela participação.
2. Fortalecimento da capacidade organizacional: Investir no fortalecimento da capacidade organizacional é crucial. É um pilar fundamental para a sustentabilidade das OSC em Moçambique. Investir nesse fortalecimento envolve diversas áreas críticas que podem influenciar directamente a eficácia e a resiliência das OSC.
Primeiro, a formação em captação de recursos é essencial. Isso capacita as OSC a identificar e aumentar a possibilidade de acesso a novas fontes de financiamento, mas também a desenvolver propostas mais competitivas e alinhadas com as expectativas dos financiadores. A capacitação em gestão financeira é igualmente importante, pois permite que as organizações administrem os seus recursos de maneira eficiente, promovendo a transparência e a prestação de contas, o que é vital para manter a confiança dos doadores e parceiros.

Além disso, a formação em seguimento e avaliação de projectos é crucial para que as OSC possam medir o impacto de suas iniciativas. Ajuda na melhoria contínua dos programas e também fornece dados concretos que podem ser utilizados para atrair novos financiadores, demonstrando a eficácia e a relevância do trabalho realizado.
Outro aspecto importante do fortalecimento da capacidade organizacional é a promoção de uma cultura de aprendizagem contínua dentro da organização. Isso pode incluir a realização de workshops, seminários e intercâmbios de experiências com outras OSC, permitindo que as equipes compartilhem boas práticas e aprendam com os desafios enfrentados por outras organizações.
Além disso, o fortalecimento da capacidade organizacional deve abranger a melhoria das competências de liderança e gestão, assegurando que os líderes das OSC sejam capazes de inspirar e motivar as suas equipas, bem como navegar em ambientes complexos e em constante mudança.
Por fim, a construção de redes e parcerias com outras OSC, sector privado e instituições governamentais pode ampliar o alcance e a eficácia das iniciativas, permitindo a troca de recursos e conhecimentos. Ao investir no fortalecimento da capacidade organizacional, as OSC tornam-se mais resilientes e mais capazes de atender às necessidades das comunidades que servem de maneira eficaz e sustentável.
3. Construção de redes e colaborações: As OSC podem procurar trabalhar em rede, formando colaborações e parcerias que possam aumentar sua visibilidade e atractividade para potenciais doadores. A união de esforços pode resultar em propostas mais robustas e numa maior capacidade de resposta às necessidades da comunidade.
4. Transparência e prestação de contas: Manter altos padrões de transparência e prestação de contas é fundamental para ganhar a confiança de doadores. As OSC devem demonstrar claramente o impacto de seus projectos e a utilização responsável dos recursos.
Em jeito de conclusão, a saída de doadores pode representar um desafio significativo para as organizações da sociedade civil, colocando em risco a continuidade das suas operações. A possibilidade de um efeito cascata, que leve à saída de outros doadores, agrava ainda mais a situação e torna a necessidade de estratégias de mitigação desse risco ainda mais urgente. Mas com a implementação de abordagens adequadas, as OSC podem sobreviver, adaptar-se e prosperar num ambiente de financiamento em constante mudança, garantindo que continuem a desempenhar um papel vital no desenvolvimento social e económico e a aumentar o impacto social e económico dos projectos que realizam e monitorizam.