A história é verídica – como aliás é tudo o que escrevemos, mas, talvez desta vez, o tema vá ressoar mais para muitos e, consequentemente, gere um debate na secção de comentários na versão digital – mas não se trata de qualquer denúncia, nem pretensão de responsabilizar alguém. É apenas um testemunho de uma situação cujo “timing” não poderia ter sido mais propício.
Há alguns meses fizemos, na Conservatória do Registo das Entidades Legais (CREL), em Maputo, a reserva do nome de uma empresa que queríamos constituir para um novo projecto em que estamos a trabalhar. Após termos concluído a tramitação da nossa documentação interna, voltámos à CREL para finalmente fazer o registo da referida
empresa. Nesse momento, constatámos que, entretanto, uma empresa exactamente com o mesmo nome havia sido constituída na CREL da Beira, enquanto a nossa reserva estava vigente. Questionámos, reclamámos, mas o facto era que,independentemente da razão dos factos, a empresa da Beira já estava até constituída com aquele que era o “nosso” nome. Possível falta de criatividade nossa, não obstante, este embaraço poderia ter sido muito mais custoso para nós, quer em tempo, quer em dinheiro.
A nossa empresa já está, entretanto, criada, mas o que nos remete ao tema é a questão estrutural e não apenas o nosso problema em particular.
Este episódio é um de tantos outros que ilustram perfeitamente como Moçambique continua a enfrentar obstáculos consideráveis ao desenvolvimento, incluindo um vasto sector informal, baixos níveis de bancarização rural e uma situação fiscal deficitária que limita a capacidade de investimento
do Estado. A importância da digitalização do País ficou evidente no discurso de tomada de posse do Presidente Chapo e a intenção foi comprovada com a criação, pela primeira vez, de um pelouro ministerial responsável por essa meta. Num fórum recente, intitulado “Transformação Digital nos Processos Legais em Moçambique”, Lourino Chemane, presidente do Conselho de Administração do Instituto Nacional de Tecnologias de Informação e Comunicação (INTIC), destacou a determinação do Governo em modernizar os processos administrativos e partilhou algumas iniciativas em curso nesta área. São passos importantes, mas como pode o sector privado contribuir para acelerar a materialização desta visão?
A digitalização surge como uma oportunidade transformadora para ultrapassar estes obstáculos e impulsionar o desenvolvimento económico, particularmente através da formalização do sector informal e da expansão da inclusão financeira. Este artigo analisa o panorama económico de Moçambique em comparação com países em estado similar de desenvolvimento e propõe medidas concretas para implementar soluções digitais com o mínimo impacto orçamental para o Estado.
Panorama em Moçambique
A economia moçambicana tem apresentado um crescimento moderado nos últimos anos que não tem sido inclusivo, com disparidades regionais acentuadas e uma grande parte da população ainda a viver abaixo do limiar da pobreza.
A importância da digitalização do País ficou evidente no discurso de tomada de posse do Presidente Chapo e a intenção foi comprovada com a criação, pela primeira vez, de um pelouro ministerial responsável por essa meta
O sector público enfrenta desafios significativos, incluindo ineficiência administrativa, corrupção e falta de transparência. Estes factores têm dificultado o desenvolvimento económico e desencorajado potenciais investidores. A burocracia excessiva, os processos administrativos complexos, a lentidão da justiça e a falta de informatização dos serviços contribuem para um ambiente de negócios desafiante. No entanto, o que merece maior atenção é um relatório do Departamento de Economia e Assuntos Sociais das Nações Unidas (UNDESA, 2024), que destaca que o País tem vindo a descer consistentemente no ranking do E-Government Survey, desde 2020. É caso para dizer: “quem não avança, retrocede”, pois estamos, assim, a perder terreno em relação a outros países.
A. Exemplos de Estratégias para Atrair Investimento na Digitalização
1. Modernização da Administração Pública.
A digitalização da administração pública representa uma oportunidade crucial para melhorar a eficiência governamental e reduzir custos operacionais. A implementação de sistemas integrados de gestão financeira pode contribuir significativamente para a eliminação dos “salários-fantasma”, um problema que drena recursos públicos consideráveis. Estudos indicam que países como o Ruanda conseguiram reduzir até 20% das despesas com pessoal após a implementação de sistemas digitais de gestão de recursos humanos e folhas de pagamento.
Um aspecto crítico e frequentemente negligenciado é a segurança da informação governamental. Actualmente, muitos funcionários públicos utilizam serviços de e-mail pessoais como Yahoo e Hotmail para comunicações oficiais, comprometendo informações sensíveis do Estado. Esta prática expõe o Governo a riscos significativos de ciberataques, espionagem e violações
de dados. A implementação de um sistema de email governamental seguro, com encriptação de ponta a ponta e autenticação de dois factores, é uma prioridade urgente. Países como o Brasil implementaram o sistema Gov.br, que fornece e-mails oficiais e seguros para todos os funcionários públicos, garantindo que as comunicações permaneçam seguras.
A criação de um portal único de serviços governamentais, semelhante ao e-Estonia (na Estónia), permitiria aos cidadãos e empresas aceder a diversos serviços públicos através de uma plataforma integrada, reduzindo a burocracia e aumentando a transparência. Este tipo de iniciativa não só melhora a eficiência administrativa, como também reduz
riscos de corrupção.
Além disso, é essencial desenvolver uma infra-estrutura centralizada de armazenamento de dados governamentais com protocolos de segurança robustos e políticas claras de acesso à informação. O Botsuana implementou, com sucesso, um sistema centralizado de gestão que melhorou a segurança da informação e facilitou a partilha de dados entre departamentos, aumentando a eficiência.
2. Tecnologia Blockchain para Certificação de Documentos
A implementação da tecnologia blockchain para a certificação de documentos civis representa uma oportunidade significativa para Moçambique. Esta tecnologia permite criar registos imutáveis e transparentes, dificultando a falsificação de documentos e reduzindo a corrupção. A sua aplicação nos serviços de cartório e notariado poderia transformar processos tradicionalmente
morosos e vulneráveis a fraudes. O caso do Gana, que implementou um sistema de registo de terras baseado em
blockchain, demonstra o potencial desta tecnologia. O sistema reduziu significativamente disputas de terras e aumentou a confiança dos investidores no mercado. Em Moçambique, onde questões fundiárias são frequentemente complexas, uma solução semelhante poderia ter impactos consideráveis.
3. Identificação e Gestão de BD
Um sistema nacional de identificação digital, integrado com diversas bases de dados governamentais, poderia revolucionar a prestação de serviços públicos em Moçambique. Este sistema facilitaria o acesso a serviços essenciais, como saúde e educação, além de simplificar processos administrativos para cidadãos e empresas.
Investir na digitalização permite ao País ultrapassar grandes desafios estruturais
A Índia, com o seu sistema Aadhaar, demonstra o potencial transformador da identificação digital em grande escala.
Este sistema permitiu ao Governo indiano direccionar subsídios de forma mais eficiente, reduzindo fraudes e garantindo que os benefícios chegam aos destinatários pretendidos.
Em Moçambique, algo semelhante poderia melhorar a eficiência dos programas sociais e reduzir desvios.
4. Digitalização da Saúde
A digitalização do sector da saúde, particularmente na gestão da cadeia de fornecimento de medicamentos, representa uma oportunidade para melhorar a eficiência e reduzir fraudes. Sistemas de rastreamento digital de medicamentos, desde a aquisição até à distribuição de receitas aos pacientes, podem reduzir significativamente o desvio e a falsificação de produtos farmacêuticos.
A Tanzânia implementou com sucesso um sistema de gestão logística electrónica para medicamentos, que reduziu a escassez de medicamentos essenciais em unidades de saúde de 26% para 7%. Em Moçambique, um sistema semelhante poderia melhorar substancialmente o acesso a cuidados de saúde.
B. Formalização do Sector Informal através da Digitalização
O sector informal representa uma parte significativa da economia moçambicana, cerca de 40% do PIB. Este sector, embora vital para a subsistência de milhões de moçambicanos, opera fora do sistema fiscal e regulatório, limitando a capacidade do Estado de arrecadar receitas e implementar políticas económicas eficazes.
1. Estratégias de Baixo Custo para Formalização Digital Parcerias Público-Privadas para Registo Simplificado
Em vez de desenvolver sistemas governamentais dispendiosos, Moçambique pode estabelecer parcerias com empresas de tecnologia para criar plataformas móveis de registo empresarial simplificado. O modelo de receita partilhada pode ser implementado, onde as empresas tecnológicas recebem uma pequena percentagem das taxas de registo ou impostos colectados através da plataforma.
O Senegal implementou o sistema “e-Tax” através de uma parceria com operadoras móveis, permitindo que pequenos comerciantes se registem e paguem impostos simplificados via telemóvel. O sistema não exigiu investimento inicial significativo do Governo, sendo financiado por uma pequena comissão sobre as transacções.
Micro Registo Gradual com Benefícios Incrementais.
Um sistema de formalização gradual pode incentivar comerciantes informais a entrar no sistema formal, passo a passo, com requisitos mínimos iniciais e benefícios imediatos. Por exemplo, um simples registo via SMS poderia conceder acesso a microcrédito ou seguros básicos, incentivando a adesão sem custos significativos
para o Estado.
O Gana implementou o sistema “Susu Digital”, que permite aos comerciantes informais registarem-se via telemóvel e acederem a serviços financeiros básicos. O sistema foi financiado por instituições financeiras privadas que beneficiam da expansão da sua base
de clientes.
Expansão da Bancarização Rural através de Soluções Digitais. A baixa taxa de bancarização nas áreas rurais de Moçambique limita o acesso ao crédito, dificulta poupanças seguras e restringe o crescimento económico. A digitalização oferece soluções inovadoras para expandir serviços financeiros a áreas remotas sem a necessidade de infra-estruturas bancárias tradicionais dispendiosas.
2. Estratégias de Baixo Custo para Bancarização Rural Parcerias com Operadoras de Telecomunicações
O Governo pode estabelecer parcerias estratégicas com operadoras de telecomunicações para expandir serviços de dinheiro móvel em áreas rurais. Estas parcerias podem incluir incentivos regulatórios em vez de subsídios directos, como licenças de espectro preferenciais em troca de compromissos de expansão rural.
A Tanzânia expandiu significativamente a inclusão financeira rural através de parcerias com operadoras móveis, oferecendo incentivos regulatórios para a expansão da cobertura em áreas rurais. Como resultado, a taxa de inclusão financeira aumentou de 16% para 65% em menos de uma década, sem investimento directo significativo do Governo.
Agentes Bancários Digitais
O modelo de agente bancário, onde comerciantes locais actuam como pontos de acesso a serviços financeiros básicos, pode ser expandido através de aplicações móveis simples. O Governo pode facilitar este processo através de regulamentação adequada, sem necessidade de investimento directo.
O Brasil expandiu significativamente a sua rede de agentes bancários em áreas rurais através de regulamentação favorável, permitindo que pequenos comerciantes oferecessem serviços bancários básicos. O modelo não exigiu investimento governamental directo e aumentou a inclusão financeira em
áreas remotas.
Blockchain para Microfinanças Rurais
Plataformas baseadas em blockchain podem facilitar micro empréstimos peer-to-peer para agricultores e empreendedores rurais, contornando a necessidade de infra-estrutura bancária tradicional. O papel
do Governo seria principalmente regulatório, garantindo a protecção dos consumidores sem investimento directo.
O Uganda implementou a plataforma “Agriledger”, para ligar pequenos agricultores a financiadores e compradores. O sistema foi desenvolvido por uma empresa privada com apoio regulatório do Governo, sem custos significativos para o erário público.
C. Modelos de Financiamento Alternativos
1. Parcerias Público-Privadas (PPP) baseadas em Resultados.
Em vez de investimento inicial, o Governo pode estabelecer contratos de PPP onde os parceiros privados investem na infra-estrutura digital e são remunerados com base em resultados predefinidos, como o número de registos formalizados ou contas bancárias rurais abertas. O Ruanda utilizou este modelo para digitalizar o seu sistema de registo empresarial, com o parceiro privado a receber pagamentos baseados no aumento da base tributária resultante da formalização, tornando o projecto
autofinanciável.
2. Financiamento de Impacto e Doadores Internacionais
Projectos de digitalização com impacto social claro podem atrair financiamento de impacto e apoio de doadores internacionais. O Governo pode actuar como facilitador, criando um ambiente regulatório favorável e coordenando esforços sem contribuição financeira directa.
O Maláui atraiu financiamento do Banco Mundial e de investidores de impacto para o seu programa de identidade digital, que foi implementado sem pressão significativa sobre o orçamento nacional.
3. Modelos de Receita Partilhada
Sistemas digitais podem ser financiados através de modelos de receita partilhada, onde os promotores recebem uma pequena percentagem das transacções ou benefícios gerados pelo sistema. A Zâmbia implementou um sistema de pagamento de impostos digitais onde a empresa tecnológica recebe uma pequena percentagem da receita adicional gerada, tornando o sistema autofinanciável e alinhando incentivos para a eficiência.
D. Como fazer? – Implementação Faseada e Escalável Projectos-Piloto Localizados
Iniciar com projetos-piloto em áreas específicas permite testar abordagens com investimento mínimo antes de expandir. Estes pilotos podem ser financiados por parceiros de desenvolvimento ou empresas privadas interessadas em demonstrar a viabilidade das soluções. O Benim implementou um sistema-piloto de identidade digital em uma província antes da expansão nacional, reduzindo riscos e custos iniciais.
Abordagem Modular
Desenvolver sistemas em módulos independentes, mas interoperáveis, permite uma implementação gradual de acordo coim o financiamento disponível, em vez de grandes investimentos iniciais. A Estónia, frequentemente citada como caso de sucesso em “e-governance”, desenvolveu o seu sistema digital de forma modular ao longo de mais de uma década, permitindo que cada componente gerasse valor antes do investimento no próximo.
E. Como se paga? O Retorno do Investimento em Digitalização
O investimento em digitalização apresenta um retorno considerável a médio e longo prazo. Estudos do Banco Mundial indicam que países que investiram significativamente em infra-estruturas digitais e serviços públicos electrónicos registaram melhorias substanciais na eficiência governamental e no crescimento económico.
A Estónia estima que o seu sistema de assinatura digital poupa anualmente o equivalente a 2% do PIB. Em Moçambique, onde a ineficiência administrativa representa um custo significativo para a economia, o potencial de poupança através da digitalização é substancial.

Conclusão
As potenciais aplicações são vastas. Nenhum sector de actividade está aquém desta transformação e a única limitação à sua aplicação é a nossa própria imaginação. Imaginemos a simplificação do processo de inscrição de matrículas das nossas crianças e o registo digital de todo o seu desempenho até à faculdade. Imaginemos a actualização instantânea do currículo nacional e a adopção do melhor conteúdo disponível. Imaginemos todo o processo de licenciamento e de registo do que quer que seja numa cadeia de blockchain impenetrável à duplicidade e falsificação: tal poderia aliviar os nossos tribunais e trazer confiança ao nosso sistema. Imaginemos os nossos produtores de milho, caju, chá ou algodão poderem oferecer rastreabilidade e comprovativos de qualidade dos seus produtos, poderem aceder a informação em tempo real dos preços nos mercados e libertarem-se dos cartéis que mantêm os seus preços baixos, como aconteceu no Quénia com a plataforma M-Farm.
Não será um processo fácil, sobretudo porque requer uma mudança de mentalidade e a quebra de alguns tabus com a potencial redução de emprego num país onde o emprego já é escasso. Mas a principal constatação que precisamos de ter em conta é que, depois de o génio ser libertado da lâmpada, não há como voltar a colocá-lo lá dentro. E ao invés de resistirmos aos eventuais impactos que a digitalização poderá trazer, devemos abraçar a sua inevitabilidade e a contribuição que pode dar para reduzirmos (e fazê-lo ainda mais rápido) o fosso que temos para os países mais desenvolvidos.
A transformação digital não é informatização; não se trata de disseminar o uso de computadores, mas sim de mudar todo um processo, trata-se de um cultura e forma de interacção do Estado com o cidadão. Representa uma oportunidade para a nossa economia com potencial para melhorar a eficiência governamental, reduzir a corrupção, atrair investimento estrangeiro e estimular o crescimento económico inclusivo. A experiência de países como a Tanzânia, Zâmbia, Camboja e Gana oferece lições valiosas sobre como implementar soluções digitais de forma eficaz e sustentável, mesmo em contextos de recursos limitados.
Para concretizar este potencial, é necessário um compromisso político forte, parcerias estratégicas com o sector privado e a comunidade internacional e um plano de implementação faseado que considere o nosso contexto. Ao investir na digitalização, Moçambique pode ultrapassar alguns dos seus desafios estruturais E posicionar-se como um líder regional em inovação digital, criando uma economia mais resiliente, transparente e inclusiva para todos os moçambicanos.
A jornada para a digitalização é um desafio, mas também uma oportunidade. Ao abraçarmos esta transformação, estaremos a moldar um futuro mais próspero para Moçambique e a garantir que as gerações futuras possam beneficiar de um ambiente de negócios mais eficiente
e inclusivo.