Num país onde os registos em papel ainda dominam e os serviços digitais falham em eficiência, como denuncia o Centro de Integridade Pública (CIP), poderá o apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) acelerar a transformação?
O Centro de Integridade Pública (CIP), organização não-governamental (ONG) focada na promoção da transparência, combate à corrupção e integridade, queixa-se da “limitada” relação entre o cidadão e o Governo através das plataformas digitais, apontando a baixa taxa de acesso à Internet como causa central. Prova disso, segundo o CIP, é que o País continua na lista dos que apresentam as piores estatísticas da região em termos de conectividade, com muitas pessoas sem qualquer tipo de acesso à Internet.
Outras até conseguem ter ligação à rede mundial, mas de forma intermitente e, muitas vezes, restrita ao ambiente de trabalho. Para o director executivo do CIP, Edson Cortez, “esta realidade reduz drasticamente a utilidade das plataformas digitais governamentais. Além disso, o custo elevado da Internet continua a ser um factor limitante, que torna a digitalização da administração pública numa promessa distante.”
Informação imprecisa
Edson Cortez entende que a situação é tão negativa que, mesmo quando as plataformas estão disponíveis, impõem-se outros desafios estruturais. “Um dos problemas mais evidentes é a falta de actualização dos portais governamentais, sem reflectir mudanças administrativas e sem partilhar informações relevantes com os cidadãos. Nalguns casos, os sites ainda exibem nomes de titulares de cargos que já cessaram funções”, evidenciando falhas na mais simples gestão e manutenção de informação.
Outro problema apontado pelo CIP é a falta de padronização no uso de e-mails institucionais. “É comum que altos funcionários do Governo utilizem e-mails pessoais, no Gmail ou Yahoo, para tratar de assuntos oficiais. Isto gera graves riscos em termos de segurança, pois, quando estes funcionários deixam os seus cargos, grande parte do acervo de comunicações e documentos relevantes perdem-se, já que os arquivos não ficam armazenados nos servidores
do Governo.
Lacunas na protecção de dados
Além da ineficiência das plataformas digitais, há uma grande lacuna na protecção e gestão de dados no sector público. “Nos hospitais, por exemplo, os dados dos pacientes são frequentemente anotados em papel, sem qualquer sistema informatizado que garanta a preservação e o acesso eficiente à informação médica. Este problema repete-se em esquadras de polícia, onde os registos de ocorrências criminais ainda são feitos à mão, tornando a gestão da segurança pública menos eficaz”, criticou.
“Um dos problemas é a falta de actualização dos portais governamentais. Em alguns casos, os sites ainda exibem nomes de titulares de cargos que já cessaram funções”, Edson Cortez, CIP
Para o CIP, este conjunto de problemas decorre, em parte, da falta de visão sobre as reais necessidades do País. “Em vez de se investir na digitalização e modernização dos serviços públicos, o Estado foca-se excessivamente em benefícios e regalias para os dirigentes políticos.
O Orçamento do Estado reserva grandes montantes para aquisição de veículos de luxo para ministros e outros titulares de cargos públicos, enquanto a falta de investimentos básicos em infra-estrutura digital persiste. O montante gasto em viaturas protocolares poderia equipar esquadras e hospitais com computadores, criar redes internas e melhorar a gestão dos serviços essenciais”, observou o activista.
Um panorama geral desfavorável
Com todos os problemas expostos, Edson Cortez não tem dúvida de que a informatização dos serviços públicos, em Moçambique, ainda é uma utopia. A maioria da população nem sequer tem acesso a computadores ao longo da vida. Em muitas regiões do País, os estudantes concluem o ensino secundário sem nunca ter utilizado um computador. O fosso digital entre áreas urbanas e rurais é enorme, tornando inviável qualquer estratégia de governação electrónica que não venha acompanhada de um plano abrangente de inclusão digital.
Cortez acrescenta que as poucas iniciativas existentes, como o agendamento online de emissão de passaportes e bilhetes de identidade, ainda são limitadas. Mesmo nestes casos, há dificuldades de implementação e o serviço nem sempre funciona.
Que saídas para um futuro digital?
Além da correcção das prioridades nos gastos públicos, investindo em infra-estrutura digital e reduzindo, por exemplo, os privilégios concedidos a líderes políticos, o CIP sugere a massificação do acesso à Internet, estimulando a redução
do preço. “Com uma conectividade mais acessível e estável, seria possível facilitar o acesso a serviços públicos e aumentar a participação dos cidadãos no acompanhamento da governação”, defendeu. A criação de redes internas para instituições públicas, o uso padronizado de e-mails institucionais e a informatização dos registos administrativos são também medidas básicas que deveriam ser implementadas de imediato.
O peso do “Plano Mattei”
Reconhecendo todos os problemas levantados pelo CIP, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com financiamento do Governo italiano, decidiu dar uma resposta. O PNUD está a implementar o projecto “Digital Flagship for Africa” que abrange Senegal, Costa do Marfim, Gana e Moçambique.
Para o País, estão reservados 100 milhões de dólares. O dinheiro deverá financiar incubadoras tecnológicas, “startups” e informatização dos serviços públicos, reduzindo as desigualdade e capacitando instituições locais. A iniciativa também prevê suporte financeiro e técnico a entidades envolvidas na transformação digital, como o Instituto Nacional de Comunicações de Moçambique (INCM). O INCM tem desenvolvido projectos de acesso a Internet gratuita (praças digitais, Internet nas escolas, bibliotecas digitais), Televisão Digital Terrestre (TDT) para comunidades rurais e expansão da rede móvel, entre outros. Grande parte destas iniciativas conta com o financiamento do Fundo do Serviço de Acesso Universal (FSAU).
O compromisso do Estado
Pretende-se que o “Plano Mattei”, entre outras iniciativas semelhantes, esteja alinhado com compromissos do Presidente Daniel Chapo para acelerar a digitalização dos serviços públicos, visando reduzir a corrupção e melhorar a eficiência administrativa. Para isso, foram criadas entidades específicas, como o Ministério das Comunicações e Transformação Digital, a Agência de Modernização Administrativa do Estado e o Gabinete de Coordenação de Reformas e Projectos Estratégicos do Governo.
A digitalização em Moçambique continua a ser um desafio marcado por desigualdades no acesso, infra-estrutura deficiente e uma administração pública ainda dependente de processos manuais. Contudo, iniciativas como a do PNUD podem representar um ponto de viragem ao impulsionar investimentos e promover soluções inovadoras para um ecossistema digital mais eficiente e inclusivo.
Resta saber se os esforços em curso serão suficientes para transformar esta promessa distante numa realidade tangível, garantindo que a tecnologia se torne, de facto, um instrumento de desenvolvimento acessível a todos os moçambicanos.
Texto: Nário Sixpene & Celso Chambisso • Fotografia: D.R.