O procurador-geral da República (PGR), Américo Julião Letela, revelou esta terça-feira (29) que, dos 31 processos-crime instaurados contra membros da Polícia da República de Moçambique (PRM) por actuações durante os protestos pós-eleitorais de 2024, apenas dois culminaram em despachos de acusação. Os restantes ainda se encontram em fase de instrução, sem acusação formal até à data.
A informação consta do Informe Anual do Ministério Público apresentado à Assembleia da República, numa sessão marcada por duras críticas à actuação das forças de segurança e ao sentimento generalizado de impunidade que se instalou no rescaldo da crise eleitoral.
O documento não especifica os crimes imputados aos agentes nem quantos foram constituídos arguidos, mas surge num contexto em que mais de 350 civis perderam a vida, segundo organizações da sociedade civil, durante confrontos com a polícia. Muitas das mortes ocorreram em circunstâncias alarmantes: dentro de residências, em protestos pacíficos ou no regresso de cidadãos aos seus locais de trabalho.
Letela afirmou que às forças de segurança “exige-se uma actuação compatível com os princípios constitucionais e legais, bem como com os padrões mínimos definidos pelas convenções internacionais”. E reconheceu que a conduta de vários agentes da PRM evidencia a necessidade urgente de capacitação, de modo a prevenir abusos e reacções desproporcionadas perante manifestações públicas.
O procurador defendeu ainda que a violência nunca pode ser tolerada como meio de reivindicação, mas sublinhou que as manifestações de 2024 ultrapassaram o mero protesto eleitoral: “Foram um movimento sem paralelo na história democrática do país, com destruição de infra-estruturas públicas e privadas e perdas humanas significativas.”
Apesar do foco na responsabilização da PRM, o relatório mostra um contraste gritante na celeridade dos processos contra civis. Segundo o Ministério Público, foram abertos 742 processos contra manifestantes, dos quais 385 foram concluídos: 356 com acusação e 29 arquivados. Os crimes mais recorrentes foram roubo agravado (325), furto agravado (168) e danos materiais (141).
Adicionalmente, foram instaurados 328 processos-crime por destruição de bens públicos e privados — apenas 44 foram concluídos, e 43 tiveram despacho de acusação. O Estado moveu ainda nove processos cíveis, reclamando mais de 165 milhões de meticais em prejuízos, embora não esteja claro quem deverá arcar com as responsabilidades.
A actuação desigual da justiça foi reconhecida pelo próprio Letela, que falou em “ineficácia do sistema penal” para lidar com actos cometidos pelas forças de segurança. “Este desequilíbrio gera sentimento de impunidade e insegurança nos cidadãos”, alertou.
Letela sugeriu ainda a criação de um regime penal específico para condutas ilícitas em manifestações, sem criminalizar o direito à manifestação em si. “É preciso distinguir entre o exercício legítimo da cidadania e actos criminosos como saques, destruição de edifícios públicos ou bloqueios ilegais de vias”, explicou.
Fonte: Carta de Moçambique