Apesar dos avanços tecnológicos, Moçambique ainda enfrenta grandes dificuldades para implementar um modelo eficiente de “e-government” (governação electrónica). A dependência do papel e do carimbo são sinal da burocracia excessiva, ao lado da corrupção. O acesso aos serviços públicos é lento e desigual. A informatização avança de forma fragmentada, com pouca integração entre instituições e com impacto limitado na vida dos cidadãos.
Será que o País está pronto para abandonar a era do papel e adoptar um governo verdadeiramente digital?
No universo das instituições públicas moçambicanas, o carimbo continua a reinar de forma absoluta. A sua ausência pode transformar um documento oficial num simples pedaço de papel, sem qualquer valor. O carimbo dita o ritmo da máquina burocrática do Estado. Esta dependência de processos físicos, marcada por pilhas intermináveis de dossiês e pela necessidade de assinaturas à mão em cada etapa, reflecte a lenta transição do País para um modelo de governo electrónico. A informatização avança com passos tímidos, travada por uma cultura institucional resistente à mudança e por infra-estruturas tecnológicas aquém do necessário para garantir serviços públicos céleres e acessíveis.
A burocracia, um dos traços mais enraizados na administração pública moçambicana, atrasa processos e alimenta um ambiente propício à corrupção. A multiplicação de exigências documentais e a falta de transparência na tramitação de processos criam brechas para a negociação de “atalhos” e favores, distorcendo o funcionamento normal da máquina do Estado. Num ambiente onde a celeridade pode ser comprada, o cidadão comum é forçado a circular por um labirinto de repartições e exigências que dificultam o acesso a serviços básicos, minando a confiança nas instituições.
Embora Moçambique tenha adoptado algumas iniciativas, como plataformas electrónicas para registos e pagamentos, os benefícios são limitados. Muitos recebem pagamentos por baixo da mesa e resistem à mudança: lutam pela manutenção de um carimbo que lhes permite ganhar dinheiro, cobrando favores. A modernização do Estado exige investimentos em infra-estrutura digital e uma mudança de mentalidade na gestão pública, priorizando a eficiência, a transparência e a prestação de serviços acessíveis a todos.
Faltam leis sobre identidade e assinaturas digitais, por exemplo, necessárias para conferir validade jurídica aos documentos electrónicos
Só 20% da população tem Internet
O acesso à Internet em Moçambique continua a ser um problema: os últimos dados do site Data Reportal e do Instituto Nacional das Comunicações de Moçambique (INCM) indicam que só um quinto dos 33 milhões de habitantes têm ligação à rede mundial.
Se compararmos estes números com os dos países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), as lacunas tornam-se ainda mais evidentes. Na África do Sul, por exemplo, o acesso à Internet chega a cerca de 78% da população, enquanto no Botsuana ultrapassa os 66% e na Namíbia atinge os 55%. Estes países demonstram que, com investimentos estruturados, políticas assertivas e maior empenho estatal, a inclusão digital pode ser uma realidade. Diante deste cenário, pode-se questionar a ausência de uma estratégia para a informatização no Plano Económico e Social e Orçamento do Estado (PESOE). O documento, que define as principais prioridades governamentais, não faz qualquer menção a despesas públicas destinadas à transição digital dos serviços. Esta omissão lança dúvidas sobre o real empenho do Governo em acelerar a transformação e garantir que o acesso à Internet não continue a ser um privilégio restrito a uma minoria da população moçambicana e que seja mais inclusivo no meio rural e urbano.
Ainda falta quase tudo
Bruno Dias, parceiro de consultoria (“consulting partner”) da Ernst & Young (EY) Moçambique, acompanha o processo de transição digital em Moçambique e aponta problemas de base: a falta de uma infra-estrutura adequada para acesso à Internet. A situação agrava-se com a dimensão do País, que amplia o fosso entre o meio rural e urbano. Os problemas de inclusão digital são ainda maiores e afectam todo um ecossistema que se possa planear. “Este vector está intimamente relacionado com a protecção de dados e a segurança cibernética, que são preocupações críticas, especialmente em relação à privacidade dos cidadãos”, defendeu. Outro problema é a escassez de profissionais qualificados para gerir e operar sistemas ligados à governação electrónica, o que constitui um grande obstáculo, ao qual se acrescenta “a natural resistência à mudança.”
Por outro lado, no que se refere às questões regulatórias, Bruno Dias fala da ausência de um quadro legal claro e actualizado, o que cria incertezas e problemas na implementação de iniciativas inovadoras. Faltam leis sobre identidade e assinaturas digitais, por exemplo, necessárias para conferir validade jurídica aos documentos electrónicos. Ainda assim, Bruno Dias reconhece alguns avanços registados nos últimos anos. O Governo e o Instituto Nacional de Tecnologias de Informação e Comunicação (INTIC) têm publicado legislação importante como o regulamento do quadro de interoperabilidade do governo electrónico, o Regulamento do Sistema de Certificação Digital de Moçambique (SCDM) e a Política e Estratégia Nacional de Segurança Cibernética. Falta implementá-las.
Falta empenho nas reformas
A transformação digital dependerá da capacidade de “reformar e inovar”. Não se trata apenas de introduzir sistemas informáticos e dar formação, diz Rogério Samo Gudo, um dos responsáveis pela MCNet, entidade implementadora da Janela Única Electrónica (JUE). A plataforma foi criada há 15 anos para facilitar o comércio internacional, integrada no topo de uma reforma. Ou seja, é a face visível de um processo
mais profundo.
“Não faz sentido que o Estado se preocupe com cabos, servidores e hardware. Há uma necessidade urgente de desmaterializar processos e dar atenção à modernização, mental e operacional, das instituições”, Rogério Samo Gudo
Samo Gudo entende que o Estado se distrai com hardware, em vez de delegar essa tarefa em quem percebe do assunto e preocupar-se com a sua função, o poder de fazer reformas. “Não faz sentido que o Estado se preocupe com cabos, servidores e hardware. Há uma necessidade urgente de desmaterializar processos e dar atenção à modernização, mental e operacional, das instituições”.
“Um exemplo: o Estado precisa mesmo de um ‘data center’ próprio? O que é necessário é garantir a segurança das transacções e a eficiência nos processos”. A infra-estrutura tecnológica – acima da rede base pública de acesso à Internet e energia – deveria ser “responsabilidade do sector privado, que tem experiência e capacidade para geri-la de
forma eficiente.”
Resultado: o Estado perde tempo e dinheiro, em servidores e maquinaria que exigem “actualização tecnológica, um processo oneroso e que não está dentro do seu papel”, mas que deveria estar nas mãos de privados – como acontece noutras geografias.
Samo Gudo apresenta outro exemplo, a operadora móvel Tmcel. “Porque é que precisa de ser uma empresa estatal? O Estado regula o mercado e, ao mesmo tempo, compete nele, o que gera um conflito de interesses. Esta dualidade compromete a eficiência e a competitividade do sector”. E reiterou: “O Estado deve ser um facilitador,
não um entrave.”
Resistência vs vontade política
Sem vontade política, a resistência à mudança acabará por vencer, sugere Samo Gudo. “Devem existir políticas e decretos que obriguem à adopção de novas práticas.” Ao mesmo tempo, considera fundamental que haja uma forte
componente de formação para a mudança, “para que as pessoas percebam que esta transição acontece em todo o mundo. O medo de perder a rotina é um dos maiores desafios” e tem de ser desconstruído para a inovação digital se instalar como uma reforma e não como um software descartável.

Samo Gudo chega a pôr o “dedo na ferida” ao afirmar que “a falta de vontade política é um entrave.” E argumenta: “Na Janela Única Electrónica sentimos que poderíamos ter feito muito mais para integrar outros ministérios envolvidos na cadeia de importação e exportação. Ou integrá-los na vertente de comércio, onde há um grande potencial, já que a maioria dos ministérios tem uma vertente económica”. Mas tal não aconteceu e perdeu-se a oportunidade de maximizar a eficiência.
“Se todos os ministérios com vertente económica estiverem dentro de uma plataforma digital, um governo electrónico estará implementado a cerca de 80%. Isto significa que a circulação de processos pode tornar-se digital, eliminando o papel, assinaturas físicas e transacções desnecessárias. O resultado disso seria uma base de dados robusta, que permitiria fazer análises responsáveis e detalhadas e uma planificação económica mais eficaz”, indicou.
Desconexão institucional
Segundo Samo Gudo, a maior parte das entidades responsáveis pela transição digital opera de forma isolada. “Já tivemos encontros com ministros, incluindo titulares das áreas de comunicação e transformação digital, e há uma intenção de unificar tudo sob uma única estrutura”. Se assim for, tal vai garantir “uma maior coerência na implementação das políticas”, referiu.

“A dispersão é um problema. Já foram realizados investimentos em diversas plataformas digitais, mas é necessário adoptar padrões internacionais e exigir certificações de segurança, comuns a todos os serviços. Se, por exemplo, um candidato a um emprego tem de provar a qualificação através de certificações, porque é que o Estado não exige o mesmo para todos os sistemas?”
Apesar das críticas, há esperança. Samo Gudo acredita que a postura do novo Governo estará mais focada na transição digital – a avaliar, entre outros aspectos, pela criação de um Ministério voltado para a transformação digital. Esperemos para ver.
Texto: Celso Chambisso & Nário Sixpene • Fotografia: Istockphoto