O Papa Francisco visitou dez países africanos durante as suas cinco viagens ao continente, promovendo o diálogo inter-religioso e a tolerância, ao mesmo tempo em que denunciava a corrupção e o colonialismo económico. Após a morte do Sumo Pontífice na segunda-feira (21), líderes africanos elogiaram o seu “legado de compaixão” e “compromisso com a inclusão”, embora houvesse divergências sobre a sua postura em relação às questões LGBTQIA+.
Durante as suas cinco viagens ao continente, o Papa Francisco visitou o Quénia, Uganda, República Centro-Africana, Egipto, Marrocos, Moçambique, Madagascar, Maurícias, República Democrática do Congo e Sudão do Sul.
O presidente da Comissão da União Africana, Mahmoud Ali Youssouf, elogiou “o corajoso engajamento do líder da Igreja Católica com o continente africano, amplificando as vozes dos que não têm voz, defendendo a paz e a reconciliação e solidarizando-se com os afectados por conflitos e pobreza.”
Estima-se que 20% dos católicos do mundo estejam no continente africano, a maioria na República Democrática do Congo (RDC), Nigéria, Uganda, Tanzânia e Quênia.
O Presidente do Quénia, William Ruto, afirmou que Francisco “exemplificou uma liderança servidora através da sua humildade, do seu compromisso inabalável com a inclusão e a justiça, e da sua profunda compaixão pelos pobres e vulneráveis.”
Combatendo a exclusão urbana
Durante a sua primeira visita ao continente africano em 2015, o Papa celebrou uma missa na igreja de São José Operário, na favela de Kangemi, em Nairóbi, onde lançou um ataque às “novas formas de colonialismo” que exacerbam a “terrível injustiça da exclusão urbana.”
O Sumo Pontífice criticou as minorias ricas que acumulam recursos às custas dos pobres e elogiou a solidariedade e o apoio mútuo em bairros carenciados.

Lucy Nganga, uma fiel de Kangemi, lembra como o líder “se apresentou como o Papa dos pobres e explicou que foi por isso que escolheu esta igreja.”
Theresa Siuwai, outra católica da paróquia, afirmou à RFI que ficou marcada pelo facto do Sumo Pontífice ter escolhido vir para o gueto (bairro): “Só vemos pessoas importantes aqui quando estão em busca de votos. Então, para o Papa, vir a Kangemi, ver como vivemos e fazer parte da nossa comunidade, mesmo que por apenas uma hora, foi uma honra. Sentimo-nos humanos.”
‘Reconciliando duas comunidades’
Durante a mesma visita a África em 2015, o Papa Francisco fez uma viagem arriscada a Bangui, capital da República Centro-Africana. O país ainda estava em crise após um golpe de Estado de Seleka contra o ex-Presidente François Bozizé e havia uma luta constante entre as facções de luta da Seleka muçulmana e da anti-balaka cristã.
Francisco conduziu o papamóvel ao lado do mais alto responsável do clero muçulmano do país na altura, Tidiani Moussa Naibi, e do seu colega cristão, visitando uma igreja cristã e uma mesquita.

Fridolin, um dos jovens servidores da Catedral de Bangui, relembra o sentimento de esperança, de paz e reconciliação que Francisco inspirou ao entrar no bairro muçulmano.
“Quando fecho os olhos, visualizo tudo”, declarou, acrescentando: “No auge da crise, por dois anos, os cristãos não podiam pisar no PK5, um bairro predominantemente muçulmano, e nenhum deles podia sair do mesmo. Mas o Papa encarou a situação, foi até à mesquita daquela região”, lembrou o jovem. “Naquele dia, ele atraiu milhares de cristãos na sua procissão até ao bairro. Foi uma grande reconciliação. Vi, com meus próprios olhos, as duas comunidades aos aos abraços e a chorarem.”
Fridolin lembra também como a visita do Papa impulsionou a reabilitação do complexo pediátrico de Bangui, que havia caído em ruínas. Na época, muitas crianças morriam por falta de cuidados, mas desde 2015 o serviço de creche passou a ser gratuito naquele país.
Diálogo inter-religioso
Desde a sua posse em 2013, o Papa Francisco destacou a importância do diálogo inter-religioso, recebendo delegações de outras igrejas e religiões. A 4 de Fevereiro de 2019, Francisco assinou o documento sobre a fraternidade humana pela paz mundial e pela convivência com o imã da mesquita de Al-Azhar, no Egipto, Ahmad Al-Tayeb.
O documento especifica que Al-Azhar al-Sharif – o organismo científico islâmico – e a Igreja Católica “declaram que adoptam a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério.”
O Presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi afirmou que a morte do Papa foi “uma perda profunda para o mundo inteiro, pois ele era uma voz de paz, amor e compaixão. Trabalhou incansavelmente para promover a tolerância e construir pontes de diálogo, e foi um defensor da causa palestiniana defendendo direitos legítimos e pedindo o fim do conflito”, referiu Sisi nesta segunda-feira (21).
Defensor dos migrantes
Defender os migrantes, muitos dos quais que haviam feito jornadas perigosas pelos desertos do Norte da África ou pelo Mediterrâneo para chegar à Europa, era uma das prioridades de Francisco como Papa. A sua primeira viagem fora de Roma, em 2013, foi à ilha siciliana de Lampedusa (Itália) para se encontrar com migrantes recém-chegados. O líder denunciou a “globalização da indiferença” demonstrada aos potenciais refugiados.
A defesa dos migrantes ocupa um lugar notável na encíclica Fratelli Tutti de 2020 (livro da autoria do Papa) “sobre a fraternidade e a amizade social”, na qual condenou o comportamento de certos católicos em relação aos migrantes.

“Ninguém jamais negará abertamente que é ser humano, mas, na prática, através das nossas decisões e da maneira como os tratamos, podemos demonstrar que os consideramos menos dignos, menos importantes, menos humanos”, lê-se no livro. “Para os cristãos, esta forma de pensar e agir é inaceitável, pois coloca certas preferências políticas acima de convicções profundas da nossa fé: a dignidade inalienável de cada pessoa humana, independentemente da origem, raça ou religião, e a lei suprema do amor fraterno”, escreveu o Papa.
Francisco também denunciou veementemente as consequências da política ocidental de encerramento de fronteiras. Em Agosto de 2024, descreveu os esforços para repelir migrantes e bloquear as suas rotas como um “pecado grave”, ao recordar aqueles que perderam a vida, incluindo os “abandonados” no deserto. Anteriormente, em 2021, em Roma, o líder havia-se referido ao Mar Mediterrâneo, a rota mais usada por migrantes irregulares para atravessar para a Europa, como o “maior cemitério da Europa”.
Desconforto nas arquidioceses africanas
A relação do Papa Francisco com África também teve os seus momentos tensos. No início do seu Pontificado, Francisco sinalizou uma postura mais receptiva em relação às pessoas LGBTQ+, declarando “quem sou eu para julgar?” quando questionado sobre um padre homossexual.
Por meio da declaração Fiducia Supplicans (declaração doutrinal católica), publicada em Dezembro de 2023, o Papa aprovou bênçãos para casais do mesmo sexo, desde que não se assemelhem aos votos matrimoniais, o que provocou protestos entre arquidioceses africanas e foi imediatamente rejeitado pelos bispos de vários países africanos.
Diante da rebelião, o cardeal Fridolin Ambongo, presidente do Simpósio das Conferências Episcopais da África e Madagascar, foi ao Vaticano para apresentar o ponto de vista das igrejas africanas e trabalhar para resolver a crise. Na ocasião os líderes concordaram com uma mensagem – aprovada pelo Papa – de que os líderes religiosos no continente não teriam de abençoar casais do mesmo sexo.
O episódio ainda é comentado: “Foi um alvoroço, especialmente em África”, afirmou um católico, acrescentando que “o Vaticano tentou, o máximo que pôde, apresentar argumentos, mas nunca convenceu ninguém.”
“Tire as mãos da África!”
Noutras ocasiões, o líder da Igreja Católica estava em sintonia com o continente africano. Em Janeiro de 2023, logo após desembarcar em Kinshasa, República Democrática do Congo (RDC), Francisco fez um discurso condenando veementemente a exploração do país e do continente em geral: “Tirem as mãos da República Democrática do Congo! Tirem as mãos de África! Parem de sufocar o continente, ele não é uma mina a ser desmantelada ou um território a ser saqueado”, declarou, referindo-se a recursos como diamantes e coltan, que trouxeram conflitos e mortes ao país.
O Papa Francisco apelou repetidamente ao fim do longo conflito no leste da RDC.
Por sua vez, o Presidente da RDC, Felix Tshisekedi, prestou homenagem a um “grande servo de Deus, cuja vida foi um testemunho vibrante de fé, humildade e compromisso inabalável com a paz, a justiça e a dignidade humana.”
Ao longo do seu Pontificado, o líder católico sublinhou o seu apego à “inculturação” da fé, que permite que a mensagem cristã seja integrada em culturas específicas.

Em 1988, o rito zairense – uma forma inculturada da Missa Católica Romana, que integra elementos culturais da África Subsaariana na liturgia – foi aprovado para a República Democrática do Congo, então conhecida como Zaire. Tratava-se, segundo o Papa Francisco, de “o único rito inculturado da Igreja Latina aprovado após o Concílio Vaticano II.”
A adaptação especificamente africana do rito romano teve um lugar especial nos ensinamentos de Francisco. O líder citou o “Missal Romano para as Dioceses do Zaire” diversas vezes como um “modelo promissor para a Amazónia e para outras Igrejas que procuram uma expressão litúrgica apropriada.”
Papa Francisco em Moçambique
O Papa Francisco visitou Moçambique de 4 a 6 de Setembro de 2019. Durante a sua estadia no País, o líder reuniu-se com jovens, religiosos, membros do Governo e outras personalidades.
O Sumo Pontífice esteve concentrado principalmente na capital, Maputo, numa visita marcada por uma forte mensagem de paz, reconciliação e combate à corrupção, num momento crítico para o País, que enfrentava desafios como a assinatura de um acordo de paz com a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), da oposição histórica, além de problemas sociais e económicos profundos.

O partido no poder, Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), considera o Papa Francisco, como “figura ímpar da Igreja Católica e farol moral para a humanidade”. O sentimento vem expresso na mensagem de condolências que o partido emitiu, expressando a sua “profunda consternação e imenso pesar” pelas notícias do falecimento do líder religioso.
Já o Presidente da República, Daniel Chapo, enfatizou que a presença de Francisco em 2019 foi “símbolo de esperança” para Moçambique, especialmente após os desastres naturais e conflitos em Cabo Delgado, Norte do País.
Fonte: RFI