Após a introdução do Regime de Preços de Transferência (RPT) pelo decreto n.º 70/2017, de 6 de Dezembro, os preços de transferência têm sido tema de discussões dos agentes económicos que, por força das suas estratégias empresariais ou alianças estratégicas, se vêem vinculados a uma ou várias entidades, residentes ou não, em Moçambique. E porque as operações vinculadas envolvem a transferência de preços com o potencial risco de erosão da base tributável, a Administração Tributária introduziu este regime que visa regular as transacções entre empresas relacionadas, garantindo que os preços praticados estejam alinhados com o princípio de plena concorrência.
Esta temática ganha maior força em Agosto de 2020, com a aprovação da Declaração Anual de Rendimentos de Preços de Transferência (Regime Fiscal Privilegiado e Subcapitalizado) – M/20 Anexo I, cuja submissão é obrigatória pelo sujeito passivo que, no exercício anterior, tenha atingido volume de vendas líquidas e outros proveitos de 2,5 milhões de meticais, devendo declarar as operações com entidades com as quais tem relações especiais. Nos casos em que o sujeito passivo não tenha tido operações com entidades relacionadas, deverá mencionar tal facto no campo 10 da declaração.
Paralelamente à obrigação de declaração acima, como parte do processo de documentação fiscal, o sujeito passivo deve também manter os seguintes documentos:
- Documentos referentes à política de PT;
- Contratos e documentos de suporte;
- Informação relativa às entidades com as quais mantém relações especiais;
- Análise funcional;
- Análise financeira, incluindo custos de partes relacionadas; e
- Demais informações relevantes.
Resulta assim que a preparação do dossiê de preços de transferência é uma obrigação declarativa importante que suporta e arrasta consigo outras obrigações que o sujeito passivo deve cumprir. Contudo, num mundo em rápida transformação tecnológica, é essencial reflectir sobre como estas mudanças podem moldar o futuro dos preços de transferência no País.
O Panorama actual dos preços de transferência em Moçambique
Em Moçambique, as regras de preços de transferência foram implementadas para evitar práticas abusivas que possam resultar na erosão da base tributável e na transferência artificial de lucros para jurisdições com tributação mais favorável. As empresas são obrigadas a justificar que as transacções intragrupo seguem os princípios de plena concorrência, ou seja, do mercado aberto, utilizando métodos como o preço comparável do mercado, custo majorado e preço de revenda minorado, entre outros previstos no regime de preços de transferência.
Tratando-se de uma matéria com alguma complexidade técnica, muitas empresas enfrentam desafios significativos na sua aplicação, incluindo a dificuldade em obter dados comparáveis confiáveis e a necessidade de preparar uma documentação extensa para cumprir as exigências legais. Além disso, o escrutínio fiscal sobre estas práticas tem aumentado, colocando pressão adicional sobre os contribuintes, e que se espera crescente face ao actual contexto económico que condicionou em larga medida a arrecadação de receitas fiscais.
O Impacto das mudanças tecnológicas nos preços de transferência
A tecnologia tem desempenhado um papel transformador na gestão fiscal global, e Moçambique não pode ficar à margem desta revolução. Ferramentas como big data e analytics estão a permitir análises mais detalhadas das transacções intragrupo, facilitando a identificação de discrepâncias e riscos fiscais. Softwares especializados estão a automatizar processos complexos, como a modelação de comparabilidade e benchmarks, reduzindo significativamente o tempo e os custos associados ao cumprimento das obrigações fiscais.
Além disso, tecnologias emergentes como blockchain e inteligência artificial poderão transformar a autoridade fiscal. O blockchain oferece maior transparência nas transacções financeiras, enquanto a inteligência artificial pode ser usada para prever riscos fiscais e monitorizar padrões em tempo real. Estas inovações têm o potencial de melhorar não apenas a conformidade das empresas com as regras de preços de transferência, mas também a eficiência das autoridades fiscais na sua fiscalização.
Tendências globais que influenciam Moçambique e em particular a autoridade tributária
As mudanças tecnológicas não ocorrem isoladamente; encontram-se intimamente ligadas às tendências fiscais globais que, mais cedo ou mais tarde, acabarão por impactar o quadro legislativo em Moçambique. Um exemplo é a reforma fiscal global liderada pela OCDE, que introduziu um imposto mínimo global de 15% para grandes multinacionais. Esta reforma visa combater práticas como o planeamento fiscal agressivo e tem implicações directas nos preços de transferência.
Além disso, países como China e Índia estão a liderar esforços na digitalização fiscal, utilizando sistemas electrónicos avançados para monitorizar transacções comerciais e garantir maior transparência tributária. Embora Moçambique esteja ainda num estágio inicial neste processo, é inevitável que estas tendências globais influenciem as políticas fiscais locais no futuro próximo, até porque, como se sabe, a Autoridade Tributária está na fase de preparação para implementação do ficheiro normalizado de auditoria fiscal SAF-T (Moz).
Com efeito, conforme o aviso n.º /AT/DGI/2025, a partir de Maio, os sujeitos passivos devem submeter as facturas emitidas e, através de um ficheiro comprimido, descarregar no Portal e-declaração da Autoridade Tributária dados de facturas extraídos mensalmente pelos seus respectivos programas de facturação, devidamente certificados pela Administração Tributária nos termos do Despacho Ministerial de 29 de Fevereiro de 2012.
Com esta medida, a Autoridade Tributária passa a dispor de informação sobre toda a facturação das empresas que, aliada à informação contida na Declaração Anual de Rendimentos de Preços de Transferência (Regime Fiscal Privilegiado e Subcapitalizado) – M/20 Anexo I e outras informações cuja entrega é obrigatória, como por exemplo a Declaração Anual de Informação Contabilística e Fiscal (M/20 A), certamente estará em condições de aferir se as operações vinculadas realizadas pelos sujeitos passivos estão ou não em linha com os princípios de plena concorrência e promover eventuais correcções fiscais, sem sequer se dirigir aos escritórios dos contribuintes, no âmbito do exercício do seu poder de fiscalização interna.
Benefícios da tecnologia na gestão dos preços de transferência
Com a crescente onda de digitalização e a necessidade de gestão dos riscos fiscais, a adopção de tecnologias avançadas pode trazer inúmeros benefícios para as empresas moçambicanas no âmbito dos preços de transferência. Por exemplo:
- Redução de riscos fiscais: as ferramentas digitais permitem identificar discrepâncias nas transacções intragrupo antes que estas sejam questionadas pelas autoridades fiscais.
- Simplificação da documentação: softwares especializados podem automatizar a preparação dos relatórios exigidos pela lei, reduzindo erros humanos e economizando tempo.
- Monitorização estratégica: soluções tecnológicas integradas ajudam as empresas a monitorizar continuamente os seus riscos fiscais e ajustar as suas estratégias conforme necessário.
Desafios tecnológicos e fiscais em Moçambique
Apesar das oportunidades oferecidas pela tecnologia, Moçambique enfrenta desafios significativos na sua implementação. Um dos principais obstáculos é a falta de meios e fraca capacitação dos técnicos da autoridade tributária para acompanhar os avanços tecnológicos globais. Um exemplo disso é a dificuldade que a autoridade tributária enfrenta em identificar e tributar operações que ocorrem no sector do turismo via plataformas online. Ou seja, este acompanhamento do mundo digital vai requerer um investimento forte em formação técnica e aquisição de equipamentos (incluindo software). Sem uma base sólida de conhecimento técnico, será difícil adoptar ferramentas avançadas ou interpretar os dados gerados por elas.
Além disso, muitas pequenas e médias empresas (PME) em Moçambique têm acesso limitado às tecnologias necessárias para cumprir as exigências fiscais modernas. A falta de infra-estrutura tecnológica robusta, bem como a ausência de cobertura de telecomunicações móveis em alguns postos administrativos do país, também representa um risco significativo para o progresso nesta área.
Propostas para o futuro
Para garantir que Moçambique aproveite ao máximo as vantagens da tecnologia nos preços de transferência, algumas medidas estratégicas devem ser consideradas:
- Investimento em tecnologia fiscal: o Governo deve priorizar investimentos em sistemas tecnológicos modernos que facilitem tanto a conformidade das empresas quanto a fiscalização eficiente por parte da Autoridade Tributária.
- Capacitação técnica: é essencial investir na formação contínua dos funcionários da Autoridade Tributária para garantir que estejam equipados para lidar com ferramentas digitais avançadas.
- Parcerias público-privadas: empresas privadas podem desempenhar um papel importante ao colaborar com o Governo na implementação da digitalização fiscal em larga escala.
- Incentivos à digitalização: políticas fiscais que incentivem as empresas moçambicanas a adoptar tecnologias modernas podem acelerar este processo.
Conclusão
O sucesso das políticas associadas à matéria dos preços de transferência em Moçambique (que se manifesta em maior transparência e eficiência do sistema fiscal) está intimamente ligado à capacidade do País de se adaptar às mudanças tecnológicas globais. A digitalização não é apenas uma oportunidade, é uma necessidade urgente para garantir competitividade no mercado internacional e evitar práticas abusivas que prejudiquem a arrecadação fiscal nacional.
Com investimentos estratégicos em tecnologia e capacitação técnica, Moçambique tem o potencial de transformar os desafios actuais em oportunidades significativas para fortalecer o seu sistema fiscal e atrair investimentos estrangeiros sustentáveis no longo prazo.