A empresa mineira Kenmare Resources, cotada na bolsa de Dublin e operadora da mina de Moma, em Moçambique, foi obrigada a rever os seus critérios de avaliação contabilística após uma inspecção da Autoridade Irlandesa de Supervisão de Auditoria e Contabilidade (IAASA), que identificou lacunas na forma como a companhia apresentava os seus activos e fluxos financeiros futuros.
O relatório da IAASA, divulgado em Março de 2025, destaca três áreas principais de preocupação: o contrato de licença mineira em vigor com o Governo moçambicano, as projecções financeiras a longo prazo utilizadas para justificar o valor dos activos da mina e a ausência de dados claros sobre os riscos associados às alterações climáticas.
No que diz respeito ao contrato de licença, a Kenmare baseava os seus relatórios financeiros num pressuposto de que tem o direito automático de operar a mina durante 40 anos, até 2063. Este entendimento fundamentava-se num acordo assinado em 2002 ao abrigo da antiga Lei Mineira n.º 13/87, que prevê um prazo inicial de 25 anos, prorrogável automaticamente por mais 15 anos, até 2042.
A empresa considerava ainda que poderia prolongar a licença até ao fim da vida útil da mina, estimada em 40 anos, com base nas cláusulas contratuais e nas chamadas disposições de grandfathering (salvaguardas legais que mantêm válidos os contratos antigos mesmo após alterações legislativas).
A IAASA reconheceu que o contrato parece permitir essas extensões, mas advertiu que tais juízos “constituem elementos significativos de julgamento” e, como tal, devem ser claramente divulgados nas demonstrações financeiras da empresa, conforme o parágrafo 122 da norma internacional IAS 1 (Presentation of Financial Statements).
Outro ponto levantado pelo regulador prende-se com as projecções de valor de uso (value-in-use), ou seja, as estimativas de fluxos de caixa futuros que sustentam a valorização dos activos da mina. A Kenmare apresentava um modelo com projecções mensais até 2050, o que a IAASA considerou excessivo e pouco justificado em termos de razoabilidade.
Após a intervenção do regulador, a empresa aceitou reformular as contas utilizando um modelo mais conservador: projecções detalhadas para os próximos cinco anos, seguidas de extrapolações baseadas no quinto ano para completar o horizonte de 40 anos. Esta revisão confirmou que não seria necessário registar qualquer imparidade nos activos.
No entanto, a IAASA apontou falhas importantes na forma como a Kenmare lidou com os riscos ambientais e as alterações climáticas. Embora a empresa tenha anunciado a ambição de atingir a neutralidade carbónica até 2040 nos âmbitos 1 e 2 (emissões directas e de energia adquirida), o seu plano de transição ainda estava em fase de avaliação aquando da publicação das contas anuais de 2023.
O regulador exigiu, por isso, que a empresa passe a incluir este tema como “fonte de incerteza de estimativa” nos relatórios futuros e que expanda as análises de sensibilidade relativamente aos custos e benefícios associados ao seu plano climático.
“Em resposta à auditoria, a Kenmare comprometeu-se a melhorar a qualidade das suas divulgações financeiras”
Em resposta à auditoria, a Kenmare comprometeu-se a melhorar a qualidade das suas divulgações financeiras. Entre as medidas acordadas estão a clarificação do estatuto legal da licença mineira, a explicitação dos pressupostos utilizados nos testes de imparidade e a incorporação dos riscos climáticos nas projecções económicas.
Estas exigências surgem num momento delicado para a companhia. O fundador e antigo director-geral da Kenmare, Michael Carvill, actualmente ligado à empresa de investimento Oryx Global Partners, com sede em Abu Dhabi, está a estudar uma nova oferta de aquisição da mineradora. No início de Março, a Kenmare recusou uma proposta de compra no valor de 473 milhões de dólares (28,4 mil milhões de meticais) apresentada pelo mesmo consórcio.
Entretanto, as acções da empresa valorizaram quase 50% nas últimas semanas na bolsa irlandesa, impulsionadas pela especulação em torno da possível operação. Fontes do sector indicam que a Kenmare terá também recebido, no ano passado, uma proposta preliminar da multinacional Rio Tinto, que acabou por não avançar.
A mina de Moma, situada na província de Nampula, é uma das maiores operações de extracção de minerais pesados em África, sendo responsável pela produção de titânio e zircão, exportados sobretudo para a China, Estados Unidos e Europa. A forma como os activos são contabilizados e divulgados tem impacto directo não só na avaliação da empresa pelos investidores, como também na transparência da actividade extractiva em solo moçambicano.
Fonte: The Irish Times