O turismo enfrenta inúmeros desafios, mas continua a ser uma das áreascom maior potencial de crescimento económico em Moçambique. Muhammad Abdullah, CEO da Cotur, aponta os caminhos mais promissores, se houver concertação entre sectores público e privado.
O sector do turismo, em Moçambique, enfrenta desafios constantes, desde instabilidade política até à necessidade de infra-estruturas mais robustas. No entanto, continua a ser um dos sectores com maior potencial de crescimento. Para fazer um ponto de situação e compreender o papel da Cotur na promoção do País como destino turístico de excelência, a E&M entrevistou o CEO, Muhammad Abdullah. Com uma visão estratégica clara, Abdullah aponta desafios, indica acções para mitigar prejuízos e oportunidades que podem transformar Moçambique. Abdullah considera importante a colaboração entre o sector privado e o Governo para posicionar Moçambique como um destino turístico competitivo a nível global. Além disso, aborda a importância da digitalização e da Inteligência Artificial na experiência do cliente e na melhoria dos serviços turísticos.
Sendo alguém com uma visão clara sobre o turismo em Moçambique, como avalia o seu estado actual e que papel a Cotur tem desempenhado na promoção do País como destino turístico?
Infelizmente, o turismo em Moçambique tem tido uma história muito difícil, principalmente nos últimos anos. Com tudo o que tem acontecido, sempre que o sector começa a mostrar sinais de recuperação, volta a ser apanhado numa nova crise que o afunda e voltamos ao ponto de partida. Importa lembrar que o sector do turismo são as pessoas, as moçambicanas e os moçambicanos que trabalham, diariamente, investem os seus recursos, o seu tempo e energia para o desenvolver. Infelizmente, neste círculo vicioso, em que recuperamos para voltar a cair, muitos dos nossos companheiros não têm conseguido resistir. O estado actual do nosso turismo é um reflexo destes embates sucessivos. Têm fragilizado cada vez mais um sector que, ironicamente, continua a ter tudo para ser um dos motores económicos do País e um dos maiores dinamizadores do desenvolvimento social.
Em relação à Cotur, temos procurado contrabalançar tudo isto. Temos, dentro do nosso planeamento estratégico, uma área dedicada em exclusivo ao desenvolvimento e promoção do destino Moçambique, com metas e KPI [sigla inglesa para indicadores-chave de desempenho] bem definidos. Na prática, isto significa que as nossas acções não se têm limitado ao marketing e às vendas. Por exemplo, em 2024, enquanto fazíamos o lançamento em Lisboa de uma campanha de marketing multi-meios, para divulgação do nosso país como destino turístico, promovíamos, ao mesmo tempo, encontros ao mais alto nível para estreitar relações e criar parcerias visando o desenvolvimento do sector com investimento estrangeiro no nosso país. Apesar de reconhecer que a Cotur tem uma capacidade e alcance diferentes, sozinha não faz um sector. Temos uma grande responsabilidade e não fugimos dela, mas não é por sermos líderes de mercado. Todos os intervenientes na área do turismo têm a sua responsabilidade, o seu papel e é fundamental que todos tomemos parte no desenvolvimento do sector. Todos são fundamentais.
A crescente instabilidade política nalgumas regiões de Moçambique tem prejudicado o turismo?
O turismo, seja em que país for, é um sector particularmente sensível. Seja por causa de ciclones ou de uma pandemia, seja devido ao conflito armado em Cabo Delgado ou à instabilidade política e social no rescaldo das últimas eleições presidenciais. É impossível contornar estes contextos. O turismo é um sector susceptível à influência da percepção sobre a realidade – provavelmente, é o sector que mais sofre com as percepções. Qualquer pessoa, a milhares e milhares de quilómetros de distância, recebe notícias sobre Moçambique e, instantaneamente, cria uma sensação. O turismo depende muito disso, do lado emocional e psicológico dos destinos, das preocupações com a segurança e, fundamentalmente, das expectativas em relação ao destino e ao que cada um espera lá viver. O impacto da instabilidade é enorme, as reservas são canceladas, os voos são desviados e os hotéis ficam vazios.
E quais seriam, a seu ver, as estratégias a seguir para minimizar esses prejuízos, garantir estabilidade e crescimento?
Ao contrário de outros sectores, o turismo vende-se à distância, sem que as pessoas tenham oportunidade de ver e confirmar o produto antes de tomarem a decisão de comprar. Nesse sentido, e considerando especificamente as últimas semanas de 2024, em Moçambique – em que tudo o que foi mostrado internacionalmente sobre o País foi profundamente negativo -, é fundamental recuperar a voz e controlar a narrativa. É preciso mudar rapidamente as percepções que, nesta fase, estarão longe de serem as melhores. A comunicação deve ser clara, transmitir segurança e estabilidade, centrando-se nas riquezas naturais e culturais e destacando as experiências positivas. Todos os países, nalgum momento da história, tiveram problemas e passaram por dificuldades. O que não podemos é deixar que a nossa história, a nossa realidade, depois de ter sido mostrada de uma forma tão negativa, acabe cristalizada na memória como se, de alguma maneira, fosse representativa daquilo que é o nosso país. O sector privado tem aqui também um papel fundamental e, idealmente, o esforço deve ser concertado com o Governo. Restaurar a nossa reputação e atrair novamente visitantes não vai acontecer apenas com acções institucionais. São precisas acções ao nível comercial, através de forte divulgação e promoção do produto turístico. O nosso país não parou nem ficou refém dos acontecimentos das últimas semanas, por isso, é fundamental que consigamos, enquanto País e enquanto sector, fazer chegar a todo o mundo essa mensagem.
“Temos, dentro do nosso planeamento estratégico, uma área dedicada em exclusivo ao desenvolvimento e promoção do destino Moçambique, com metas e indicadores-chave (KPI) bem definidos”
Sob a sua liderança, a Cotur tem evidenciado um crescimento robusto e é uma referência no sector. A que atribui esse crescimento e que mudanças foram implementadas para colocar a empresa neste lugar?
Primeiro, e como já tive oportunidade de dizer noutras ocasiões, agradeço a enorme bênção de ter podido crescer na sombra do meu pai e do meu irmão, que foram os meus guias. São deles os passos que sigo no caminho que temos feito na Cotur. Temos crescido de forma consistente e temos conseguido adaptar-nos às mudanças do mercado, mas penso que na base do sucesso está a visão do meu pai e a forma como sempre fez parte da matriz da empresa. Em 1994, quando a Cotur foi fundada, não havia um sector de turismo estruturado, mas a visão era clara: elevar a empresa e elevar o País. Hoje, esse compromisso tornou-se mais visível e passou quase a ser a imagem de marca da Cotur. Em muitos aspectos, tornou-se um diferencial significativo tanto na estratégia comercial como institucional da empresa. Continua a estar na base e no racional de muitas das decisões e metas que estabelecemos. Elevar a empresa e elevar o País não é alcançável apenas através do sucesso comercial. É preciso deixar uma marca na vida das pessoas. Esse é o nosso grande desafio. Muitos clientes ficam surpreendidos com o nível de serviço, que equiparam ao que de melhor recebem a nível internacional, e isso é a realização completa da visão do meu pai. Hoje, temos uma estratégia consolidada, totalmente orientada para a experiência e satisfação do cliente. Esta é a base dos nossos projectos centrados na digitalização, desenvolvimento de novas tecnologias e Inteligência Artificial.
Em relação à digitalização, o nosso compromisso é garanti-la em todas as etapas da jornada do cliente com a nossa marca. Desde a optimização da acessibilidade aos serviços da Cotur, através de plataformas online intuitivas e robustas, até à entrega de uma experiência personalizada e 100% relevante para cada cliente. A Cotur tem feito, na última década, uma aposta muito forte no desenvolvimento e implementação de novas tecnologias para optimizar a eficiência operacional e oferecer serviços cada vez mais personalizados aos nossos clientes. Este será, cada vez mais, um diferenciador estratégico da Cotur. O ciclo completa-se com a introdução e aposta específica na Inteligência Artificial, através da implementação em diversas áreas da empresa, ocupando gradualmente um papel central na melhoria da experiência do cliente. Temos investido em sistemas de IA avançados para personalizar recomendações, antecipar necessidades dos clientes e proporcionar um atendimento mais eficiente e personalizado. Isso agilizará os processos e criará interacções mais significativas.
Em Moçambique, faltam infra-estruturas, a qualidade da mão-de-obra é fraca e faltam ligações para transportar turistas. Como mitigar estes desafios?
O País deve priorizar o investimento estratégico em infra-estruturas, eventualmente alavancado em parcerias público-privadas para acelerar o seu desenvolvimento e implementação. Em relação à mão-de-obra qualificada, a formação profissional em turismo e hotelaria é uma das grandes debilidades do nosso sector. Há um grande caminho a percorrer. Penso que falta visão aos intervenientes no mercado. A cultura de aprendizagem contínua reforçaria a qualidade dos serviços e a competitividade, o que é absolutamente fundamental. Deve haver uma sensibilização para os benefícios a longo prazo desta formação. Temos muito bons exemplos noutros países, como a dinamização de programas vocacionais, formação no local de trabalho ou criação de incentivos (isenções fiscais, certificações e planos de carreira). São exemplos com resultados muito positivos. Finalmente, a questão das ligações poderia ser resolvida com o aumento do número de voos directos para os principais destinos turísticos. Igualmente importante seria fazê-lo a preços mais competitivos, o que seria possível com a introdução no mercado de outras companhias aéreas.

O turismo global foi fortemente prejudicado pela pandemia de covid-19. Como é que a Cotur se adaptou a esta realidade e quais as lições?
A Cotur conta com alguns dos maiores especialistas em viagens e turismo do País. Essa experiência foi fundamental para interpretar dados, analisar as dinâmicas de mercado e antecipar mudanças nas preferências dos consumidores. Por exemplo, ainda durante a fase das restrições, o turismo doméstico tornou-se muito popular, com muitas pessoas a descobrirem verdadeiras jóias no seu próprio país e a valorizar a realidade local. Além disso, o turismo de natureza, rural e as “road trips” também cresceram, impulsionados pelo desejo de actividades ao ar livre e pela procura de sustentabilidade e autenticidade. Hoje, é claro que estas mudanças representaram muito mais do que tendências passageiras. São um reflexo evidente de uma maior consciência sobre a importância do turismo sustentável e de uma preferência clara por este tipo de turismo.
Será cada vez mais um diferenciador estratégico da Cotur, sistemas de Inteligência Artificial avançados para personalizar recomendações, antecipar necessidades dos clientes e proporcionar um atendimento mais eficiente e personalizado
O que pode ser feito para promover Moçambique a nível internacional?
É fundamental termos uma marca forte que destaque as atracções únicas do País, como as praias, a vida selvagem, a gastronomia, o património cultural, entre outras. Já marcamos presença em feiras internacionais, mas, tão importante quanto estar presente, é onde estar presente. O nosso ‘stand’ deve estar bem localizado nesses certames e com uma programação que atraia interessados. Temos de aproveitar a facilidade de nos alinharmos com as tendências de turismo sustentável, ecoturismo, turismo de aventura, entre outros. Além disso, o marketing digital é crucial, com campanhas direccionadas em várias plataformas para mostrar a beleza natural e as oportunidades de aventura em Moçambique. Finalmente, é essencial chegar aos operadores turísticos e companhias aéreas internacionais, de forma a aumentar a visibilidade e tornar Moçambique mais acessível e conhecido nos mercados internacionais.
É preciso diversificar e aprofundar a oferta, melhorando a sua qualidade?
Moçambique tem, efectivamente, um vasto leque de atracções naturais, mas isso não significa que tenha muitas ofertas de qualidade. Essa é a principal questão. Temos recursos naturais para ser um destino turístico de topo, mas a falta de infra-estruturas, a inconsistência na qualidade do serviço e a escassez de produtos turísticos diversificados dificultam a comercialização do destino. O potencial existe, mas, para o transformar num destino pronto a ser vendido, é necessário um trabalho profundo para melhorar a oferta e desbloquear todo o seu potencial. Enquanto não resolvermos estas questões estruturais, o turismo de Moçambique continuará limitado e a enfrentar dificuldades para competir à escala internacional. A boa notícia é que as oportunidades são muitas e diversificadas, com potencial para desenvolver produtos turísticos direccionados a vários tipos de consumidores. Se conseguirmos oferecer produtos diferenciadores e de qualidade e melhorar as condições estruturais, Moçambique poderá tornar-se num destino altamente competitivo nos próximos cinco anos. Mas, para isso, é preciso haver um compromisso real de todos os intervenientes no sector.