A maioria dos moçambicanos (80%) recorre ao mercado de roupas usadas para se vestir: o País é o segundo maior importador da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), depois da Tanzânia. Cada peça tem um significado importante para o rendimento de milhares de famílias, mas é também um problema para quem pensa em desenvolver a indústria têxtil local. Quanto vale o mercado da roupa em segunda mão em Moçambique?
No movimentado mercado de Xipamanine, em Maputo, Alzira e Fátima ajustam cuidadosamente as roupas nas suas bancas. “Vender roupa usada é a forma de sustento da minha família há mais de dez anos”, diz Alzira, enquanto organiza uma fila de camisas coloridas. Fátima concorda: “Aqui, cada venda é um passo para pagar a escola dos meus filhos e garantir comida na mesa.”
Do outro lado das bancas, Francisco e Marta, dois consumidores, percorrem com atenção as pilhas de roupas. “Consigo vestir-me bem, gastando muito menos”, explica Francisco, exibindo um par de calças de ganga recém-adquirido. Marta acrescenta: “Ao preço das roupas novas nas lojas, eu não teria possibilidade de renovar o guarda-roupa.”
As respostas reflectem a importância do mercado de roupas em segunda mão, em Moçambique. O sector gera emprego, sustenta famílias e oferece acesso fácil a pronto-a-vestir. É parte importante da economia circular, que começa noutros países (onde as peças são compradas novas), movida pelo trabalho de intermediários e comerciantes e pela procura constante de consumidores em busca de qualidade a preços acessíveis.
Moçambique importou cerca de 40 mil toneladas de roupa usada em 2023 e é o segundo maior importador da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), depois da Tanzânia
O preço mínimo das peças de roupa é de 10 meticais (cerca de 16 cêntimos de dólar), aumentando conforme a qualidade, que é determinada por factores que incluem a aparência, estado de conservação, moda e funcionalidade.

Peso da roupa usada na economia
O dados oficiais estimam que as roupas usadas tenham contribuído com 11 milhões de dólares para o Produto Interno Bruto (PIB) de Moçambique, em 2023. É um valor pouco expressivo, cerca de 0,5% do total de cerca de 22 mil milhões de dólares que compõem o PIB. Ainda assim, é uma actividade comercial com influência no rendimento da população, aponta o estudo “The socio-economic impact of the second-hand clothing industry in Africa and the EU27+” (O impacto socioeconómico da indústria de vestuário em segunda mão em África e na UE27+), elaborado pela Oxford Economics e que foi encomendado pela organização não-governamental (ONG) Humana, associação sem fins lucrativos que promove a reutilização de têxtil desde 1998. O resultado coloca Moçambique entre os três maiores receptores africanos de roupa de segunda mão importada dos 27 países que integram o bloco da União Europeia (UE), a par do Gana e do Quénia. Segundo este estudo, em 2023, o País importou de várias partes do mundo cerca de 15 mil toneladas, avaliadas em 15,4 milhões de dólares. Aproximadamente um quinto da quantidade era proveniente dos 27 países da União Europeia.
Mas os números divergem, consoante a fonte. A UN Comtrade, um repositório de estatísticas de comércio internacional das Nações Unidas, apresenta valores ainda maiores, indicando que as importações da UE27+ (7,6 milhões de dólares, correspondente a 7600 toneladas) representam quase metade da roupa em segunda mão. As estimativas da Oxford Economics basearam-se nos dados fornecidos pela Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP) Moçambique, uma organização que importa roupa usada e parceira da Humana.

Um mercado ainda maior
Ouvindo um interveniente no mercado, chegamos a valores ainda maiores. Fernando Hin Júnior, coordenador do Centro de Desenvolvimento Empresarial da Associação Comercial da Beira, entidade que trabalha com a ADPP, refere que Moçambique importou quase 40 000 toneladas de roupa usada em 2023. O valor é mais do dobro das estimativas da Oxford Economics e UN Conmtrade, porque inclui as doações feitas no âmbito das acções humanitárias e outras regiões fornecedoras.
Este sector gera emprego, sustenta famílias e oferece acesso fácil ao vestuário: é possível comprar uma peça a partir de 10 meticais
São dados que fazem de Moçambique o segundo maior importador ao nível da região da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), a seguir à Tanzânia. “Quem vende, obviamente, ganha algum dinheiro para poder sustentar a sua família. Também é uma oportunidade para as famílias moçambicanas, porque a maior parte não tem condições para adquirir roupa nova”, disse, citado pela Lusa.
Cerca de 80% dos moçambicanos compram roupa usada, proveniente sobretudo da Europa, e o rendimento de um milhão de famílias depende deste mercado. O País absorve 1,7% das importações globais de roupa em segunda mão, disse, acreditando estarmos perante um mercado benéfico, ao promover a economia circular (reutilização de produtos), incorporando o reaproveitamento de peças descartáveis ou de muito baixa qualidade.

A indústria local
Moçambique já teve uma indústria têxtil e de vestuário promissora, mas que, por diversos motivos, faliu. Há quem associe a dificuldade em revitalizá-la com a entrada de artigos em segunda mão – o vizinho Zimbabué, por exemplo, já aboliu a importação de roupa usada para incentivar a produção nacional. Para a União Africana, “uma das razões da fraca industrialização ou revitalização da produção têxtil” no continente “é a facilidade de importação de artigos em segunda mão”.
Mas a Oxford Economics entende que, no caso de Moçambique, a importação de roupas em segunda mão não é o principal problema para o desenvolvimento da indústria local. A consultora indica que as principais barreiras são outras, de raiz estrutural, tais como políticas económicas instáveis, falta de investimento público e privado no sector e ausência de modernização das infra-estruturas – além de um passado marcado pela guerra civil (1976-1992).
Devido à pobreza, o mercado das roupas usadas “continuaria a ser um importante fornecedor de vestuário, mesmo que as actividades locais de fabrico se expandissem”, UNESCO
“As indústrias locais dependem frequentemente de tecidos importados e enfrentam a concorrência da moda rápida importada”, explicam os analistas da Oxford. “Embora o crescimento das importações de artigos em segunda mão tenha feito aumentar a concorrência aos fabricantes locais de vestuário em Moçambique (tal como em toda a África), este é apenas um dos desafios que o sector enfrenta”.
Paralelamente, devido à pobreza, o mercado das roupas usadas “continuaria a ser um importante fornecedor de vestuário, mesmo que as actividades locais de fabrico se expandissem”, acrescenta a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que cita profissionais de moda.
Moçambique, hoje, não tem uma indústria têxtil e de vestuário e as mais recentes tentativas de revitalizá-la têm fracassado.

Reutilizar até à exaustão
A produção têxtil é uma das maiores responsáveis pela poluição da água e emissões de gases com efeito de estufa, globalmente. Esta é uma questão crítica em países como o Gana, onde o lixo têxtil é frequentemente descartado de maneira inadequada.
No caso de Moçambique, segundo Hin Júnior, o problema não existe, porque há uma cultura de reaproveitamento da roupa em segunda mão. “Quando a roupa usada chega aos centros de triagem, só cerca de 5% é de baixa qualidade”, que não dá para reutilizar, e mesmo essa percentagem é reciclada pelas indústrias locais de limpeza”. O resto volta a ser vendido e também pode ser transformado por alfaiates em mercados informais e ao ar livre. “Quando o consumidor já não precisa da roupa que comprou nestes mercados, passa-a para familiares e amigos. Há uma cultura de reaproveitamento. Resíduos, só os que resultam do trabalho dos alfaiates”, indicou. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estima que 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis sejam gerados anualmente em todo o mundo.
Riscos ambientais
Alguns ambientalistas são mais críticos sobre os riscos associados à entrada massiva de vestuário em segunda mão no País. Vânia Cavel, jurista e investigadora da área da sustentabilidade ambiental, sedeada em Maputo, indica que “apesar de esta indústria desempenhar um papel central na economia de Moçambique, oferecendo opções acessíveis para milhões de pessoas, a popularidade crescente traz uma série de impactos ambientais significativos, muitas vezes negligenciados”. Segundo Vânia Cavel, há cinco pontos chave a ter em conta.
Gestão de resíduos
Apesar do benefício inicial, a gestão inadequada de roupas não vendidas gera problemas ambientais. Muitos mercados de roupas usadas carecem de sistemas adequados de descarte, resultando na acumulação de resíduos têxteis. Estudos mostram que, em vários pontos do globo, grandes quantidades de roupas descartadas são queimadas a céu aberto, libertando gases tóxicos e agravando a poluição do ar, um cenário que pode passar impune em Moçambique.
Poluição das águas e do solo
Resíduos têxteis abandonados também afectam os recursos hídricos e o solo. Durante a estação chuvosa, tecidos sintéticos e quimicamente tratados podem contaminar rios e ribeiros, prejudicar ecossistemas aquáticos e representar um risco para a saúde pública.
Transporte e emissões de gases
O transporte de roupa usada, de países doadores até Moçambique, contribui para emissões significativas de gases de efeito de estufa. Embora o transporte marítimo seja mais eficiente, a dependência de transporte rodoviário interno agrava o impacto ambiental.
Incentivo à economia circular
Uma abordagem sustentável requer o fortalecimento da economia circular em Moçambique, com a criação de programas de reciclagem, desenvolvimento de indústrias têxteis e promoção de práticas de consumo consciente. Organizações como a Associação para a Promoção de Resíduos e Reciclagem (APRORE) têm defendido a criação de cadeias de valor mais sustentáveis.
As Nações Unidas estimam que 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis sejam gerados anualmente, em todo o mundo
Especialistas da Oxford Economics recomendam que o escoamento de roupas em segunda mão na Europa deixe de privilegiar África, para minimizar impactos ambientais. Além disso, os governos e o sector privado devem colaborar para apoiar a sustentabilidade e a equidade, mantendo diálogo entre todos os envolvidos, como as ONG, comerciantes e instituições governamentais, aumentando a consciencialização pública sobre a importância da economia circular.

Tendências globais do mercado
O mercado mundial de vestuário em segunda mão deverá atingir 350 mil milhões de dólares (cerca de 325 mil milhões de euros) até 2028 e representará 10% do mercado da moda a nível mundial até 2025. Em 2023, a venda em segunda mão cresceu 15 vezes mais depressa do que o sector de vestuário tradicional, sendo que a opção online registou um crescimento de 23% ao longo do ano, segundo dados revelados por um estudo recente produzido pela empresa de estudos de mercado GlobalData. “Há uma perspectiva de relação qualidade-preço que se tornou mais importante numa altura de forte inflação. Há um ângulo de sustentabilidade, que faz com que muitos estejam favoravelmente predispostos para a economia circular, e há um ângulo de individualidade em que os consumidores valorizam a singularidade dos produtos disponíveis em segunda mão”, explica Neil Saunders, analista de retalho da GlobalData.
Saunders prevê que, até 2028, o mercado global de segunda mão cresça 77,8%. O analista espera que o sector registe o crescimento mais rápido na Ásia e valha 150 mil milhões de dólares até 2028, o que o tornará o maior mercado global, seguido da Europa.
O relatório também revela que 62% dos executivos do sector retalhista acreditam que os seus clientes se preocupam com a sustentabilidade da marca. A promoção dos objectivos de sustentabilidade foi uma das razões para 77% das marcas inquiridas considerarem a venda em segunda mão, sendo a terceira razão mais popular depois da aquisição de mais clientes (89%) e da geração de receitas (85%). “As marcas devem considerar a venda em segunda mão porque é um segmento em crescimento e é uma parte do mercado em que os consumidores estão interessados e com a qual se envolvem”, diz o analista.

Aposta no online
A análise estima que as compras online de moda em segunda mão continuarão a crescer, uma vez que a Geração Z (os nascidos entre 1997 a 2012) e os Millennials (nascidos entre 1981 e 1996) preferem o retalho digital ao físico. O relatório conclui que 51% dos compradores da Geração Z preferem comprar artigos em segunda mão online, um número apenas superado pelos Millennials, dos quais 55% preferem comprar vestuário em segunda mão online. O individualismo e a auto-expressão são factores determinantes entre estes consumidores. No entanto, os consumidores, em geral, procurarão dar prioridade ao valor em compras futuras, de acordo com o relatório, que concluiu que 59% dos compradores preferem não efectuar uma compra se não conseguirem encontrar um “bom” negócio. “Os compradores mais jovens – Geração Z e Millennials – serão os que mais contribuirão para o crescimento nos próximos cinco anos. Ambas as gerações estão muito interessadas na sustentabilidade e gostam de fazer compras em segunda mão. A Geração Z também está a ver o seu poder de compra aumentar, o que ajudará a impulsionar os seus gastos “, afirmou Saunders.
O relatório também considera o potencial de envolvimento do Governo no mercado da segunda mão. Observa que 44% dos consumidores vêem a política têxtil circular como uma questão não partidária e 42% acreditam que o Governo deve tomar medidas legislativas para promover a moda sustentável.

Texto: Celso Chambisso • Fotografia: iStock Photo & D.R.