Os tumultos pós-eleitorais em Moçambique frustraram as tentativas de vender a frota enferrujada de arrastões que esteve no centro do escândalo das “obrigações do atum” de 2 mil milhões de dólares, que arruinou a economia do País em meados da década passada, após os protestos que se vivem no País afastarem os potenciais compradores.
Por essa razão, noticia o Financial Times (FT), os leiloeiros não conseguiram atrair uma única proposta para os 24 barcos de pesca ancorados no porto principal de Maputo, com ferrugem a corroer os seus cascos.
Compradores potenciais da África do Sul e da Namíbia cancelaram inspecções previstas aos barcos na semana passada, devido aos protestos em curso, nos quais pelo menos 72 pessoas perderam a vida.
Havia também interesse por parte de “empreendedores” locais, explica a FT David Leal, gestor do leilão da Leilosoc, a casa de leilões responsável pelo processo em nome do Governo de Moçambique.
“Embora haja ferrugem nos barcos, os motores estão em bom estado. Este é um negócio muito bom para quem tem uma empresa de pesca ou quer iniciar uma,” afirmou Leal, acrescentando que novos leilões seriam realizados assim que a situação política estivesse resolvida.
Os navios são o vestígio de um dos mais badalados escândalos de corrupção em África, que forçou Moçambique a entrar em incumprimento da dívida e levou o FMI a suspender o financiamento directo ao Orçamento do Estado.
Mesmo que Moçambique, ainda hoje um dos países mais pobres do mundo, tivesse conseguido vender todos os barcos pelos preços de reserva, teria recuperado apenas 10,6 milhões de dólares, menos de 1% do dinheiro perdido num esquema fraudulento que envolveu políticos locais, um construtor naval de Abu Dhabi e o Credit Suisse, o agora extinto banco de investimento.
Os barcos foram colocados em leilão com preços de reserva entre 270 mil e 1,4 milhões de dólares.
Outrora uma das economias de crescimento mais rápido de África, Moçambique ainda sofre os efeitos da fraude, que levou ao incumprimento da dívida governamental em 2016 e empurrou milhões para a pobreza. A indignação face às dificuldades económicas e à crescente desigualdade tem alimentado semanas de protestos pós-eleitorais desde as eleições de 9 de Outubro, com a polícia anti-motim estacionada nas ruas de Maputo na tarde de quarta-feira.
Após a descoberta de 100 biliões de pés cúbicos de reservas de gás natural ao largo da sua costa em 2010, o governo embarcou numa onda de endividamento através de empresas estatais fictícias.
O Credit Suisse e o banco russo VTB estiveram entre os que ajudaram a organizar empréstimos estatais de 2 mil milhões de dólares em 2013, supostamente para transformar a indústria pesqueira de um país que faz fronteira com o Oceano Índico.
No entanto, os custos foram enormemente inflacionados e os projectos saqueados, com procuradores norte-americanos a alegarem que 200 milhões de dólares foram usados para pagar subornos e luvas.
Alguns dos arrastões foram adquiridos pelo governo por 22 milhões de dólares, enquanto um relatório de auditores da Kroll revelou posteriormente que esse valor era onze vezes superior ao seu verdadeiro valor de mercado.
O relatório da Kroll também expôs um buraco de 2 mil milhões de dólares nas finanças do governo, levando o FMI e outros doadores a suspenderem os financiamentos.
Moçambique chegou,entretando, a um acordo com o Credit Suisse, e o banco, separadamente, pagou 475 milhões de dólares em multas e concordou em perdoar parte da dívida em 2021. Manuel Chang, o ministro das Finanças que assinou os investimentos fraudulentos, foi condenado por fraude em Agosto por um tribunal dos EUA.
Em Julho, o Tribunal Superior de Londres decidiu “substancialmente a favor” de uma queixa de que o País foi defraudado, e condenou a Privinvest a pagar mais de 825 milhões de dólares em indemnizações, decisão da qual a construtora naval do Golfo que vendeu a frota de atum a Moçambique declarou recorreu, considerando-a “injusta e injustificada,” e alegando que o governo do Presidente Filipe Nyusi não divulgou documentos cruciais ao tribunal.