Quando se cumprem 11 anos da sua entrada no mercado, Sérgio Gomes, director-geral do M-Pesa, revela a nova estratégia, recorda as conquistas e enumera os desafios do maior operador de carteira móvel do País.
Que o M-Pesa tem revolucionado o sector financeiro em vários países africanos, do Quénia, onde foi criado em 2008, a Moçambique, desde que surgiu, há mais de uma década, não é novidade. A questão surge com a expansão brutal da utilização da carteira móvel, hoje em dia com mais de 6 milhões de clientes activos, muitos fora das grande cidades nacionais, e que levou a uma mudança estratégica que já está em curso. De provedor de serviços de troca de dinheiro digital a principal motor de inclusão financeira para os moçambicanos, é esse o caminho que o M-Pesa está a seguir. Sérgio Gomes, director-geral da empresa, explica-nos como.
Realizaram recentemente a segunda edição das FinTalks. Qual é o objectivo e a intenção em promover este tipo de debate?
No décimo aniversário do M-Pesa, em 2023, iniciámos um período de reflexão. Não só por questões de revisão estratégica, mas também por um realinhamento com o nosso propósito e com a razão da nossa existência. É óbvio que há um objectivo comercial mas há um propósito muito forte que tem que ver com a inclusão financeira, e há um compromisso que fizemos com a sociedade civil, com o Regulador e com as demais entidades, de que seríamos, sempre, um promotor de inclusão financeira para aqueles que não têm acesso a serviços financeiros. Assim, no ano passado decidimos fazer uma reflexão: onde é que tínhamos chegado, como contribuímos e o que é que iríamos fazer para os próximos 10 anos.
E que conclusões daí retiraram?
Uma das primeiras foi que, sem dúvida, é um grande sucesso o que fizemos. Conseguimos ter presença em todos os distritos do País, e em todos os postos administrativos é possível encontrar um agente M-Pesa ou pessoas com acesso a serviços financeiros. Foi possível começar a desmaterializar a moeda física para um ambiente digital que é mais controlado e mais seguro e que pode trazer mais valor e benefícios para a maioria dos moçambicanos. Mas a nossa premissa não fica por aí, e essa foi a segunda grande conclusão —, já existe a porta de entrada, mas não existia ainda o valor acrescentado para todos.
Em que aspecto?
Chegámos à conclusão que não existia ainda uma oferta suficientemente robusta que fosse de encontro às necessidades da população rural, e estamos a trabalhar sobre isso. Falo de serviços fundamentais como o micro financiamento, micro seguros e serviços de poupança adaptados a essa população. Então se temos uma população que tem acesso a uma carteira móvel onde consegue colocar o seu dinheiro, fazer depósitos, pagamentos, levantamentos e transferências mas que ainda não consegue aceder a serviços financeiros que estejam a empoderar economicamente e que possam trazer uma diferença naquilo que é o resultado nas suas vidas e nas oportunidades que vão ter, decidimos adaptar a nossa estratégia e avançar com uma revisão sobre a execução do nosso próprio propósito. Mantemos o foco na inclusão financeira e no aumento do acesso, e em ser um dos principais promotores deste desígnio nacional, mas refundámos a nossa visão sobre ele, e com alguma ousadia, devo dizer. Dissemos, no ano passado, que queremos ser mais que uma carteira móvel e providenciar soluções efectivas que se traduzam em valor para milhões de pessoas que ainda estão longe do sistema financeiro, especialmente no meio rural, e estamos a fazê-lo.
Em que é que essa nova visão se materializa?
As pessoas não podem ser meros depositantes, tem de existir uma razão pela qual depositam connosco. Para termos um ecossistema digital viável têm de haver várias formas de interacção e de transacção, de pagamento e aplicações diversas, devem existir vários serviços agregados que têm que responder à realidade das necessidades da população. Num ambiente urbano, por exemplo, com os pagamentos de Credelec, água, serviços de televisão por cabo ou transportes, isso já acontece. Mas no meio rural, as pessoas precisam de outro tipo de suporte que os apoie na sua actividade social e económica. E isto é o fundamental para nós. Quando olhamos para a questão rural e para o real valor que estávamos a trazer, percebemos que as soluções estão distanciadas das cadeias de valores que existem lá. Porque 78% da população rural sobrevive à custa da actividade agrícola, por exemplo e não havia instrumentos financeiros digitais que os suportem nesta actividade.
Este reposicionamento, existe em todas as geografias ou esta é uma questão de Moçambique?
Este pensamento existe em todas as geografias mas Moçambique é um caso muito específico. Primeiro porque em termos demográficos é totalmente diferenciado. Somos o País mais rural de todas as operações que temos. Todos os outros têm grandes concentrações urbanas, ao passo que nós temos 66% da população a viver em ambiente rural, e só isso já é uma diferença grande. Depois, o peso da agricultura na economia em Moçambique é muito superior àquilo que é nos outros. Por fim, a questão demográfica e migratória, em que Moçambique também é muito díspar das nossas outras operações. Quando começámos, em 2013, a receita passava por implementar toda a estratégia que advinha da experiência do Quénia, onde o M-Pesa surgiu em 2007. E ele aí foi um sucesso porque devido a ser uma solução para o envio de dinheiro para longas distâncias, recordando que, ali, Mombaça e Nairóbi têm mais de 50% da população, pessoas que migram do interior para aquelas cidades. Em Moçambique isso não é assim. Portanto, um modelo de negócio que estava alinhado com este tipo de premissa não resultaria, porque essas correntes migratórias são muito escassas em Moçambique. Maputo até é uma cidade pequena, relativamente àquilo que é o tamanho do País e à população global. Nampula e Zambézia têm 50% da população que não se está a movimentar para Sul. Então o negócio do M-Pesa em Moçambique é um caso particular a nível do grupo, porque resultou mais pelos pagamentos e não pelo lado das transferências de longa distância para substituir os métodos antigos de enviar dinheiro para as famílias.
Voltando à vossa mudança estratégica. O que mudou então?
A população rural e o meio agrícola, são vectores a que estamos a dar muito ênfase agora porque estamos a tentar, efectivamente, criar soluções para as suas necessidades e no meio deste pensamento, percebemos que há inúmeras entidades em Moçambique com um propósito semelhante: inclusão financeira. E todos nós temos o mesmo problema, estamos orientados para um desígnio comum mas a trabalhar de forma isolada, ou relativamente isolada, e não falo das entidades financeiras, porque aí existe uma estratégia de inclusão financeira que é promovida pelo Banco de Moçambique e que agrega bem todo o sistema financeiro. Mas depois existem ONG, organizações de desenvolvimento, empresas privadas, o sistema académico, entidades públicas. Todas com um mandato específico ou com um propósito específico relativo à inclusão financeira e que estão a seguir um programa com um objectivo comum mas de uma forma diferente, sem grande comunicação ou integração entre si. E nós percebemos que não estávamos a falar. Portanto, não existia uma comunicação activa, ou uma partilha activa entre todos e não estávamos a conseguir potencializar o que cada entidade estava efectivamente a fazer. Então o primeiro FinTalks nasce da necessidade de, primeiro, nos conhecermos todos, e perceber o que cada um está a fazer neste sentido para tentarmos fundar uma plataforma que se baseia numa conferência anual que arrancou em 2023, e que junta todas estas entidades, mas, que entretanto se multiplica numa série de iniciativas que continuam a trazer ao de cima o potencial da parceria entre todos com um mesmo objectivo, a aceleração da inclusão financeira em Moçambique.
O que é que já resultou desse debate?
Em primeiro lugar, e para além da revisão estratégica que nos levou a pensar que, mais do que uma carteira, temos de dar acesso a todos aqueles serviços financeiros que de facto vão ter um impacto positivo para a sociedade, para a actividade económica e o empoderamento económico. Só para dar mais uma nota sobre o Fintalks, o programa de facto evoluiu e este ano, não só a nível do showcasing que nós fizemos das parcerias, também inaugurámos o nosso podcast, em que estamos a sair de Maputo para dar voz a todas estas entidades que estão pelo País e que têm impacto no caminho da inclusão financeira. E também quisemos integrar o meio universitário em tudo isto, como um motor de criatividade e de geração de novas ideias e soluções para acelerar a inclusão financeira vendo a população como um todo. Este ano tivemos uma sessão experimental em que convidámos três universidades. No próximo, o objectivo será conseguir ter a participação da generalidade das universidades e dos institutos de ensino do País.
Depois, e olhando à criação de serviços para essa faixa da população, lançaram uma ‘Super App’ que entra nesta lógica também. Em que medida?
Sim, foi apresentada na primeira Fintalks, e isto é muito importante porque tem que ver com a questão do M-Pesa ser uma plataforma que tem de estar aberta. Já tínhamos essa prerrogativa através das nossas Open API em que qualquer entidade já podia, por si só, tendo conhecimento suficiente, fazer uma integração dos seus meios de pagamento. E também temos centenas de developers moçambicanos registados connosco e que estão capacitados para poderem fazer este desenvolvimento e esta integração para qualquer entidade. A ‘Super App’ segue o mesmo caminho mas aqui já é uma aplicação, na qual abrimos espaço para toda e qualquer entidade lá poder colocar uma ‘Mini App’, criando assim um ecossistema de vários aplicativos e vários serviços aos nossos clientes.
Qual é a grande vantagem que isto traz?
Uma aceleração comercial de contacto com os clientes que de outra forma estas entidades não tinham. E do nosso lado, providenciamos o acesso a serviços que antes não havia, de micro-crédito, por exemplo, como é o caso do Txuna, que é apoiado pelo Access Bank, os micro seguros de funeral, lançados pela Sanlam, ou um mais recentemente apresentado pela seguradora Hollard, em que o utilizador de M-Pesa pode adquirir um seguro automóvel de forma rápida e prática na sua app, entre muitos outros serviços.
Enquanto plataforma que já somos, temos 6 milhões de consumidores activos e uma base de subscrição que já ultrapassa 10 milhões e, por outro lado, temos todas as empresas que precisam de conseguir chegar a estes consumidores, precisam de conseguir apresentar os seus produtos as suas soluções a este público e também de colectar os seus pagamentos de forma simples, e podem fazê-lo dentro do nosso ecossistema. As ‘Mini Apps’ funcionam também num esquema parecido com o da Open API em que existe um portal de desenvolvimento disponível para qualquer developer do País que, utilizando a informação que lá está, consegue desenvolver a aplicação e depois enviar para nós para poder ser publicada.
Quantos serviços já estão disponíveis dessa forma?
Já temos nove aplicações activas e neste momento estamos a proceder ao lançamento de uma a duas por mês, sendo que esperamos uma aceleração progressiva durante o próximo ano para atingir a centena de ‘Mini Apps’ muito rapidamente.
E essas aplicações estão disponíveis via USSD, uma vez que no meio rural não existe ainda acesso massificado à Internet?
Sim, no meio rural a penetração de smartphones é inferior à dos meios urbanos. Portanto, quando pensamos em plataformas e na ‘Super App’, não podemos esquecer essa realidade. E para responder a isso, o nosso negócio enquanto plataforma apresenta-se com três canais, sendo que dois deles estão disponíveis nas zonas rurais e, ainda que tenha alguma limitação na experiência do utilizador, são robustos o suficiente para apresentar muitos destes benefícios para a população que utiliza primordialmente o USSD. E depois há a rede de agentes que vai começar a vender muitos destes serviços. Vamos apostar também em continuar progressivamente a capacitar essa rede para providenciar serviços mais especializados e que necessitam de um contacto humano dentro da nossa plataforma. A especialização que queremos trazer para a rede de agentes estende-se a todos os serviços que necessitem de uma interacção humana, o que transforma a rede de agentes num elemento fundamental da plataforma. E isto completa aquilo que é o pensamento de plataforma enquanto M-Pesa. No entanto, tudo isto precisa de uma aceleração da digitalização dessas zonas rurais também. O que implica a educação, que é muito importante, mas também a melhoria dos aparelhos usados. Felizmente a nossa estratégia decorre em paralelo com a da Vodacom para proceder com essa aceleração e temos um serviço que se chama ‘Pouco Pouco’, que passa pelo financiamento de smartphones à população rural. E depois o caminho será alargar os serviços. Se em ambiente urbano faz sentido ter um serviço como o do Txuna, que é um financiamento ao consumo, no meio rural terá toda a lógica criar serviços de financiamento ligados à agricultura, por exemplo, e aqui, a rede de parceiros na plataforma é fundamental. Já existem alguns modelos em modo experimental a avançar, por exemplo com a Portucel Moçambique, em que estão a criar soluções de pagamento com serviços financeiros associados utilizando à nossa plataforma. Por isso o M-Pesa abriu-se para ir buscar o máximo possível de parceiros para poder amplificar o acesso.
A banca pode ser um parceiro desta estratégia?
Já o é, como disse, através do Txuna, mas há espaço para mais, claro. O maior problema é que continuamos a identificar, e isso está associado a alguma estagnação do crescimento do sector bancário em termos de inclusão da população, é que há um rol de serviços que predominantemente são fornecidos por bancos a que a generalidade da população continua a não ter acesso, exactamente pelas ineficiências que a capilaridade do sistema bancário tem neste momento. Porque a realidade é que o número de balcões não aumentou e o de ATM decresceu de forma bastante visível nos últimos anos. Isto significa que pode haver uma integração cada vez maior entre o sistema financeiro e as carteiras móveis para conseguirmos começar a trazer estes serviços e a aumentar a capilaridade. Este será o grande exercício que tem de ser feito nos próximos anos e é nisso que queremos continuar a ser líderes. Creio que tem de haver uma adaptação progressiva do sistema bancário para oferecer mais serviços através destes canais, de integrar-se melhor e de se abrir mais para as carteiras móveis, mas tem de haver também espaço e um quadro regulatório favorável a isto ocorrer para começarmos a criar instrumentos financeiros que possam suportar o crescimento económico da população de baixa renda. E é para aí que nós temos que virar, a inclusão financeira também é isso.
Até porque inclusão financeira serve para isso mesmo, incluir…
Sim, acreditamos que inclusão financeira é um conceito mais abrangente que apenas só o número de balcões, ATM, POS, ou o número de pessoas com contas bancárias e móveis. Entendemos o conceito como o número de pessoas, empreendedores, micro e pequenas empresas com acesso a financiamento, o número de pessoas com seguros, ou com uma conta poupança de algum tipo. Estas métricas são fundamentais para medirmos a efectividade do que estamos a fazer. A plataforma está aberta e disponível para que os serviços dos bancos possam ser tramitados e colocados, há disponibilidade de toda a nossa base de clientes. Nós, M-Pesa, não temos ambição nenhuma de estar licenciados para financiar ou adquirir depósitos. O nosso negócio é atribuir e garantir acesso e criar uma plataforma onde as entidades possam interagir. E ela está criada. Portanto, neste momento a abertura do nosso lado é plena para que qualquer entidade financeira possa vir colocar os seus serviços através da nossa plataforma e, assim, ajudar à inclusão de milhões de moçambicanos dos meios rurais no sistema financeiro.
Daqui por cinco anos, em que ponto estará o M-Pesa?
O nosso plano é que, efectivamente, seja uma plataforma que presta serviços que tragam valor acrescentado a todo o ambiente rural, com as funções específicas que têm de existir lá, e muito mais adaptadas a essa realidade de milhões de pessoas. Para que tenhamos a generalidade da população que hoje vemos a ter acesso a uma carteira móvel, a poder usufruir de serviços e instrumentos financeiros que tenham impacto na sua actividade e nas suas vidas. É nisso que acreditamos e para o qual trabalhamos.
Texto: Pedro Cativelos • Fotografia: Paulo Alexandre