Clara Ramalhão é um exemplo raro de como a dedicação às ciências exactas pode, e no seu caso só deve, coexistir com a paixão devota, e realizada, pela Arte enquanto bem maior e supremo instrumento da verdadeira cura do Ser.
Médica Neurorradiologista no Hospital Pedro Hispano, com ligação académica ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) da Universidade do Porto, a verdade é que, sob o olhar de Clara Ramalhão, a imagiologia, a especialidade clínica pela qual é reconhecida profissionalmente, ganha toda uma verdade pluridimensional, tornando-se viva, nómada, eternamente errante. Em retratos fotográficos, frases e acções a que foi dando vida e corpo, ao longo dos anos.
Alma Africana
Clara nasceu em Moçambique, e esta ligação íntima, nada ínfima, com o continente africano, torna-se demasiado evidente, e transversal, ao seu trabalho clínico, e também artístico. As suas séries fotográficas frequentemente divagam sobre o Continente, como na exposição “Gentes e Lugares que se Cruzam num Cenário Ocre”, que destaca a vida e as paisagens do deserto do Saara e da Jordânia, sendo um tributo visual às tonalidades ocre e à vibrante cultura muçulmana desses locais.
No âmbito clínico, sempre humano, desenvolve projectos de cooperação e de apoio ao desenvolvimento humano do País que a viu nascer e que foi vendo, de longe, enquanto cresceu -, ao nível da formação de médicos e técnicos em Imagiologia Hospital Central de Maputo, desde 2009, tendo criado com pioneirismo em toda a África Subsaariana o primeiro projecto de cooperação desta especialidade, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian -, e que agora replica na Guiné Bissau, no Serviço de Imagiologia do Hospital Simão Mendes, a convite do Ministério da Saúde local, desde 2023. Desse trabalho surgia em 2016 a ONGD Massala – Associação de Médicos no Abraço a Moçambique -, que tem como propósito a melhoria dos serviços de saúde no País através de tecnologias de imagiologia avançadas para detectar a Papilomatoses Laríngeas, uma lesão tumoral, por norma benigno, mas com potencial morbimortalidade em função da possível malignização, quando não identificado e atempadamente tratado. Hoje, o projecto integra uma acção com horizonte alargado, o “Plano Nacional de Rastreio e Tratamento de Crianças com Papilomatoses Laríngeas”, sendo apoiado pelo Millennium bim. “É um projecto que não só fortalece os laços entre Portugal e Moçambique, mas também proporciona diagnósticos mais precisos e tratamentos mais eficazes para as comunidades locais e, certamente, já tem salvo muitas vidas, e continuará a fazê-lo”.

Edificado no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Central de Maputo, em Junho de 2018, este novo serviço é, na verdade, o resultado concreto de um trabalho de vários anos em Moçambique e, durante a última missão, a ONGD organizou e realizou uma Missão Médica no País. “Esta missão foi um enorme sucesso que resultou de um processo de cooperação excepcional com as equipas de médicos moçambicanas e foi realizada no Centro de Diagnóstico e Tratamento das Papilomatoses Laríngeas no Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Central de Maputo”, recorda.
Tratar e retratar
Durante esse período, Clara e a sua equipa realizaram intervenções cirúrgicas em cerca de 30 crianças. “Somos um grupo de médicos que, de forma altruísta e de coração aberto, procura responder às áreas de maior carência na saúde da população moçambicana”, explica. “Venho para cá já há muitos anos. Este País chama-me, desde sempre, por razões afectivas e familiares, primeiro, e hoje em dia, porque me apaixonei por ele, pelas pessoas, pelas imagens que aqui vejo, e por aquilo que me fazem sentir. Gostaria de devolver isso, a esta terra e a estas pessoas. Estamos juntos e conscientes da causa nobre que abraçamos, com a promessa de avançar com convicção e há que agradecer aos parceiros que apoiaram na aquisição dos equipamentos, que são caros, aos voluntários que vieram comigo de Portugal e, claro, aos médicos e equipas de apoio moçambicanas que estiveram connosco e que continuam desde o ano passado este trabalho de melhorar a vida daqueles que procuram os seus cuidados no Hospital Central de Maputo”.
Clara e a equipa de médicos que a acompanhou, realizaram, no ano passado, intervenções cirúrgicas em cerca de 30 crianças moçambicanas com ‘Papilomatoses Laríngeas’, doença que, quando não diagnosticada ou tratada em tempo útil, pode ser fatal
Aqui, o trato encontra o retrato. Estão ambos sempre presentes no olhar de Clara, e ambos resultam da incessante viagem na busca pela cura. Aconteça ela pela via da ciência, pelos caminhos da boa vontade ou pelos inexplicáveis mistérios da arte e de como ela nos faz sentir vivos, humanos ou inteiros. “O enfoque primordial do meu trabalho é o gesto, a cor da expressão, o olhar do outro, percepcionados pelo meu”.
E é aqui, no constante diálogo entre a realidade, a imagem e as palavras que reside a sua verdadeira forma de expressão artística, uma consequência da aprendizagem sistémica do seu dia-a-dia como médica, de um fim para ela, ou uma continuidade para o tudo, que desconhece. “Não sei, há de facto similitudes que, quando penso sobre elas e quando vivo o que sinto, vou descobrindo, entre a prática clínica e a criação, ou a recriação, que acontecem na fotografia e no que escrevo. Acho que tudo se inicia na forma como percepciono o mundo. Não a tento explicar, tento, sim, viver essa forma de estar, de ser”.
Nessa espécie de mecanismo intrínseco que só encontra explicação quando não se tenta fazê-lo, é na viagem que percorre, sinuosa mas não errante, pela vida, que residem as perguntas por responder e, mais do que tudo, as respostas por apreender. “A vida encanta-me. Não sei de onde vem, nem porque a procuro. Mas sei que a encontro, muitas vezes, em olhares, muitas deles em Moçambique, e só tenho pena de não a conseguir reproduzir em todo o seu esplendor, porque é maior que as palavras que escrevo e as imagens que retrato”.


Vida e obra itinerantes
Prefere habitualmente os grandes formatos (optando quase sempre pelo semi-brilho e aplicação em Dibond) que considera a escolha mais certeira para a expressão das suas imagens, procurando assim transmitir, na relação o mais directa possível, a paixão que imprime ao que faz e, ao mesmo tempo, “honrar a grandiosidade do que o seu olhar vai captando”. As suas obras têm sido exibidas em locais prestigiados como a Ordem dos Médicos no Porto e o Museu do Douro (em Portugal). Em Maputo, no Camões IP, e em vários outros lugares como, ainda recentemente, no Museu dos Clérigos. “A fotografia permite-me congelar momentos efémeros, transformando-os em memórias eternas”.
De emoção à flor da pele, mas em convivência permanente, “nem sempre pacífica” embora sempre conivente, com a razão, a sua vida, a sua obra e os seus resultados, em livro, exposição ou beneficiários das suas artes, são, diz, “a materialização de um sonho” que não lhe custa identificar: “poder partilhar com o mundo as ‘minhas’ imagens envoltas numa mensagem muito própria, e a minha relação profunda, umbilical e sanguínea com África e as suas gentes”.
Texto: Pedro Cativelos