A revista estava em fecho. O editor já tinha enviado várias mensagens a pedir o texto. Não havia texto. O texto não tinha sido escrito. “Amanhã de manhã sem falta envio-te”.
As culpas do atraso já se tinham transformado em desculpas.
E desculpas, se pensarmos bem, também são textos. São palavras a explicar. A justificar.
Mas o ponto é que nenhum texto existe.
Até ser escrito.
Os escritores e redactores vivem nessa ansiedade todos os dias.
E por mais incrível que seja, só dessa ansiedade saem os textos.
Escrever é a essência da comunicação. Na verdade, não se trata de escrever, mas sim de dizer. Falar.
Que no fundo é muito mais. Contar. Explicar. Argumentar. Responder. Afirmar. Expressar. Declarar. Afirmar. Mencionar. Relatar. Revelar. Discutir. Conversar. Comunicar. Informar. Dialogar. Declarar.
E há muitas mais palavras nessa linha. Não é preciso armazenar todas na cabeça. Nem fingir que se é uma enciclopédia. Ou fingir que se é inteligente. É só perguntar ao ChatGPT e aparece uma lista gigante.
A palavra anunciar também surge nessa lista.
E anunciar é dizer.
Estamos também numa fase muito interessante. Onde tudo está a mudar a uma velocidade nunca antes vista. Redes sociais. Inteligência Artificial. Aplicações para tudo e mais alguma coisa.
Chega-se a tal ponto que nem a própria coisa sabe o que é. Porque todos os dias já é outra coisa.
A indústria publicitária global tenta adaptar-se.
No fundo, finge que consegue acompanhar.
E isso também criava pressão no escritor. Porque seria tão artificial como a própria tal “inteligência” fingir que se sabe tudo o que se está a passar.
E quando se entende o que se passa, até isso já passou. Ninguém de facto pode afirmar ao certo que consegue saber onde vai estar a humanidade nos próximos dez a vinte anos.
Antes era possível prever com base nos ciclos históricos. Desta vez não.
O consumo dos media digitais está a mudar os hábitos de tal forma que nem os hábitos se habituam.
Ou, como se diz localmente, “nem o costume acostuma”.
O dia-a-dia, neste caso, o dia-a-noite de quem trabalha numa agência de comunicação não ajuda.
O escritor estava sem texto.
O escritor estava sem texto. E sem tempo.
O editor estava sem tempo. E sem texto. E com uma revista para lançar. Impressa e digital. Escrever, na publicidade, é conhecido como a actividade do copywriting. Ou na linguagem comum do dia-a-dia, o copy.
O copy é a mensagem. O principal elemento da argumentação.
E por isso carrega uma enorme responsabilidade.
Não se pode dizer qualquer coisa.
O melhor copy é o mais honesto. O mais puro. O mais sincero. E acima de tudo é a voz da pessoa que o escreve. Outra coisa interessante sobre escrever é que comunicar não se limita a escrever. Os publicitários conseguem escrever ou dizer com imagens apenas. Ou com sons.
Ou com qualquer coisa que apele aos sentidos humanos desde que faça sentido.
Por isso se diz, comunicar não é o que a gente faz. É o que os outros entendem.
O escritor sem texto e em desespero decidiu recorrer à Inteligência Artificial e, em vez de escrever um texto, escreveu um prompt: por favor, escreve um texto com feeling sobre marketing com o máximo de duas a três páginas e 2000 caracteres.
Em segundos apareciam textos. Textos e textos. Mas não aparecia o tal feeling. E isso levantou muitas outras questões. E essas questões tinham de ser feitas com texto e respondidas com texto também. No caso de escrever para algo que seja publicado.
A pressão voltou. Como explicar o que não se explica? Como explicar o que se sente?
O escritor pensou no que sentia. Mas só sentia o que pensava.
Começou a fazer perguntas a si mesmo: como se pode chamar inteligência de inteligência, se é artificial? Afinal, a palavra artificial significa algo não natural. O escritor pegou num aplicativo de A.I. e perguntou o que quer dizer a palavra artificial. E a resposta foi: que não é natural. Dissimulado, fingido.
Então, nesse momento, percebeu que, além de não sentir, a inteligência artificial também não pensa também. E começou a pensar mais nisso. Afinal, artificial é sinónimo de falso.
E pensou em coisas como fogo-de-artifício. Que é bonito de ver. Mas é artificial. E polui o ambiente. A natureza. E isso sim é natural. O planeta. O mundo. O universo.
Lembrou-se de como mais bonitas que o fogo-de-artifício. eram as estrelas cadentes, numa noite escura, no meio de uma reserva natural.
Tentou pensar em mais coisas. Em quão artificial a humanidade pode estar a ficar.
Texto e contexto.
E em vez de escrever sobre inteligência artificial, achou melhor escrever sobre inteligência natural. Foi mais fundo e pensou nos contornos que tudo isso teria localmente num país como Moçambique.
Pensou nos milhões de pessoas, lá, nos distritos, nas províncias. Fora da bolha das grandes cidades, como Maputo. Que já está a ficar tão artificial como essa tal inteligência.
Respirou fundo. Pegou na caneta e no bloco. Abriu o laptop com um blank document.
Tudo para ser escrito sobre um novo tema: inteligência local.
O telemóvel começou a tocar. Whatsapp a entrarem. Havia uma urgência. Era preciso entregar outros textos mais urgentes ainda.
Teve de parar.
E o texto, naturalmente, não foi escrito.