Os últimos anos são caracterizados por avanços importantes nas políticas de emancipação económica da mulher, mas, paradoxalmente, a desigualdade de oportunidades não diminuiu. Porquê? Falta monitorização e envolvimento da sociedade, constata o Fórum Mulher.
O Fórum Mulher é uma rede feminista de organizações da sociedade civil que promove a igualdade de género e os direitos humanos das mulheres em Moçambique. Tem representação a nível nacional através de fóruns e núcleos provinciais. Os seus objectivos incluem contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária, onde as mulheres gozam do direito a uma vida livre de violência, exercem os seus direitos, a sua autonomia económica e a sua cidadania. Pretende também influenciar as decisões políticas, as atitudes e comportamentos da sociedade com vista a um maior reconhecimento e observância dos direitos das mulheres. Como é que esta entidade percepciona a posição da mulher na sociedade moçambicana? É o que vai saber na voz da directora executiva do Fórum Mulher, Ndzira de Deus.
As mulheres trabalham muito, mas são mal pagas. O relatório do Banco Mundial indica que o problema de raiz é a mulher estar presa ao trabalho doméstico e como cuidadora de crianças. Concorda?
A sobrecarga do trabalho das mulheres e a desvalorização do “trabalho de cuidado” é algo para que temos chamado a atenção há vários anos. O trabalho das mulheres muitas vezes é invisível ou ‘invisibilizado’ pela sociedade. Refiro-me ao cuidar da casa, das crianças, do parceiro, de pessoas vulneráveis na comunidade (doentes, idosos, etc.), tarefas que são atribuídas às mulheres. Aliás, são entendidas como naturalmente atribuíveis a elas. E nós, como defensoras dos direitos humanos, não concordamos, porque a economia só sobrevive graças a este trabalho invisível das mulheres. A nosso ver, a economia explora o trabalho feminino e este sistema capitalista vai enriquecendo. E aqui ainda nem nos referimos à gestação, que também é um custo de nove meses para trazer mais um recurso humano à sociedade. Então, o Banco Mundial volta a trazer-nos uma constatação sobre a expectativa que todos temos em relação ao que deve acontecer para alterar este paradigma que, como disse, não é novo.
Geralmente, as mulheres confrontam-se com ameaças de que podem perder o emprego a qualquer momento. Isto torna-as vulneráveis e tolerantes a situações de violação dos seus direitos e a abusos no sector laboral
Haverá outras razões que fazem com que as mulheres tenham menores remunerações do que os homens, além da secundarização que mencionou do seu papel na sociedade?
É a desigualdade de género que origina esta desigualdade de oportunidades económicas. Habitualmente, usamos o termo “patriarcado” para explicar o fenómeno de colocar o homem no centro de tudo. Ou seja, é assumido que, só por ser mulher, a pessoa não necessita de ser remunerada de igual forma que o homem, porque não é igual a este. É uma discriminação deste sistema patriarcal que consideramos “irmão” do capitalismo, e que vai promovendo as desigualdades de género que se somam em diferentes sectores, níveis e escalas e criam a desigualdade económica. Se questionar qualquer instituição sobre a razão de as mulheres terem salários inferiores aos dos homens, mesmo fazendo o mesmo trabalho, muitas não terão resposta. É como um ‘mindset’ que se definiu, uma forma de pensar, em que a mulher “não precisa”, porque não tem as mesmas necessidades que o homem. Uma forma que definiu que o homem é o provedor e que a mulher apenas exerce trabalho complementar. É como se a sociedade negasse pagar o justo valor às mulheres por não concordar que ela tenha tanto valor quanto tem na realidade. Esta luta é antiga e foi a partir desta reivindicação que surgiu o 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.

Acredita que alguma vez se vai conseguir alterar esta situação?
Esta luta tem de ser feita por todos. Primeiro, alguns homens têm de aceitar perder alguns privilégios. Ou seja, aceitarem que, na mesma organização, terão remunerações niveladas às das mulheres, e isso implica aceitar perder a vantagem que têm sobre ela. Será preciso desfazer as tentativas de subalternizar a mulher e subordiná-la a um segundo grau. Há uma necessidade de mudar a mentalidade e isto só acontece quando há vontade. À medida que avançamos na luta pelos direitos iguais, discutimos e falamos, mas, do ponto de vista objectivo, ninguém aceita perder o poder a favor da mulher. Por isso, é uma luta muito dura, a que as mulheres têm de travar, ao lado dos homens, que também percebem a vantagem disso. Por outro lado, é desinteligente para um Estado não considerar as mulheres como parceiras na luta pelo desenvolvimento. À medida que lhes retiramos os direitos, estamos a perder quadros valiosos que poderiam contribuir para acelerar a economia. Países mais atentos e que estão a progredir estão a tomar medidas mais focadas na igualdade de género. Não tem sido um processo fácil, mas começa pela mudança de atitude e por políticas públicas com monitorização.
Há quem acredite que criar creches e jardins de infância pode funcionar como um nivelador da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, olhando mesmo para a vocação feminina como cuidadora. Concorda?
Temos estado também a questionar esta noção de remeter a mulher a este papel de cuidadora e de reprodução, limitando-a de explorar outras áreas públicas e políticas. Nas últimas décadas, a luta tem sido por desconstruir esta noção, promovendo programas que possam destacar mulheres noutras áreas tipicamente de influência masculina, porque, afinal, elas podem ser o que quiserem. Isto é, a sociedade não pode impor às mulheres o lugar onde elas devem estar, mas deve haver condições para que explorem todos os talentos, aptidões e capacidades que tiverem. Mas para isso, é preciso que haja uma intervenção administrativa de reparação como, por exemplo, estabelecer que uma quota de 50% das vagas de admissão nas engenharias deve ser para mulheres. Além disso, mulheres que estejam em situação de gestação ou maternidade não devem ser limitadas de finalizar a sua formação ou de exercer a sua função. Por isso, são necessárias políticas, medidas ou estratégias que permitam que a mulher consiga exercer o seu talento ao máximo. Importa recordar que uma sociedade só o é porque as mulheres podem ter filhos. No dia em que elas decidirem suspender essa função vamos ter uma séria crise de recursos humanos.
Que outras políticas de equilíbrio entre vida profissional e pessoal poderiam ajudar a reduzir a diferença salarial?
É importante investir em creches públicas, que são fundamentais, e criar espaços para que a família possa colocar as crianças enquanto a mulher estiver no trabalho. Outra alternativa é a criação de cantinhos para que a mulher tenha a possibilidade de amamentar e cuidar dos bebés. Já há melhorias na questão da licença de maternidade e isso dá a possibilidade de esta recuperar no período pós-parto, restabelecer-se e voltar ao trabalho. Isto mostra um reconhecimento do Estado pelos direitos da mulher. Também se deve prover o subsídio de maternidade e paternidade para lidar com custos adicionais de mais um membro da família. Aliado a isso, é fundamental que haja mudança de mentalidades a favor da partilha de tarefas domésticas e de trabalhos de cuidados, o que se faz através de políticas e da educação social, desconstruindo os tabus de que os homens não têm vocação para executar estas tarefas. Não se pode olhar para a função de cuidar da família como se fosse menos importante. Há mulheres que preferem dedicar-se à família e à casa. Para estas, devia haver algum subsídio, porque os que saem para trabalhar no dia-a-dia dependem do trabalho doméstico da mulher.
A posição de poder evoluiu e vai fragilizando a mulher ao negociar um emprego e salário. A mulher confronta-se com ameaças de que pode perder o lugar a qualquer momento, o que a torna mais vulnerável
A tendência dos últimos anos tem sido para a situação melhorar ou piorar em termos de igualdade de género?
Infelizmente, não tem melhorado. Por exemplo, há um fenómeno que afecta bastante as desigualdades, abalando, sobretudo, a mulher rural: são as mudanças climáticas. Enquanto este fenómeno dificultar o processo produtivo da mulher camponesa, não temos como ver a situação melhorar. Paralelamente, por causa da alta do desemprego, assiste-se a actos de corrupção crescentes, em que se cobra por uma vaga de trabalho, sem falar no assédio a que as mulheres estão sujeitas no local de trabalho.
Esta situação leva a que as mulheres não tenham a mesma confiança que os homens para negociar os seus salários?
Com mais conhecimentos sobre os seus direitos, as mulheres tendem a desenvolver essa confiança. Mas há uma tendência de o patriarcado e o capitalismo se reinventarem. Ou seja, a posição de poder que têm evolui e vai-se mascarando, fragilizando a posição da mulher ao negociar um emprego e salário. Geralmente, as mulheres confrontam-se com ameaças de que podem perder o lugar a qualquer momento. Isto torna-as vulneráveis e tolerantes a situações de violação dos seus direitos ou abusos no sector laboral. Aliado a isso, as mulheres são menos letradas que os homens em termos de educação formal. Isto faz com que entrem no mercado de trabalho numa posição frágil. É mais difícil para uma mulher estudar fora, porque, geralmente, tem de cuidar da família. Nestas condições, não há como competir com os homens que dispõem dessas oportunidades. Por isso, as instituições têm de desenvolver políticas de incentivo às mulheres e tem de haver muita compreensão da sociedade.
Qual tem sido a vossa experiência? O Fórum Mulher tem sido ouvido?
Quando falamos de Fórum, não nos referimos a um gabinete, mas a um movimento de mulheres de todo o País no sector formal e não formal. É um espaço em que nos articulamos e debatemos as nossas preocupações com as autoridades competentes. Por exemplo, agora estamos a celebrar uma vitória na Lei do Trabalho, em que tivemos de levar 15 anos a reivindicar 90 dias de licença de parto, a tentar explicar que 60 dias eram insuficientes, de acordo com estudos feitos pelas Nações Unidas. Somos ouvidas, de certa forma, porque existe abertura do Governo e do Parlamento para compreender o que dizemos. O grande desafio é a implementação, porque a monitorização das legislações e políticas aprovadas a favor da emancipação da mulher é fraca, bem como a responsabilização.
Texto: Celso Chambisso • Fotografia: D.R.