Se os jornalistas africanos são dos primeiros a sofrer a fúria e a censura das autoridades, os cartoonistas do continente ainda se sentem livres para serem irreverentes.
De espingarda ao ombro, o Presidente [do Uganda, Yoweri Museveni] é retratado como um agricultor e o seu país como uma vaca leiteira. O irmão [Caleb Akandwanaho, conhecido como Salim Saleh, um dos empresários mais ricos do país, envolvido em numerosos casos de corrupção] é caricaturado com óculos de sol a olhar para o fundo nacional de pensões. Quanto ao filho [Muhoozi Kainerugaba, provável herdeiro político do pai] é um bebé que usa um boné militar enorme e ainda não sabe atar os sapatos.
É assim que eles são representados por Chris Ogon Atukwasize, o lápis mais afiado do Uganda. Com a assinatura Ogon, estas caricaturas, publicadas no Daily Monitor, um jornal de Kampala, denunciam a corrupção e abalam os poderosos. No ano passado, soldados raptaram e torturaram o autor [Kakwenza Rukirabashaija] de um romance satírico [The Greedy Barbarian / “O Bárbaro Ganancioso”], cuja capa havia sido ilustrada por Ogon. Em resposta, este publicou o cartoon de um torturador, representado na forma de um Minion, personagem do filme de animação Gru-O Maldisposto, esforçando-se para decifrar este livro considerado ofensivo.
Criticar as autoridades não é totalmente proibido no Uganda. No entanto, sob o regime de Yoweri Museveni, um antigo rebelde que conquistou o poder pela força [numa guerra que causou mais de 100 mil mortos, entre 1980 e 1986] e o conserva há 37 anos, é preciso muitas vezes procurar a verdade nas entrelinhas. E os cartoonistas aproveitam-se bem dessa ambiguidade: num desenho tudo pode estar implícito. Os ilustradores usam a sua relativa liberdade para ir mais fundo do que a maioria dos jornalistas na região.
De início, Ogon queria apenas desenhar. Mas “há sempre uma causa a defender”, justifica. É uma situação que se aplica a toda a África, onde os satiristas são frequentemente críticos pertinazes das falhas da sociedade e da classe política. “Os ilustradores usam as imagens como se fossem máscaras, escondem-se para melhor se revelarem”, diz Ganiyu Jimoh, ele próprio cartoonista e intelectual nigeriano.
O humor e as insinuações dos cartoons da imprensa são comparáveis à tradição das máscaras do povo iorubá [um dos maiores grupos étnicos africanos, presente sobretudo na Nigéria] com que actores de rosto encoberto ridicularizam os poderosos. Ou, como diz um provérbio, Oba kii um onkorin, “o rei não prende um satírico”.
Os primeiros cartoons na imprensa africana foram obra de colonos brancos e, na maioria das vezes, eram racistas. Na década de 1930, artistas negros começaram a publicar cartoons políticos na Nigéria e na África do Sul. A verdadeira era de ouro destes desenhos só começou, porém, na década de 1990, quando uma onda de democracia iluminou o continente. Nos países francófonos, multiplicaram-se os jornais satíricos, inspirados no parisiense Le Canard Enchaîné. O personagem Goorgoorlou [a raiz, wolof góór, significa “homem”, portanto goorgoorlou! traduz-se por “sê um homem!”], o desconhecido senegalês criado por Alphonse Mendy [caricaturista do semanário Le Carfard libéré, de Dakar], encarna as dificuldades económicas do século XX e foi até adaptado para televisão.
Os satiristas não escondem as suas opiniões políticas. Na África do Sul, o mais famoso é Jonathan Shapiro, mais conhecido pelo pseudónimo Zapiro, este activista branco, autodidacta e anti-apartheid, começou a desenhar na década de 1980, depois de ter sido forçado a cumprir o serviço militar. [Hoje, é o cartoonista editorial do site Daily Maverick.]
Comentários escondidos
No Quénia, os cartoonistas abalaram os muros do autoritarismo quando começaram a caricaturar o Presidente. “Um cartoon é como o menino do conto [de Hans Christian Andersen], que ousa dizer, o rei vai nu”, comenta Godfrey Mwampembwa, nome artístico Gado, considerado o mais importante satirista da África Oriental e Central.
Hoje em dia, a maioria dos países africanos tem eleições livres e uma imprensa independente. No entanto, em muitos Estados, a democracia é apenas uma camada fina de verniz que os cartoonistas raspam com os seus lápis afiados. Mesmo nas sociedades mais tolerantes, a sátira está por vezes sujeita a pressões políticas.
Jacob Zuma, Presidente da África do Sul de 2009 a 2018, tentou processar Zapiro, quando este o colocou a violar uma figura que representava a justiça. [Em 2005, quando era vice-presidente, Zuma foi formalmente acusado de ter violado uma amiga da família, de 31 anos; no ano seguinte, foi absolvido por um tribunal de Joanesburgo.] Gado também se meteu em apuros em 2015, depois de caricaturar o então Presidente tanzaniano [John Magufuli], desenhando-o seminu, como um libertino a ser provocado por três mulheres com os nomes de “Nepotismo”, “Incompetência” e “Corrupção”. O semanário queniano The EastAfrican, onde o cartoon foi publicado, acabou proibido na Tanzânia e Gado perdeu o emprego no ano seguinte.
Não deixou, porém, de desenhar. Ultimamente, tem atacado a legislação homofóbica do Presidente Museveni. Aprovada, em 21 de Março, pelo Parlamento do Uganda [um país predominantemente cristão e ultraconservador], a nova lei condena a prisão perpétua ou pena de morte os acusados por actos sexuais entre pessoas do mesmo sexo [uma decisão sem precedentes desde a independência, em 1962, apesar de a homossexualidade nunca ter deixado de ser um crime, como instituíram as autoridades coloniais britânicas.]
Como a maior parte dos cartoons da imprensa, os de Gado dissimulam comentários incisivos. Muitas vezes encontramos um pequeno personagem rabiscado num canto, que comenta a cena com ironia. “É o meu alter ego”, diz, maliciosamente. “De início, eu anotava certas coisas que não me comprometiam, porque os editores não estavam atentos”, explica.
Com o passar do tempo, tornou-se uma técnica adicionar uma dimensão extra ao trabalho. O que faz a força dos desenhos humorísticos, acrescenta, é “serem abertos à interpretação”. Esta ambiguidade revelou-se muito útil para o cartoonista Tony Namate, do Zimbabué, para quem o papel da sátira “é rebentar a bolha política”. A redacção do jornal onde trabalhava já se viu cercada por uma multidão de veteranos de guerra. Um dos seus empregadores acabou em tribunal por causa de um dos seus desenhos, que mostrava Robert Mugabe [1924-2019] a ser perseguido por uma turba enfurecida. Como os procuradores não conseguiram provar que a caricatura representava realmente o Presidente, as acusações acabaram por ser retiradas.
Cartooning for Peace
Quase todos os cartoonistas africanos partilham agora o seu trabalho na Internet, especialmente quando os desenhos são vistos como demasiado controversos para serem impressos. “Se não puder ser publicado, não há problema, basta partilhá-lo nas redes sociais”, declara Celeste Wamiru, artista queniana.
No Twitter [agora “X”] e no Facebook, os desenhos parecem ganhar vida própria e libertam-se das amarras dos media em papel, para flutuarem num oceano de memes. A sátira adopta novos modos de expressão. Em Abril, o cartoonista ugandês Jimmy Spire Ssentongo convidou os moradores de Kampala, a capital, para uma exposição virtual dos buracos na capital. Fotografias de estradas esburacadas inundaram as redes sociais, levando o Presidente a prometer, de imediato, medidas [para resolver o problema].
A comunidade de cartoonistas africanos está a crescer, em parte graças a outras redes, como o Cartooning for Peace [de que fazem parte os portugueses André Carrilho, Cristina, António, António Jorge Gonçalves, Daniel Garcia, Gargalo, Pedro Ribeiro Ferreira e Rodrigo], uma associação com sede em França [fundada por Plantu em 2006, depois da polémica gerada pelos cartoons de Maomé no jornal dinamarquês Jyllands-Posten].
Mas ainda faltam algumas vozes. Há uma predominância de homens, por vezes rápidos a apresentar imagens sexistas ou metáforas obscenas. Em 2011, Celeste Wamiru tornou-se a primeira mulher cartoonista na África Oriental (publica os seus desenhos no People Daily, em Nairóbi). As mulheres, queixa-se ela, são ensinadas a “adoptar uma postura passiva e seguir a corrente”.
Um dos seus cartoons mostra uma mulher carregando a família aos ombros, incluindo o marido, que sonha tranquilamente com dinheiro numa cesta. A tarefa de um(a) cartoonista nunca está terminada. Ogon deplora o estado da classe política no Uganda, que continua corrupta como quando ele começou a desenhar. E embora os seus desenhos escandalosos por vezes suscitem raiva, outras vezes ele recebe telefonemas de fontes bem colocadas que desejam revelar-lhe informações anonimamente. “Não desista”, incentivam-no.
Fonte: The Economist • Autor: Sem assinatura