Nos últimos dois anos, a Autoridade Reguladora da Concorrência passou a fazer parte do dia-a-dia em Moçambique. Trata-se de um organismo público criado para disciplinar a actividade empresarial, prevenindo práticas anticoncorrenciais. Mas como é que o faz? É o que nos explica o presidente, Iacumba Ali Aiuba.
A Autoridade Reguladora da Concorrência (ARC) foi criada em 2013, mas a sua operacionalização só teve início em 2020. O objectivo é fazer cumprir um dos princípios consagrados na Constituição da República, que atribui ao Estado a autoridade de regular e promover o crescimento e desenvolvimento económico e social. Tal está previsto através de uma intervenção para prevenir e corrigir falhas e desequilíbrios que um mercado desregulado tende a produzir. Pretende-se garantir o funcionamento do mercado em regime de livre concorrência. Muitas das distorções de mercado não vêm à tona, mas o presidente da ARC, Iacumba Ali Aiuba, garante que existem e que a situação tende a mudar.
A ARC foi criada em 2013 para disciplinar a concorrência entre as organizações, mas só entrou em actividade em 2020. Porque levou tanto tempo?
A única explicação que posso dar é que isso depende das prioridades dos governos. A ARC foi aprovada no final do último mandato do anterior Presidente, Armando Guebuza, e depois, em 2015, começou um novo ciclo governamental. Mas só em 2020 foi nomeado o primeiro presidente da ARC. Então, posso especular que, provavelmente, a ARC não estava nas prioridades do Governo. O presidente eleito em 2020 cessou funções no ano seguinte, eu fui indicado para o cargo em Julho de 2021 e tomei posse em Agosto. A partir daí, as minhas prioridades foram criar condições para a implantação da ARC, aprovar os instrumentos de gestão, regulatórios e iniciar o processo de divulgação.
Olhando particularmente para Moçambique, quais são as práticas anticoncorrenciais mais comuns e em que sectores de actividade ocorrem com maior frequência?
As práticas anticoncorrenciais mais comuns em Moçambique resultam, essencialmente, das fragilidades da nossa estrutura de mercado e da vulnerabilidade da administração pública e da justiça. Temos um mercado informal que tende a minar o formal. Há a percepção de que existem práticas de conluio entre empresas – que estão em relação horizontal ou vertical [quanto à cadeia de produto] – e conluio em concursos públicos.
Que canais utiliza a ARC para detectar irregularidades de mercado e intervir? E como informa as empresas sobre as boas práticas da concorrência?
A Lei da Concorrência estabelece que sempre que a ARC, por qualquer via, tome conhecimento de fortes indícios de práticas anticoncorrenciais proceda à abertura de um inquérito notificando a parte visada e promovendo as diligências de investigação dessas práticas e sobre os respectivos agentes. Significa que a ARC pode receber denúncias, usando os canais formais de comunicação, e que nós fazemos também o acompanhamento do mercado através das redes sociais e dos meios de comunicação social. Também realizamos seminários e disponibilizamos material gráfico, preparamos guias de boas práticas de concorrência, tudo disponível na nossa página web. Fazemos ainda distribuição pelo público. Temos muitos processos contravencionais e denúncias porque, nos nossos seminários, as pessoas falam à vontade e acabam por colocar várias questões que as inquietam. Tomamos nota e damos o devido seguimento.
“A Lei da Concorrência estabelece que, sempre que a ARC tome conhecimento de fortes indícios de práticas anticoncorrenciais, proceda à abertura de um inquérito, notificando a parte visada”
Quanto é que a ARC já cobrou em multas e coimas? Quais foram as sanções mais pesadas?
A nossa função não é aplicar multas, por isso evitamos chegar a essa situação, sobretudo nesta fase de implantação, embora a lei o preveja. As penalizações podem ir até 5% do volume de negócios do último ano de cada uma das empresas ou do agregado de empresas que tenham participado em acções proibidas. Ao longo destes anos, só registámos dois casos em que tivemos de recorrer à multa, como último recurso, depois de esgotar todos os meios de diálogo e dissuasão. Além das multas, a lei prevê sanções pecuniárias obrigatórias para obrigar os infractores a cumprirem a lei.
Como se pode recorrer de uma decisão da ARC? É junto dos tribunais? Quais? Ou para que outras entidades?
Esta é uma entidade independente. Faz parte das práticas internacionais que as entidades reguladoras sejam autónomas e não dependam do Executivo para poderem actuar com isenção e transparência. Isto é assim em Moçambique e lá fora. Por exemplo, no fim de cada ano, elaboramos o relatório de actividades e contas e submetemos ao Governo que, por sua vez, remete à Assembleia da República. Ou seja, somos escrutinados pela Assembleia da República. Dito isto, as nossas decisões são passíveis de recurso junto de tribunais comuns, incluindo o Tribunal Administrativo, dependendo do caso.
Em que medida as empresas e outras entidades interessadas têm conhecimento profundo sobre as normas da concorrência? O cenário mudou muito desde 2013?
Mudou bastante. A promoção e defesa da concorrência é a nossa grande aposta, usando todos os meios e formas de comunicação. E assim que tomámos posse em 2021, iniciámos a divulgação da legislação da concorrência e da ARC, o que nos levou a percorrer todo o território nacional. Visitámos as principais cidades do País, realizando seminários com a presença de representantes dos governos locais, empresários, associações de empresas, académicos, estudantes e público em geral. Privilegiamos a publicação das nossas principais decisões sobre concentração de empresas e práticas restritivas de concorrência, como uma das formas de divulgação desta autoridade e das nossas competências. É por isso que, com muita satisfação, recebemos muitos processos de operações de concentração de empresas, denúncias e pedidos de intervenção e de pareceres, em matéria de concorrência, mesmo de entidades públicas.
Que exemplo concreto escolheria para demonstrar os resultados da acção da ARC?
No início das nossas operações, houve a tentativa de uniformização dos preços nas escolas de condução. Tivemos de intervir e, de facto, o cenário mudou, para frustração da Associação das Escolas de Condução. Fizemos isso porque as empresas têm o direito de actuar com autonomia. A sua liberdade não deve ser restringida pelas associações, porque isso traz distorções de mercado, dada a possibilidade de ocorrência de concertação de preços e conluios. Outro exemplo é o de Manica. Assim que fomos lá trabalhar, depois de um seminário que realizámos por recomendação da Associação Moçambicana dos Panificadores (AMOPÃO), cada pão que era vendido entre 10 e 12 meticais baixo para oito meticais.
“A mais recente intervenção da ARC foi na área de cimentos, quando revelou não se opor à venda da Cimentos de Moçambique a um investidor chinês, por não apresentar riscos ao mercado”
No âmbito da sua actuação, pode a ARC, por exemplo, facilitar a entrada de concorrentes nos serviços públicos de aviação ou electricidade?
Em princípio, a legislação da aviação civil permite a entrada de mais operadores no mercado. Entretanto, havendo questões ou matérias que devam ser revistas para a eliminação de eventuais barreiras, a ARC pode dar o seu contributo. Em relação à produção e fornecimento de electricidade, o mercado conta também com operadores privados. Provavelmente, refere-se à EDM, empresa pública de electricidade, verticalmente integrada. Certamente que quer saber se a ARC pode ajudar na liberalização da actividade de comercialização de energia eléctrica. Digo que sim. Podemos dar o nosso contributo, mas importa ressalvar que o ‘unbundling’ (desagregação) da EDM depende da visão do Governo em relação ao sector de electricidade.
Pode-se dizer que a ARC é contra práticas monopolistas, quer do Estado, quer do sector privado?
A questão de monopólio está associada ao risco de abuso de posição dominante. Em matérias de política de concorrência, essa é a tendência que se pretende evitar, quer seja no sector privado, quer no público. É uma conduta nociva ao mercado, pois prejudica o consumidor. É por isso que as autoridades da concorrência fazem o controlo de operações de concentração – um tipo de operação que consiste na aquisição de totalidade ou de parte do capital social de uma empresa, de direitos de propriedade ou qualquer outro que confira uma influência preponderante na composição ou nas deliberações. O controlo de concentração de empresas visa verificar se essa concentração é ou não susceptível de criar entraves significativos à concorrência efectiva.

E como é feito esse controlo?
Uma operação de concentração é comunicada à ARC no prazo de sete dias úteis, após a conclusão do acordo ou do projecto de aquisição que dá lugar à concentração, mediante o preenchimento de um formulário. Não é qualquer operação que é notificada à ARC, depende dos requisitos previstos no referido regulamento. Mas a Lei da Concorrência também prevê a notificação da operação de concentração por procedimento oficioso.
Recentemente, a imprensa publicou manchetes que revelavam que a ARC não se opõe à aquisição da Cimentos de Moçambique por capital chinês. Porquê? Se houvesse razões para uma decisão contrária, até que ponto a ARC teria força para impedir um negócio deste tipo?
Esta operação consistiu na aquisição pela Huaxin Cement de 100% das participações detidas pela InterCement Trading Inversiones na Natal Portland Cement – esta última detentora da Cimentos de Moçambique. A ARC tomou a decisão de ‘não oposição’, porque a realização da transacção projectada não é susceptível de criar ou reforçar uma posição dominante da qual possam criar entraves significativos à concorrência efectiva no mercado nacional ou numa parte substancial deste. Se esta transacção tivesse sido projectada por uma empresa do sector com posição dominante no mercado de produção de cimento, certamente que a ARC teria tomado uma decisão diferente.
Um dos desafios actuais das organizações, principalmente as reguladoras, é a digitalização dos seus processos. Como está a ARC neste aspecto?
Realmente, esta foi uma das nossas apostas quando tomámos posse. Desenvolvemos um Sistema de Informação da Concorrência, uma plataforma que nós designamos por e-Concorrência, que está na fase de teste. É constituída por três módulos e baseia-se nos princípios da desburocratização e simplificação de procedimentos administrativos. Estamos, igualmente, na fase de implementação do Sistema de Gestão Documental (SGD), que tem a função de tramitar processos, de acordo com o regulamento vigente na administração pública.
Que desafios prevalecem e como os ultrapassar?
Os principais desafios da ARC continuam a ser a divulgação da legislação da concorrência e a consolidação da instituição. Mas há outros desafios no contexto da Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA), cujo acordo – com os respectivos protocolos – foi ratificado por Moçambique em Dezembro do ano passado. No mundo global, constituem desafios os temas mais recentes em política de concorrência, por exemplo, a Inteligência Artificial, o combate aos cartéis, os mercados digitais e abusos de exclusão.