Desde o regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão, o vizinho Paquistão tem registado um recrudescimento de ataques terroristas no seu território, o que está a minar as relações bilaterais.
As relações entre Cabul e Islamabad deterioraram-se consideravelmente desde que os talibãs voltaram ao poder. E, no entanto, um dia depois de estes terem reconquistado a capital afegã, em 15 de Agosto de 2021, o então primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan [preso em 5 de Agosto último, por corrupção], foi dos primeiros a felicitar o Afeganistão por ter “quebrado as correntes da escravatura”.
Desde então, o tom mudou radicalmente. Islamabad advertiu Cabul para “as consequências dos ataques que, do outro lado da fronteira comum, estão a ser perpetrados pelo Tehreek-e-Taliban Pakistan (TTP)”, escreveu o diário Dawn, de Carachi, no final de Julho. Este aviso ilustra bem “as tensões crescentes” entre os dois vizinhos.
Os talibãs afegãos são um movimento predominantemente pashtun e muçulmano sunita, nascido em 1994 e considerado “uma criação dos poderosos serviços secretos militares paquistaneses” (Inter-Service Intelligences Agency, ISI), que durante anos os terão financiado, apesar de desmentirem estas alegações. O TTP é uma aliança de grupos armados islamistas, criada em 2007 como resposta às incursões do exército paquistanês nas suas áreas tribais, para expulsar forças afegãs, árabes e da Ásia Central que ali se haviam instalado.
Em Islamabad, o ministro da Defesa, Khawaja Asif, lamentou que “terroristas responsáveis por derramar o sangue de paquistaneses estejam a encontrar refúgio em solo afegão”, e alertou que o seu país usará “todos os meios possíveis” para retaliar. “Várias rondas negociais com os líderes talibãs não obtiveram quaisquer resultados” e “a paciência do Paquistão está a esgotar-se”, acrescentou Dawn.
No dia 6 de Setembro, o Paquistão encerrou o posto de Torkham, na província de Khyber Pakhtunkhwa, no Noroeste, principal passagem – e a mais importante rota comercial – da disputada fronteira de 2600 quilómetros com o Afeganistão, depois de uma troca de tiros entre forças de segurança afegãs e paquistanesas. Centenas de camiões transportando bens essenciais foram impedidos de entrar num país onde 20 milhões de pessoas – metade da população – sofrem de insuficiência alimentar e 97% vivem abaixo do limiar da pobreza, segundo a ONU.
O Paquistão justifica a sua decisão com um “tiroteio indiscriminado”, que terá sido iniciado por forças de Cabul, quando as de Islamabad tentavam destruir “estruturas ilegais [erigidas na zona fronteiriça] que violam a soberania nacional”. A versão dos talibãs, preocupados com “os prejuízos para ambas as partes”, é a de que os soldados paquistaneses começaram a disparar contra os afegãos que estavam a “reparar um velho posto de segurança”, segundo a agência Reuters e a Al Jazeera.
A realidade é que desde a queda do anterior governo do Presidente Ashraf Ghani em Cabul, o Paquistão tem vindo a registar um aumento de ataques no seu território. No dia 6 de Setembro, precisamente na província de Khyber Pakhtunkhwa, distrito de Chitral, o TTP reivindicou ataques a dois postos militares onde matou quatro soldados paquistaneses e roubou armas. O TTP, com estruturas de comando e operacionais autónomos, ajudou os talibãs afegãos a travar a guerra de 2001-2021 contra a presença das tropas estrangeiras lideradas pelos EUA. Porque partilha a ideologia dos talibãs afegãos, o grupo sentiu-se galvanizado pela vitória destes, porque está determinado a desmantelar o Estado paquistanês. Após seis meses de conversações de paz infrutíferas, rompeu um cessar-fogo em Novembro de 2022.
Na primeira metade de 2023, o TTP – que ganhou fama por, em 2012, à saída da escola, ter baleado na cabeça a jovem Malala Yousafzai (mais tarde galardoada com os prémios Nobel e Sakharov) – levou a cabo “mais de 270 ataques, dos quais resultaram quase 400 mortos e 655 feridos”, segundo um relatório divulgado, em Julho, pelo Instituto de Estudos de Segurança e Conflitos do Paquistão. Estes números representam um aumento substancial em relação ao mesmo período de 2022, quando o país sofreu “151 ataques, que causaram 293 mortos e 487 feridos”.
Em Maio, o TTP fez explodir dois estabelecimentos de ensino para meninas nas aldeias de Hassu Khel e Gul Mosaki, no distrito de Waziristão do Norte, a cerca de 30 quilómetros da fronteira afegã. Em Janeiro, um bombista suicida causou pelo menos 50 mortos e 150 feridos ao rebentar com uma mesquita na cidade de Peshawar.
Os interesses da Índia
Durante décadas, Nova Deli acusou Islamabad de fazer “exactamente a mesma coisa”, ou seja, “servir de base de retaguarda a inimigos da Índia”, lembra o jornal online The Print. “Depois de terem apoiado os talibãs contra os EUA e os governos eleitos do Afeganistão, os dirigentes paquistaneses pensavam que tinha chegado a sua hora”, acrescenta, com ironia, este portal indiano.
No entanto, a recusa em expulsar extremistas do seu território, acreditando que poderia, sempre que quisesse, “abrir e fechar a torneira aos terroristas bons e maus – sendo os bons, presumivelmente, os que têm como alvo a Índia”, assombra agora o Paquistão. À medida que azedam as relações entre os talibãs e o governo de Islamabad, The Print levanta outra questão: “quais as consequências para os laços entre Nova Deli e Cabul?”
Na verdade, a Índia está a reforçar os seus laços com o Afeganistão, um país que durante muito tempo era visto como parte da esfera de influência do rival paquistanês, observa o site Nikkei Asia. “A Índia procura consolidar o seu poder de influência graças à ajuda humanitária vital que concede, por intermédio do Irão [criou um corredor aéreo, que passa pelo porto de Chabahar, crucial para o comércio com a Ásia Central], marginalizando o outrora indispensável Paquistão.”
O interesse de Nova Deli é visível nos esforços que tem empreendido para estabelecer relações positivas com o Emirado Islâmico do Afeganistão (proclamado pelos talibãs), sem reconhecer formalmente o regime (apenas legitimado pelo Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos).
Depois de ter fechado a sua embaixada e consulados em Agosto de 2021, “a Índia voltou a ter uma presença diplomática em Cabul, em meados de 2022, quando enviou uma ‘equipa técnica’ para a capital afegã”, prossegue o Nikkei Asia. “A região é demasiado importante para que Nova Deli a deixe ao abandono [ou à mercê dos interesses da rival China].”
Fonte: Revista de Imprensa • Autor: Michael Thumann