Vou continuar a procurar, O meu mundo, O meu lugar,
Porque até aqui eu só
Estou bem aonde eu não estou
Porque eu só quero ir, Aonde eu não vou,
Porque eu só estou bem, Aonde eu não estou
Porque eu só quero ir, Aonde eu não vou
António Variações – Estou além
“Não há lugar como casa”, lembra-nos a plaquinha de metal erguida na parede do quarto do nosso airbnb em Johor Bahru, cidade malaia onde estamos há três semanas. “Casa” tornou-se, desde há um ano, um conceito difuso: o que é casa? Será Lisboa, de onde tão ansiosos estávamos por partir e para onde não desejamos regressar? Ou serão estes airbnb e quartos alugados, lugares sempre provisórios, onde ficamos enquanto podemos ou até nos fartarmos?
Esta placa, erguida com o objectivo de transmitir um sentimento de conforto e tranquilidade, teve, em mim, o efeito oposto e levei-o a peito: “Boa, plaquinha! Estás feliz, agora? Olha as dúvidas e ansiedades que lançaste, com esses teus estúpidos exercícios filosóficos…”
Sabia que, eventualmente, teria de reflectir acerca desta questão: a pobre plaquinha só o antecipou. É claro o desapego que sinto face ao lugar do meu nascimento: recordo-me de, quando adolescente, observar o Tejo desde a janela do meu quarto e desejar atravessá-lo para nunca mais a Lisboa regressar. Assim que comecei a trabalhar, todos os centavos que conseguia poupar tinham um único propósito: levarem-me a cruzar esse rio que cruelmente me afastava do resto do mundo.
Quando comecei a viajar, há tantos anos, a ideia de trabalhar remotamente era inimaginável. Somente um selecto número de profissões, exercido por alguns dos meus heróis – fotógrafos, jornalistas, repórteres, escritores – conseguiam fazer da viagem um ganha-pão. Tudo mudou, naqueles fatídicos dias de 2020, quando inúmeras empresas foram obrigadas a repensar o conceito de local de trabalho. Após a semi-normalização do mundo, já em 2022, algumas mantiveram a sua política de trabalho remoto, cientes das vantagens, sobretudo financeiras, que daí advêm: “Mas ainda não me disse a localização do escritório… Não têm escritório? Então e as reuniões, os brainstormings, os one-on-one, onde acontecem? Online? Via Zoom?! Então… posso estar onde quiser? Em qualquer ponto do globo? Têm a certeza? Só preciso de um laptop e de uma boa ligação à internet… entendido. Quando posso assinar contrato?” E, desde o início da nossa jornada, conhecemos muitos outros que, como nós, inquietos e nomádicos, conseguiram conciliar a viagem e o trabalho; hoje em Johor Bahru, amanhã em Manila, saltamos de lugar em lugar, permanecendo enquanto podemos ou até nos fartarmos, de laptop na mão, trabalhando e explorando o globo. E, já que penso nisso, é a altura certa para partir – já não suporto observar esta plaquinha.
“A vista é impressionante: são centenas de coloridos tanques e, entre estes, dezenas de homens – temos a sensação de estar frente a uma paleta de aguarelas”
O sol esconde-se, assim que pousamos em Fez, dando lugar ao crepúsculo. À saída do aeroporto, dezenas de taxistas aguardam o seu próximo passageiro. Demasiado cansados para procurarmos um autocarro capaz de nos transportar até à cidade, negociamos valores com o primeiro taxista que nos aborda: um jovem alto, de barba e bigode alinhados, vestido com uma camisola encarnada do Liverpool: “150 dirhams, best price! Come, my friend!”, e atiramos as mochilas para o empoeirado porta-bagagens do seu antigo Renault.
É já noite cerrada quando ligamos o motor e os 30 minutos que demoramos até à medina de Fez (1) são passados a discutir o incrível percurso de Marrocos no mundial de futebol de 2022, no Qatar, as aspirações do Maghreb de Fès (clube de futebol mais popular de Fez) para a próxima época do Botola (2) e a carreira do mágico Adel Taarabt, ex-jogador do Benfica, exímio com a bola nos pés e oriundo de Fez – nada como o futebol para criar pontes e diálogos nas mais distantes regiões do globo. O nosso tempo aqui é escasso – viemos a Fez com um único propósito: visitar a Tinturaria de Chouara. Depois partiremos para Marrakech. Conheci a famosa tinturaria há largos anos, através das páginas de uma National Geographic e fiquei imediatamente fascinado pelo local. A Chouara Tannerie – como aqui é chamada – está localizada na medina de Fez, a parte mais antiga da cidade e Património Mundial pela UNESCO desde 1981. Chegados à tinturaria, é-nos oferecido um ramo de hortelã – “ponham-no sob o nariz”, dizem-nos, e assim o fazemos. Subimos as íngremes escadas de uma loja de artigos de couro e damos com uma pequena varanda.
A vista é impressionante: são centenas de coloridos tanques e, entre estes, dezenas de homens – temos a sensação de estar frente a uma gigante paleta de aguarelas. A tinturaria está dividida em duas partes: de um lado, vários tanques claros; do outro, tanques escuros. O processo é ancestral. As peles são primeiramente mergulhadas nos tanques claros, cheios de cal e fezes de pombo, que amolecem a pele e removem os pêlos que sobre esta restam. De seguida, são transportados para os tanques escuros, onde são manualmente tingidos com corantes naturais, extraídos de plantas e minerais, e onde os curtidores as pisam e mergulham, de maneira que se garanta que ganham uma coloração uniforme.
É um trabalho árduo e laborioso, que requer habilidade, paciência e resistência – sobretudo quando sob este tórrido e implacável sol. Após tingidas, as peles são penduradas nas paredes e estendidas sobre os telhados das tinturarias para secarem. Nunca havia visto lugar semelhante ou processo tão antigo e fascinante. Rapidamente nos apercebemos do propósito dos ramos de hortelã – o odor em Chouara é pungente e, à falta de melhor adjectivo, desagradável, extremamente desagradável. Fotos tiradas, decidimos voltar a descer as escadas e retornar à labiríntica medina. Paramos no primeiro estabelecimento que encontramos e nunca um chá de hortelã e mel teve tão aliviante aroma.
Texto João Tamura • Fotografia João Tamura