Estabeleceu-se o dia 9 de Agosto como o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Este dia foi proclamado na resolução 49/214, adoptada na Assembleia Geral da ONU de 23 de Dezembro de 1994, e procura chamar a atenção para os povos indígenas, estimados entre 370 e 500 milhões de pessoas em todo o mundo (ONU, Agosto de 2023).
A masterpiece que inspira o artigo deste mês, é uma brilhante carta escrita por Bayo Akomolafe, em 2016, que me parece servir como uma luva a este e tantos outros dias de celebração que instituímos – regularmente no Hemisfério Norte, muitas vezes com boas intenções, mas que denunciam a nossa ilusão de separação e um paradoxal olhar de superioridade e desejo de reconciliação.
Vamos, antes do mais, lembrar que comunidades indígenas são aquelas que, mesmo após a invasão e colonização que foi desenvolvida nos seus territórios, estão decididas a conservar, desenvolver e transmitir às gerações futuras a sua identidade, os seus saberes, património e território – frequentemente desrespeitados, usurpados e dilacerados.
Citando duas fontes oficiais, a ONU afirma em Agosto de 2023 que “os povos indígenas vivem em todas as regiões do mundo e possuem, ocupam ou usam cerca de 22% da área terrestre global (…), falam a maioria das cerca de sete mil línguas do mundo e representam cinco mil culturas diferentes.”
Já em eurocid.mne.gov.pt pode ler-se que “os povos indígenas repartem-se por 90 países, constituindo 5% da população global e 15% do total da população mais pobre, mas culturalmente muito ricos. Detêm uma linguagem e cultura próprias que os distingue das sociedades ditas ‘desenvolvidas’.
A degradação do ambiente, as deslocações em consequência de conflitos e de violência, bem como a apropriação ilegal das suas terras e as catástrofes naturais, fazem parte da realidade dos povos indígenas que, diariamente, lutam pelo reconhecimento dos seus direitos, dos territórios em que habitam, dos seus recursos e da sua forma de vida, que é única.”
Trazemos ainda a contribuição preciosa de Tyson Yunkaporta, autor e professor australiano e nome incontornável neste tema que, em co-autoria com outros investigadores, publicou em Junho de 2020 em “Molecular Decolonization: An Indigenous Microcosm Perspective of Planetary Health”, a seguinte definição: “Os povos indígenas são povos resilientes com profundos conhecimentos tradicionais e pensamento científico milenares (…), têm diversas noções de resiliência baseadas em conceitos culturalmente distintos que fazem a ponte entre a pessoa, a comunidade e o ambiente”.
É preciso desconstruir esta narrativa paternalista e distorcida que se refere a povos indígenas como um género de “espécie em extinção”
No entanto, o discurso global sobre as alterações climáticas identificou as populações indígenas como sendo um grupo altamente vulnerável devido ao facto de habitarem em regiões que estão a sofrer alterações rápidas e ao fardo desproporcionado de morbilidade e mortalidade que esta população já enfrenta.
Por conseguinte, é urgente a necessidade de autodeterminação indígena e o reconhecimento formal dos conhecimentos indígenas, incluindo os conhecimentos moleculares e microbianos a nível micro, como uma base fundamental para a saúde planetária”.
E acrescenta: “o actual e emergente domínio da ‘saúde planetária’ é mais frequentemente definido pelas formas como os seres humanos têm impacto e são afectados pelo seu ambiente. As noções de qualidade do ar e da água, de segurança alimentar e de exposição crescente a catástrofes naturais e doenças infecciosas são vistas principalmente através de uma lente antropocêntrica”.
E agora sim, entramos na masterpiece de Bayo Akomolafe: “suspeito, de facto, que esta noção de indigeneidade como uma identidade fixa, como um estado de coisas estático, como algo a que se deve regressar, é, ela própria, um produto forjado pelo conhecimento branco. E com isto quero dizer que ninguém sabe o que significa tornar-se indígena. Nem mesmo os ‘indígenas’”.
Para usar uma linguagem que aqui toda(o)s vão reconhecer, eu vou-lhes chamar ‘locais’. Na minha experiência de co-anfitriã com líderes comunitários na aldeia de Mahungo, é comum cruzar-me com três tipos de público: os que querem “ajudar os locais”, os que se querem “misturar com os locais” e os que “estão fartos dos locais”.
Há um quarto tipo de público, que desenvolve uma relação mais equilibrada e saudável, que resulta normalmente da experiência e maturidade do primeiro ou do segundo público, em que eu também me revejo. Com os do terceiro caso, não há muito a fazer. Só as malas. Mas, muitas vezes, nem para isso sobrou coragem e, por isso, a amargura e revolta dos seus corações, é veneno de que nos devemos proteger, até que sejamos capazes de desenvolver um olhar compassivo. E é preciso coragem para estender este olhar compassivo aos que “exploram os locais”, que com o tempo percebemos que, infelizmente, estão infiltrados em todos os grupos.
E voltamos à masterpiece, porque há mais para escavar: “deixem-me contar uma pequena história que pode ser útil. Há muito tempo, alguns dos vossos pais dividiram o mundo em dois reinos – um reino da aparência e um reino da permanência. Os ecos desta cisão radical no coração das coisas ainda ressoam actualmente. Vivemos em binarismos. Nós contra eles. Linguagem versus realidade.
Agente versus ferramenta. Mente versus matéria. Eu versus ambiente. Livre-arbítrio versus determinismo. Humano versus não humano. Homem versus mulher. Público versus privado. Consciência versus mundo. (…) No contexto desta bifurcação, algumas coisas passaram a ser vistas como ‘originárias’ ou superiores e outras ‘derivadas’ ou inferiores”.
“Os rumores desta grande cisão, deste radicalismo fora de jogo, infiltraram-se em quase tudo e todos nós ficámos possuídos por um desejo de reconciliação. De embodiment. De regresso a casa. Esperávamos que – como os santos – quando marchássemos, num dia longínquo de arrebatamento pessoal ou colectivo, conheceríamos as coisas como elas realmente são. Estaríamos finalmente em contacto, e então seríamos verdadeiros”.
“O indigenismo tem a infeliz dignidade de suportar o peso destas expectativas civilizacionais e onto-epistemológicas. Tal como a ‘natureza’. Tal como os artistas e teólogos do Iluminismo na sua busca de fundamentos puros, aprendemos a falar da ‘natureza’ como se fosse um lugar de chegada incontestado. Um lugar desprovido de conflitos.
Um lugar de conjuntos psicadélicos de fractais harmoniosos. Um paraíso – onde se pode explorar um campo verdejante de árvores, dobrar um ramo para trás e, de alguma forma, escapar (em virtude de se estar no paraíso) ao efeito de ricochete e à cicatriz na pele. Esta ‘natureza com uma auréola’, ou a natureza como essencialmente ‘boa’, cega-nos para as muitas formas como a ‘natureza’ se desconstrói a si própria.” (Dear White People, Bayo Akomolafe, 2016).
Tenho muitas histórias interessantes sobre este vaguear entre o fascínio pelo indígena e pelo ancestral, reavivado pelo neo-paganismo e pelas consequências que o choque do seu contraste, vulgo (des)ilusão, pode provocar. O tema é vasto, complexo e profundo, mas creio que o essencial já está em cima da mesa para reflexão.
É preciso desmontar o olhar romântico que o herói-salvador do Ocidente traz e de que os do terceiro caso (fartos dos locais) estão naturalmente cansados, bem como desconstruir esta narrativa paternalista e distorcida, presente inclusivamente em entidades oficiais, que se refere a povos indígenas como um género de “espécie em extinção”, frequentemente ilustrada com cores garridas no rosto e penas na cabeça, em habitats mais naturais do que os de parques a que se fazem passeios pagos.
Também não há nenhum lugar de pureza original para onde voltar. Nenhum lugar de felicidade eterna. Nem nenhum troféu que esteja lá fora, num outro (pessoa, lugar ou coisa). Contudo, a reconciliação – este desejo profundo de regressar a casa (ou paraíso) também não é apenas interna, como vendem os especialistas do Desenvolvimento Pessoal. Ela acontece dentro e fora, em simultâneo, e de forma subtil.
É um processo colectivo, sistémico, interdependente e potentemente intrincado com a vivência quotidiana e com o(s) lugar(es). Mas há um convite ao reconhecimento, ao respeito e a honrar (acknowledge/honouring), que é crucial para que a reconciliação se manifeste. Ora, não é a explorar, reprimir, negar, negligenciar que eu reconheço, honro e respeito. Mas também não é a apropriar, consumir, extrair e coleccionar – conhecimento, experiências, práticas, rituais e tradições – que se respeita e honram os lugares e as suas comunidades.
A partilha de conhecimento, os convites para cerimónias, rituais e outros que aqui prefiro não designar, feitos pelos locais, só se estendem alguns, e, se aceites, têm de ser honrados. Não são meras experiências para registar em selfies e enriquecer o nosso portefólio exótico coleccionado. A ilusão de “escapar ao efeito de ricochete e à cicatriz na pele”, que Bayo tão bem ilustra, facilmente se dissolve quando somos confrontados com as forças colossais e ancestrais que a nossa imaturidade ou ingenuidade desconhece.
Voltando à visão exótica do indígena de rosto pintado e penas na cabeça, puro e vulnerável, que precisa da nossa protecção, não deixa de ser grave, também, que nós – os consumidores terminais de informação e de “verdades”, que a Professora Maristella Barenco tão bem descreve no seu trabalho de investigação -, continuemos com (e a acreditar) (n)este olhar distorcido e obsoleto que nos separa e eleva em relação aos outros (Humanos, Não Humanos e Mais que Humanos).
Mesmo a sustentabilidade da moda e os seus objectivos de desenvolvimento sustentável posiciona-nos, frequentemente, como separados da natureza e a “fazer o bem” por ela, para não causar mais dano aos ecossistemas, para a proteger, para parar a desordem e para punir os que se portam mal, perpetuando um paradigma antropocêntrico, arrogante e elitista.
Nós, Ocidente iluminado, somos assim os responsáveis – e divinamente designados – por combater o mal, proteger os vulneráveis e salvar o planeta. Quando precisamos, na verdade, de ressignificar o nosso olhar, a nossa forma de nos relacionarmos com a vida.
Pensar e co-criar, em conjunto, sistemas vivos, que aumentem a vitalidade sistémica e contribuam para a prosperidade de todos – humanidade e seres vivos (sobre as fases entre o “business as usual” e as culturas regenerativas, recomenda-se o precioso contributo de Daniel Whal em “Design de Culturas Regenerativas”, pág. 57).
O Dia dos Povos Indígenas tem um bocadinho de Dia da Criança, Dia da Mulher, Dia da Terra e tantos outros. Se por um lado é importante lembrar os seus/nossos direitos e batalhas travadas e ganhas (cada vez mais em causa, novamente), por outro, mostra-nos o quanto estas nossas boas intenções estão baseadas em pressupostos distorcidos, denunciando a falta de justiça, igualdade e equidade que nos atravessam e tantas vezes perpetuando modos de vida pouco sustentáveis ou até degenerativos.
Não deve ser, contudo, menosprezado o caminho percorrido. Há efectivamente iniciativas importantes para defender e preservar o património e direitos dos povos. Há discurso político e tendencioso, mas também há coragem e vontade de mudar. Há os números, relatórios e trabalho para mostrar, mas também há relevância no destaque dado em cada ano, a públicos concretos – mulheres, jovens – e a temas pertinentes – alterações climáticas, saúde humana, não humana e mais que humana, migrações, entre outros.
E, sobretudo, finalmente verifica-se um claro apoio, nos últimos anos, da ONU, ao envolvimento de líderes indígenas nos diálogos globais e na tomada de decisão, pelo assumido conhecimento crucial para a preservação da diversidade cultural e biológica, “profundamente enraizado no desenvolvimento sustentável e que pode ajudar a resolver muitos desafios comuns do momento actual” (António Guterres, Secretário-Geral da ONU).
Mas, na prática, e além das celebrações, medidas e discursos bonitos, as questões a reflectir são simples: “uma humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô” (Ailton Krenak, em “Ideias para adiar o fim do mundo”) está alienada e esquecida.
O conhecido líder indígena brasileiro considera que a resistência indígena deve dar-se pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. E bem precisamos dessa força de resistência (e sabedoria) para preservar a soberania da vida.