Os serviços secretos germânicos são motivo de chacota no mundo da espionagem. Em causa estão o amadorismo e os escândalos que envolvem os seus próprios agentes.
Quem empurra a porta do pequeno museu da Rua Habersaathstraße, no bairro de Berlim-Mitte, mergulha num mundo que dificilmente vemos, a não ser em filmes de espionagem: um sapato com um compartimento secreto no calcanhar, um guarda-chuva equipado com uma câmara escondida, uma caneta esferográfica com microfone embutido.
O Bundesnachrichtendienst (BND), Serviço Federal de Informação, também exibe equipamentos mais modernos num centro para visitas, ao lado da sua sede: por exemplo, um cinto de explosivos que os seus agentes roubaram a islamistas no Afeganistão, ou ainda uma centrifugadora de urânio que, misteriosamente, chegou às mãos do BND.
Em breve, os visitantes poderão ver, à vontade e sem hora marcada, a exposição da espionagem alemã. A mensagem que o BND quer passar é a seguinte: somos um serviço moderno, transparente, que não esconde os seus bons resultados. Resta saber se esta operação de relações públicas dará frutos. A reputação do serviço já havia sido seriamente manchada, e um escândalo de traição, que acaba de rebentar no próprio coração do BND, não ajuda em nada: num momento em que se trava uma guerra na Europa, um agente altamente colocado terá, supostamente, passado segredos de Estado a Moscovo.
A este caso soma-se uma série de falhanços, azares e outras desgraças dentro do BND. Quando os talibãs assumiram o poder no Afeganistão, em 2021, o serviço de espionagem alemão já se encontrava numa situação embaraçosa. É claro que os seus analistas previram a queda de Cabul. Mas não que ela fosse tão rápida.
O fiasco na Ucrânia é um vexame ainda maior. Embora os Estados Unidos encontrava em tão maus lençóis desde as revelações de Edward Snowden [de que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos da América estava a usar a Alemanha como uma placa giratória para espiar o Velho Continente].
O espião Carsten L.
O director do BND, Bruno Kahl, deveria conduzir a sua agência por águas menos agitadas. Se o antecessor, Gerhard Schindler, tinha como lema “sem risco, não tem graça”, Kahl, um advogado especializado em Direito Administrativo, adoptou um método bem mais moderado. Internamente, levou a cabo uma vasta reforma estrutural, definindo como objectivo a emergência de um “BND reativo, fiável e de longo prazo”. Por agora, no entanto, o que este serviço federal faz é principalmente controlo de danos, depois do caso de espionagem interna que o abalou.
Erich Schmidt-Eenboom, 69 anos, recebe-nos na cave de um prédio residencial em Weilheim, na Baviera, onde montou o seu escritório. Há anos que este homem é um apaixonado por serviços secretos. Por sorte, é na sua cidade que vive a presumível “toupeira” Carsten L. [detido em 23 de Dezembro de 2022]. A pé, estamos a menos de vinte minutos da pequena casa geminada daquele antigo agente do BND, agora atrás das grades. “Se, em tempos de paz, isto era grave, é ainda mais em tempos de guerra, obviamente”, comenta Schmidt-Eenboom.
Como responsável do gabinete de informações electrónicas do BND, Carsten L. teve acesso a dados altamente confidenciais recolhidos em todo o mundo, por satélite, comunicações de rádio e internet. Também terá roubado segredos de Estado a serviços estrangeiros. “Poder recrutar alguém como ele foi um jackpot para Moscovo”.
O historiador Wolfgang Krieger foi o especialista nomeado pelo tribunal para um dos casos de espionagem que mais abalaram o BND: Markus R., um funcionário do arquivo, entregou centenas de documentos confidenciais à CIA. Mas só foi descoberto em 2014, quando ofereceu também os seus serviços aos russos. Markus R. foi condenado a oito anos de prisão.
O processo de Carsten L., explica Wolfgang Krieger, é de uma outra envergadura. “Ele estava muito bem colocado na hierarquia do BND e tinha informações muito confidenciais.” Pouco antes da sua detenção, havia sido promovido a responsável pela segurança do pessoal do BND em Berlim. Nesse cargo, tinha a responsabilidade de testar se os funcionários da agência eram confiáveis. “Foi como fazer entrar a raposa no galinheiro”.
Em Janeiro, foi detido por ‘cumplicidade na traição’ um novo suspeito, Arthur E. empresário de 31 anos, que terá fornecido aos serviços secretos russos os dados recolhidos por Carsten L.. Em Outubro do ano passado, já havia sido demitido o director da Autoridade Federal de Segurança Cibernética (BSI), Arne Schönbohm, nomeado pelo Governo de Angela Merkel em 2016, depois de uma reportagem da emissora ZDF questionar os seus laços com uma empresa ligada a espiões russos.
Salvar a honra
O BND viveu mal as semanas que antecederam a guerra na Ucrânia. Há muito que se orgulhava de obter informações em primeira mão sobre o que acontecia em Moscovo. “Graças à sua perícia, o BND foi sempre considerado um dos raros serviços secretos a entender bem a Rússia”, escreveu o seu antigo chefe, Gerhard Schindler, num livro publicado em 2020. Provou-se que era um pensamento ilusório.
A ilusão durou até Fevereiro de 2022. O BND começou então a julgar que uma guerra era possível, ao constatar que haviam sido concluídos os preparativos para uma invasão. Mas será que Vladimir Putin iria realmente avançar? Em 23 de Fevereiro, o chefe do BND, Bruno Kahl, estava em Kiev e tencionava encontrar-se com os colegas ucranianos no dia seguinte. Estava plenamente consciente do risco, garantiria mais tarde.
O que Kahl seguramente não esperava era que a guerra fosse começar no meio da sua visita. Naquela mesma noite, funcionários do BND na Embaixada da Alemanha em Kiev apressaram-se a destruir os documentos confidenciais. Kahl partiu na manhã seguinte num comboio de viaturas que logo se viu bloqueado por colunas de refugiados. Demorou 36 horas a atravessar a fronteira para entrar na Polónia. Nessa altura, os seus agentes esperavam – tal como muitos outros – uma vitória rápida da Rússia. Mais uma vez, estavam seriamente enganados.
BND salvou a honra ao obter informações na fonte, transmitindo-as aos seus aliados. Interceptou comunicações via rádio de soldados russos, confirmando atrocidades cometidas contra civis. Os ucranianos também receberam assistência discreta do BND, com dados de localização e outras informações de interesse militar.
No entanto, a reputação do BND sofreu consideravelmente quando se descobriu uma “toupeira” nas suas fileiras. Especialistas não conseguem explicar como é que informações tão secretas podem ter saído tão facilmente. A isto somou-se uma supervisão no mínimo incompleta dos funcionários. A última inspecção a Carsten L. durou quatro anos e ninguém se preocupou em explorar pistas para as suas simpatias pela extrema-direita. Em Julho de 2022, ele recebeu a certificação do BND com a menção “confiável”.
Este caso não é o único, relacionado com a extrema-direita, que hoje mancha a imagem do BND. Um dos responsáveis pela antena de Bad Aibling, na Baviera, terá ocultado ao empregador a ligação dos seus filhos adultos a círculos radicais. No início de Outubro de 2022, durante uma inspeção noturna na A92, perto de Munique, agentes da polícia mandaram parar um Opel Corsa. O carro era um verdadeiro arsenal ambulante; além de uma espingarda, Max e Leo B. transportavam também um machado, uma boa dúzia de pistolas de alarme, uma besta, várias bombas incendiárias, um capacete das Wehrmacht (Forças Armadas do III Reich) e uma faca gravada com as letras “SS” (ramo militar do partido nazi).
Será que os filhos de um funcionário do BND planeavam um ataque? É o que novas investigações sugerem. Nós ficámos a saber que os dois irmãos teriam armazenado produtos químicos e outros ingredientes para produzir uma bomba. Segundo o programa Kontraste do canal ARD e a rádio pública bávara Bayerischer Rundfunk, investigadores revistaram a casa de férias da família e aqui encontraram um busto de Adolf Hitler.
Depois de tudo isto, aumentaram os apelos a mais reformas nos serviços secretos. Mas os parceiros estrangeiros têm a impressão de que os colegas alemães estão prisioneiros de restrições burocráticas e regulamentares. O historiador Wolfgang Krieger, que integrou uma comissão independente sobre a história do BND, descreve a gestão dos serviços de espionagem germânicos como “uma excepção”. Nos Estados Unidos da América, na Grã-Bretanha, em Israel, em França ou na Holanda, os serviços secretos são “parte integrante da política moderna” – aqui são “um mal necessário”, observa. “Adaptamo-nos muito bem aos maus resultados.”
A maior parte dos serviços secretos é capaz de organizar respostas em caso de ataques cibernéticos para paralisar servidores estrangeiros, por exemplo. Os alemães ainda não podem permitir uma reacção tão musculada. Assassínios extrajudiciais, como os que são levados a cabo pela CIA ou pela Mossad, são inimagináveis na Alemanha. Em comparação com outras agências de espionagem, August Hanning, um antigo chefe do BND, acredita que a intelligence alemã actua como “um vegetariano entre carnívoros.
Autores: Maik Baumgärtner, Martin Knobbe, Roman Lehberger, Fidelius Schmid e Wolf Wiedmann-Schmidt • Fonte: Der Spiegel (excertos)