Assim no Coração, Como na Terra. “As in the Heart, so in the Earth”, é um livro de Pierre Rabhi que nos deixou um relato da forte ligação entre o solo e a alma e de como esta relação pode ser restaurada.
De origem algerina, Pierre Rabhi foi um francês pioneiro da agricultura orgânica e o inventor do conceito “Oásis em todos os Lugares”. Transmitiu, até partir em 2021, a sua experiência em países africanos áridos, em França e na Europa, procurando restaurar a autonomia alimentar das pessoas. Foi um reconhecido especialista em segurança alimentar, participou na elaboração da Convenção das Nações Unidas para a luta contra a desertificação, e foi consultor de várias organizações, incluindo no Banco Mundial.
Este autor estabeleceu uma relação entre a desertificação crescente do Norte de África e os corações e almas “mortos” dos habitantes do mundo ocidental. Recorreu a parábolas da tradição oral africana para dar um testemunho vivo do que se perdeu com a ascensão da tecnologia moderna e alertou para os riscos da eliminação do que traz autonomia às pessoas (que vão muito além de colheitas ou sementes e que têm que ver com liberdade e sabedoria).
Rabhi já dizia que precisamos de repensar a nossa relação com a Terra. E que isso depende de toda uma cadeia que vai do cultivo de alimentos à educação das crianças.
Quase ninguém conhece Pierre Rabhi. No entanto, se eu falar em Joe Dispenza, Bruce Lipton ou noutros nomes sonantes da Indústria do Desenvolvimento Pessoal, é natural que mais pessoas conheçam, ou pelo menos se recordem, de algumas ideias-chave relacionadas com a inteligência do coração, que podem vir da neurociência, da epigenética ou de outra área, mas todas elas com um foco: as pessoas. Ajudar ou melhorar a vida das pessoas. Normalmente as de classe média ou alta. Porque a classe baixa não tem acesso nem dinheiro para recorrer aos prestigiados serviços a que esta indústria do individualismo humano se dirige.
E a pergunta que trago é: como podemos relacionar a sabedoria do (e sobre o) Coração com a Terra?
Como podemos descentralizar esta sabedoria potente – do Coração – da narrativa humana, individualista e inspirada na Jornada do Herói e trazê-la para o mundo Mais que Humano, sistémico e inspirado numa filosofia Ubuntu ou InterSer?
Como podemos inspirar as nossas crianças a aprender com o Coração? A sincronizar o pulsar Humano-Mais que Humano? A nutrir relações de pertença e cooperação, em vez de conquista/dominação e competição?
Não preciso estender-me sobre a importância do coração enquanto motor potente que pulsa vida. Mas gostava de salientar alguns aspectos que servem de base à nossa reflexão:
– O coração começa a bater muito antes do cérebro se formar, e o seu batimento pode manter-se mesmo sem o cérebro funcionar;
– O coração tem inteligência própria, altamente intuitiva e paradoxalmente selvagem e sofisticada;
– Há uma constante comunicação de duas vias entre cérebro e coração e, ao contrário da crença de que o “cérebro comanda tudo”, o coração envia mais informação ao cérebro do que o inverso (é muito mais potente o electromagnetismo enviado pelo coração do que as ondas cerebrais enviadas pelo cérebro);
Uma coisa é certa: Se as crianças aprenderem, desde cedo na escola, a semelhança e simbiose entre os diferentes corpos e sistemas, mas também a importância de cada corpo e órgão cumprir a sua função, em pertença e cooperação, há esperança!
– A variabilidade da frequência cardíaca é um marcador cientificamente validado para aferir o equilíbrio entre o sistema nervoso simpático e o parassimpático (os dois ramos antagónicos do sistema nervoso central);
– O sistema nervoso autónomo é maestro na homeostasia humana e tem um efeito preponderante no funcionamento e regeneração dos órgãos;
– O coração ajuda assim a sincronizar vários sistemas do nosso corpo, permitindo um funcionamento saudável. Tem um papel crucial na recolha, renovação e distribuição de “vida pulsante”;
– O coração também busca sincronizar-se com outros corações, e isso pode ser agradável, regenerador ou mesmo vital. Basta pensar, por exemplo, na técnica-canguru entre mãe e filho, num casal apaixonado ou na simbiose entre animal doméstico e dono. Mesmo os batimentos cardíacos tendem a sincronizar-se quando em conexão;
– O coração é o “sensor” da alma e está por isso conectado a um Todo Maior, que ultrapassa a cognição adequada a estas linhas que escrevo. Mas claramente há uma sincronicidade (ou dessincronia) entre o coração humano e o coração planetário. E era disto também que Pierre Rabhi nos falava em “As in the Heart, so in the Earth”.
Há vários estudos que abordam a inteligência do Coração e a importância do alinhamento coerente com o sistema físico, mental e emocional. O Heartmath tem uma linguagem acessível para quem se interesse pelo tema, sendo este, contudo, focado no ser humano e na narrativa individualista ocidental, que aqui se pretende descentralizar.
Voltamos à nossa pergunta: Como podemos relacionar a sabedoria do (e sobre o) Coração com a Terra?
O sistema nervoso autónomo da Terra está claramente desequilibrado. Num paralelismo com o Corpo Humano, pode dizer-se que o sistema nervoso simpático, que assegura a sobrevivência em situações de stress agudo, está em constante activação, deixando a Terra em estado de alerta e stress permanente.

O sistema nervoso parassimpático, cuja função principal é a conservação de energia, a reparação de tecidos e a digestão e absorção de nutrientes, não consegue nutrir e regenerar de forma adequada.
A variabilidade da frequência cardíaca da Terra deve indicar uma espécie de arritmia, tendo em conta que o stress tem uma acção promotora do sistema nervoso simpático, e que isto afecta indirectamente a VFC.
As alterações climáticas, os solos cansados e estéreis, os oceanos acidificados e o ar contaminado são sinais de um coração cansado, de um sistema nervoso autónomo desequilibrado. O coração é da Terra. O cérebro é Humano. Desrespeita a lei natural da vida e o fluxo de comunicação. A dessincronia é inevitável. Se Corações Humano e Planetário se conectarem, a sincronia (re)emerge.
Dizem que as pessoas com maior variabilidade de frequência cardíaca (e saúde cardiovascular) são alguns atletas e alguns monges/pessoas com vários anos de prática de estados meditativos.
Acredito que estes estudos sejam feitos sobretudo por ocidentais e que não tenham tido em conta que há outros seres humanos, e mais que humanos, espalhados por esse mundo fora, com uma VFC também elevada e que podem ajudar a travar o desequilíbrio crescente.
Uma coisa é certa: se as crianças aprenderem, desde cedo na escola, a semelhança e simbiose entre os diferentes corpos e sistemas, mas também a importância de cada corpo e órgão cumprir a sua função, em pertença e cooperação, há esperança!
Voltando ao paralelismo do corpo humano, imaginem como seria se, um dia, o rim acordasse e quisesse, a partir de agora, ser coração. Se um dia vários orgãos acordassem e todos quisessem ser coração, cérebro ou mãos? Se ninguém quisesse um “papel secundário” de ser apenas cotovelo ou dedo mindinho.
Na vida real, e enquanto Corpo-Comunidade, foi isto que aconteceu: esquecemo-nos do nosso papel no Corpo Maior, e da importância de cada órgão desempenhar a sua função, em pertença e cooperação. Precisamos de resgatar essa sincronicidade e homeostase e a inteligência do Coração pode ajudar-nos neste caminho.