Analistas consideram que o relatório da TotalEnergies sobre a situação humanitária em Cabo Delgado traz mais benefícios à petrolífera, argumentando que o mesmo é contraditório com a informação prestada pelo Governo e que não espelha a realidade moçambicana.
No documento, divulgado nesta terça-feira (23), a TotalEnergies reconhece que houve melhorias na situação humanitária, em particular com o regresso das populações deslocadas pelo conflito na vila de Palma e, em menor grau, na vila de Mocímboa da Praia. No entanto, recomenda a criação de uma estrutura de desenvolvimento local que abranja toda a província e não apenas orientada para a segurança do local do projecto.
Perante esta posição, o analista político, mestre em engenharia e geociências de petróleo e docente universitário, Gil Aníbal, contactado pelo DE, afirma que o relatório é contraditório em relação ao que tem vindo a ser apresentado pelo Governo, a começar pela problematização de factores que já começaram a ser ultrapassados.
“O relatório surge para beneficiar a empresa que o recomendou e está a trazer uma abordagem de que o problema é muito sério, sendo que o Executivo tem vindo a apresentar melhorias e, se formos a ver, as melhorias existem, a começar pela segurança. Algumas pessoas já regressaram e as empresas estão a funcionar”, considera.
Para Gil Aníbal, antes do mais, o relatório devia esclarecer assuntos relacionados com o regresso do projecto da Área 1, visto que é o assunto mais esperado por todos, e o Presidente da República, Filipe Nyusi, já deu “carta branca” para tal.
“O que estamos a ver é que a Total não regressa porque talvez tenha alguma pretensão. Não se entende a demora tendo em conta que o chefe do Estado tem estado a dar garantias de segurança”, acrescenta.
Com um total de 76 páginas, o relatório propõe, numa das alíneas, a renegociação do memorando de entendimento existente entre o Ministério da Defesa e o consórcio “Mozambique LNG”, o que, para o analista, precisa de ser analisado a fundo pelo Conselho Nacional de Defesa, salientando que o Estado é regido por leis e regras.
“A segurança e integridade de um Estado são responsabilidade das Forças Armadas de Defesa e Segurança desse mesmo Estado. Assim sendo, a proposta lançada pela Total deve ser discutida e muito bem analisada. Penso que esse é um assunto muito sensível. Se atentarmos à situação, Cabo Delgado está neste momento nas mãos de três Forças – a da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), a ruandesa e a moçambicana. Logo, a situação parece complicada agora que a petrolífera aparece a fazer escolhas, ignorando todo este princípio”, explica.
Na mesma ordem de ideias, o investigador da organização não-governamental Observatório do Meio Rural (OMR) e autor de trabalhos sobre a guerra na província de Cabo Delgado, João Feijó, afirma que o relatório é muito mais comercial e serve para melhorar a imagem da Total a nível internacional, pois, no âmbito da sua elaboração, não foi consultado nenhum investigador moçambicano. “Trata-se de uma estratégia de lavagem da marca”.
“De facto, as preocupações de segurança em Palma são grandes, mas há também uma forte presença militar. Existem questões que a Total não colocou no início, como as condições para o seu regresso, situação que ainda não está clara. Nunca foram apresentados os termos”, secunda.
No que diz respeito à criação de uma Fundação, que actuará sob o nome de “Pamoja Tunaweza” (“juntos podemos”, em Kiswahili), e que será dotada de um orçamento plurianual de 200 milhões de dólares, tal como avança o referido relatório, João Feijó esclarece que o valor é irrisório tendo em conta o número de habitantes da província.
“Olhando para uma população de três milhões de habitantes, os 200 milhões de dólares podem parecer muito, mas não são. Calculando, seriam 66 dólares por pessoa e não podemos esquecer que existem despesas com consultores, despesas administrativas, transporte, combustível, segurança e outros. O impacto desse fundo será muito reduzido”, elucida.
João Feijó clarifica que não há esperança de desenvolvimento com o valor proposto, olhando para o nível de corrupção e violência, para o défice de participação das pessoas, para as elevadas taxas de analfabetismo e para a falta de emprego. Por isso, “a tensão vai continuar e o nível de pobreza também, tudo porque apenas vai estabilizar-se a região, extrair-se os recursos e exportar, e a população local não vai ter nenhum benefício”.
Por seu turno, Egas Daniel, economista e coordenador do programa em Moçambique do International Growth Center (IGC) da London School of Economics, entende que “cabe à própria petrolífera assegurar a gestão adequada do processo de indução do desenvolvimento local”, e acrescenta que a TotalEnergies não deverá impor a sua visão de desenvolvimento às comunidades.
“Deve haver um processo consultivo, participativo, que não sirva de pólvora para a eclosão de um novo conflito ou prolongamento e intensificação do conflito em curso”, sugere.
Contudo, o economista receia que “o relatório, por mais que esteja a relatar com fiabilidade a situação de Cabo Delgado em termos de segurança e desenvolvimento, prolongue e distraia o Estado em concentrar-se na discussão urgente e necessária sobre a negociação das condições suficientes para a retoma das operações da TotalEnergies”.
“A continuidade da incerteza sobre o período da retoma da Total e a adição de elementos de discussão/negociação criam pressão permanente ao Estado moçambicano, uma vez que as projecções de recuperação económica, de encaixe de receitas e divisas para o País estão relacionadas com este projecto”, concluiu.