O caos que se registou em Março, envolvendo o Silicon Valley Bank e o Credit Suisse, mostra como os bancos se tornaram estrategicamente importantes na nova ordem geopolítica. Abandonam-se as ideias de Adam Smith e regressam as de Jean-Baptiste Colbert.
Que sítio melhor para refletir sobre o caos bancário da primavera do que este lugar discreto no bairro financeiro de Edimburgo (Escócia), não muito longe de onde viveu [no século XVIII] o teórico do liberalismo económico Adam Smith? A Library of Mistakes (Biblioteca dos Erros) é o museu dos desastres capitalistas: há uma camisa autografada de Nick Leeson, o corretor vilão que levou à falência o Barings Bank [instituição britânica, em 1995], e há também um retrato do lendário vigarista Charles Ponzi.
Esta biblioteca tem como lema um ditado de James Grant [fundador da revista de mercados financeiros Grant’s Interest Rate Observer]: “O progresso é cumulativo na ciência e na engenharia, mas cíclico nas finanças.” Ficamos com a impressão de que a História vacila ao observarmos o que aconteceu em Março deste ano: as autoridades reguladoras criaram uma nova crise ao tentar combater a anterior; os intrépidos financeiros dos mercados livres descobriram repentinamente as virtudes da intervenção pública; os defensores da luta de classes disseram que o capitalismo é injusto e/ou está morto.
E, uma vez mais, temos de enfrentar uma realidade: as regras das finanças vão mudar. O atual Federal Reserve System [Fed, banco central dos Estados Unidos da América] foi criado depois de John Pierpont Morgan ter necessitado de organizar o resgate de emergência da economia pelo setor privado, em 1907, trancando os colegas banqueiros na sua casa, no número 219 da Madison Avenue, em Manhattan, Nova Iorque.
A Lei Glass-Steagall, que determinou a separação dos produtos financeiros entre bancos comerciais, companhias de seguros e bancos de investimento, entrou em vigor em 1933, sob a liderança do Presidente, Franklin Roosevelt, depois da queda da Bolsa de Valores de Wall Street [em 1929, que ficou conhecida como “Quinta-Feira Negra”]. Em 1999, as restrições bancárias foram revogadas por Bill Clinton, porque encorajavam, alegadamente, uma inovação irresponsável noutros ramos do setor financeiro. A mesma separação seria parcialmente restaurada pela Lei Dodd-Frank, que se seguiu à falência do banco Lehman Brothers, em 2008.
Desta vez, a restruturação das finanças parece assentar menos num conjunto de regras e mais numa mudança de mentalidade política: a aceitação de uma forma mercantil de financiamento que Adam Smith teria odiado, mas que está em perfeita sintonia com as políticas estatistas da atual geopolítica.
Erros vários
Poderemos estar a deslizar para uma nova forma de capitalismo financeiro. Isso não irá acontecer da noite para o dia. Dentro dos próprios bancos, neste momento, pensa-se mais na sobrevivência do que em ideias revolucionárias. Além disso, para os patrões das finanças, mais do que para a classe política, a nova realidade pode ser resumida a uma expressão: o regresso aos fundamentos.
Se a crise de 2008-2009 [que se ficou a dever a uma bolha imobiliária nos EUA] assentou na qualidade dos ativos (todas aquelas hipotecas duvidosas e pilhas vertiginosas de produtos derivados apoiados por tão poucos capitais), desta vez, o foco está na liquidez.
Em teoria, o Silicon Valley Bank (SVB), que foi encerrado a 10 de março, e o Credit Suisse, resgatado pelo grupo UBS [no dia 9, por mais de três mil milhões de euros, para evitar uma bancarrota], tinham um património relativamente elevado para cobrir as suas eventuais dívidas. Mas não tinham dinheiro suficiente para responder a longas filas de depositantes que, de repente, iriam exigir o seu dinheiro de volta. Se é certo que tudo aconteceu nos ecrãs dos computadores, essas corridas dos clientes seriam semelhantes às da época das filas de espera junto aos balcões dos bancos.
Pôr toda a culpa numa súbita falta de liquidez isenta o SVB e o Credit Suisse de qualquer responsabilidade. Mas os depositantes só querem apressar a recuperação do seu dinheiro e não confiam nos banqueiros. E, nesta matéria, o SVB e o Credit Suisse erraram em vários aspetos.
No início das nossas carreiras no jornalismo, o Credit Suisse era sinónimo de uma extraordinária integridade bancária. Quando o presidente (era sempre um homem) do principal banco suíço discursava num congresso financeiro, ele limpava a sala. Mas a virtude cardeal do tédio foi-se perdendo. Desde o início do século XXI, o Credit Suisse foi prejudicado por uma série de casos embaraçosos, apresentados pela sua administração como erros isolados e não como um problema de cultura de risco sistémico. O seu nome continuou a aparecer, escândalo após escândalo, de Moçambique à Rússia. Pouco a pouco, a amplitude dos levantamentos já não se assemelhava a um fio de água, mas a um rio torrencial.
No caso do SVB, a implosão foi mais brutal e o erro humano, ainda mais grosseiro. Todos os tipos espertos deste banco californiano pareciam dedicar-se a empréstimos de luxo para capitalistas de risco. Comprar obrigações do tesouro de longo prazo e taxa fixa quando se tem passivos de curto prazo e taxa variável é uma assimetria gritante. Com a subida das taxas de juro, o valor da “cautelosa” carteira de títulos do SVB derreteu – e o banco viu-se à beira do abismo.
O que iriam fazer os políticos e reguladores? Apontaram-se vários bodes expiatórios. No caso do SVB, foi o wokismo [um movimento de consciência social em que ideias inaceitáveis, como o racismo, são consideradas imorais]. Os conservadores criticaram o banco de São Francisco por ter estado sete meses sem um diretor de gestão de risco, mas ter encontrado tempo para divulgar os seus resultados em questões como as comunidades LGBTQI ou o ambiente, designadamente a promessa de investir cinco mil milhões de dólares [mais de 4 500 milhões de euros] na sustentabilidade até 2027. Sem dúvida que os seus banqueiros poderiam ter encontrado alguns minutos para vigiar o mercado obrigacionista.
Os principais alvos são, porém, os bancos centrais, acusados de manter as taxas de juro baixas por muito tempo, para depois as aumentar depressa demais. Sim, eles mantiveram as taxas muito baixas durante muito tempo. O dinheiro barato criou bolhas e encorajou os bancos a correr atrás de rendimentos questionáveis. E, sim, se o Fed não se tivesse apressado a aumentar as taxas tão rapidamente, os imbecis do SVB continuariam a colecionar troféus bancários e o Credit Suisse estaria a planear outra remodelação. A missão do Fed é, no entanto, proteger a economia como um todo, isto é, controlar a inflação e não manter as taxas baixas para salvar alguns bancos mal geridos.
“Too big to fail”
A verdadeira questão é, mais uma vez, saber se existe uma maneira melhor de administrar estes bancos. Já ressurgiu uma velha querela entre os que defendem uma proteção ainda maior para os depositantes e os que querem acabar com o risco moral criado pela impunidade dos banqueiros quando estes cometem erros.
Na nossa opinião, haverá novas leis, mas não na mesma escala das que surgiram depois da crise de 2008, porque os bancos têm hoje muito mais capital. A evolução mais interessante poderia ser a redefinição do que é um banco. Desde 2008 que os reguladores nos Estados Unidos da América têm optado por se concentrar nos inventários patrimoniais das grandes instituições de importância sistémica. Surpreendentemente, eles limitaram os seus stress-tests [“testes de esforço”, para avaliar o capital interno e a liquidez] a bancos com mais de 250 mil milhões de dólares [cerca de 230 mil milhões de euros] de ativos. Assim, bancos como SVB (com um capital de pouco mais de 200 mil milhões de dólares/183 mil milhões de euros) não foram obrigados a respeitar o mesmo índice de liquidez, graças a uma novidade que entrou em vigor durante a presidência de Donald Trump, sob pressão de vários CEO, incluindo o do SVB. E descobrimos agora que o SVB era também too big to fail [demasiado grande para falir].
O principal ajuste terá de ser uma mudança de mentalidade. Provavelmente, as recentes decisões dos reguladores não teriam agradado a Adam Smith, mas teriam feito sorrir o francês Jean-Baptiste Colbert, ministro das Finanças do rei Luís XIV e pai do intervencionismo. Está de regresso a ideia de que as finanças são um braço do Estado.
Esperava-se isso há algum tempo. Os mercados financeiros podem alegar que são livres e internacionais, mas são limitados por regulamentações nacionais: basta olhar para o número muito pequeno de aquisições transfronteiriças. E há alguma novidade em relação aos resgates nacionais? Mervyn King, governador do Banco de Inglaterra durante a crise de 2008, gostava de destacar que as empresas capitalistas têm uma vida internacional e uma morte nacional, e contam sempre com as autoridades do país onde têm a sua sede quando as coisas dão para o torto.
Só que a musiquinha dos planos de resgate mudou muito. Em 2008, as três maiores economias do mundo – Estados Unidos da América, União Europeia e China – atuaram em conjunto. A aquisição de bancos foi entendida como um desvio temporário antes do estabelecimento de um sistema financeiro global liberal. Hoje, a economia mundial está a desintegrar-se em vários blocos regionais concorrentes. É o regresso do mercantilismo. O SVB não representava uma ameaça “sistémica” às finanças dos Estados Unidos da América, mas o seu colapso teria desferido um golpe no setor das novas tecnologias norte-americano, reduto da competitividade do país (especialmente contra a China).
Se o banco tivesse sido criado no estado do Oklahoma, teria sem dúvida atraído menos atenção. A decisão de garantir os ativos foi mais uma questão de política industrial do que de prudência financeira.
Entretanto, a decisão da Suíça de forçar o grupo UBS a assumir o controlo do Credit Suisse equivale a admitir que o setor bancário é uma indústria estratégica. Em qualquer contexto normal ligado à livre concorrência e à defesa do consumidor, deixar que o maior banco de um país compre o seu principal concorrente não faria muito sentido. Mas se, acima de tudo, se deseja que as finanças suíças permaneçam suíças, confiar um terço do setor bancário a um único investidor faz todo o sentido.
Convém lembrar que vários estrangeiros, designadamente catarenses e sauditas, tinham investido quantias prodigiosas no Credit Suisse [depois de este ter perdido 5,5 milhões de dólares/cinco mil milhões de euros com o colapso da Archegos Capital Management; em janeiro deste ano, o Qatar Investment Authority – fundo soberano do Qatar – aumentara a sua participação de 5,6% para 6,87%, tornando-se o segundo maior acionista do gigante suíço, depois do Banco Nacional saudita.]
Fusões mais prováveis
Tudo isto parece o início de uma mudança colbertista nas finanças. Veja-se o caso da União Europeia. Para os líderes de todo o continente, as finanças sempre foram uma terrível provocação. Por um lado, devido ao seu potencial anárquico; por outro, por serem totalmente dominadas pelos Estados Unidos da América. Os cinco bancos ocidentais mais poderosos são norte-americanos – JPMorgan Chase, Goldman Sachs, Morgan Stanley, Bank of America e Citigroup.
Esta situação, relativamente recente (em 1980, apenas dois dos dez maiores bancos mundiais tinham sede nos EUA), sempre incomodou os descendentes de Colbert em Paris, mas hoje outros políticos veem-na com melhores olhos.
A Alemanha até pode ser o motor industrial da Europa, mas falta-lhe influência financeira. Atualmente, o banco de maior sucesso na UE é francês (o BNP Paribas), estando os seus principais concorrentes virados para o continente americano (o espanhol Santander) ou presos do outro lado do Brexit, em Londres (o HSBC e o Barclays). A chegada de um novo campeão suíço deverá, mais uma vez, levar Berlim a considerar uma fusão do Deutsche Bank (que rivaliza com o Credit Suisse em vários escândalos) com o Commerzbank.
Uma outra solução, para a Alemanha, é aliar-se aos seus vizinhos e gigantes europeus. Porque não uma fusão do Commerzbank com o italiano UniCredit? É difícil manter uma união monetária sem uma união fiscal ou bancária. Cada diretor de um banco na UE tem uma lista de possíveis candidatos a fusões noutros países europeus, caso as regras mudem e as alianças transfronteiriças se tornem possíveis. Depois do que se verificou em março, estas fusões tornaram-se ainda mais prováveis.
Os banqueiros norte-americanos irão, inquestionavelmente, encorajar a consolidação europeia em nome do “antes tarde do que nunca”. Mas, nos Estados Unidos da América, o mercado bancário é, em muitos aspetos, ainda mais instável. E os consumidores estão em situações piores em termos de serviços básicos, como comissões cobradas sobre cartões de débito e contas à ordem.
Embora os bancos “demasiado grandes para falir” recebam toda a atenção, os Estados Unidos da América continuam a ter muitos bancos pequenos demais para funcionarem bem. O país tem quatro mil bancos, a maioria pequenas instituições locais, por vezes protegidas por lóbis políticos locais e excessivamente dependentes de empresas locais. Na nova era do capitalismo financeiro doméstico, isso parece mais uma fraqueza do que uma força.
Viragem protecionista
Nos Estados Unidos da América, faz sentido levar as finanças para uma nova era de mercantilismo. Se, tal como a Administração de Joe Biden, você já estiver a subornar as empresas de semicondutores para entrarem em território norte-americano e a persuadir os consumidores a comprar produtos fabricados nos EUA, independentemente da sua qualidade, então aceita-se que o financiamento seja concebido como um pilar da economia. Se esses microchips são um recurso vital para a nação, também o são os credores dos seus fabricantes.
A viragem protecionista dos Estados Unidos da América deu a outros países a oportunidade de seguirem o exemplo. As capitais europeias estão furiosas com a Lei da Redução da Inflação aprovada por Biden – e têm todo o tipo de ideias para erigir também a sua própria fortaleza. [Esta lei, que entrou em vigor em agosto de 2022, prevê subsidiar diretamente empresas norte-americanas com o equivalente a 350 mil milhões de euros se produzirem localmente tecnologias limpas, o que coloca as companhias da UE em desvantagem – algumas poderão abandonar o continente.]
Apesar da sua reputação de cosmopolitas desenraizados, os bancos mundiais ficarão muito contentes por seguir o caminho do mercantilismo. Como diria Adam Smith, os banqueiros já eram oportunistas muito antes de serem cosmopolitas. Se a classe política ocidental quer gigantes nacionais, então os banqueiros financiá-los-ão de bom grado. Se a classe política quer substituir o comércio livre pelo mercantilismo, irá oferecer atalhos para lá chegar. E se lhes pedirem para comprar um dos seus concorrentes, não verão nisso necessariamente um inconveniente.
Deste ponto de vista, é bem possível que o UBS acabe por ser visto como aquele que deu o primeiro passo. Agarrou o seu principal rival por um vigésimo do que valia há dez anos; conseguiu imensas garantias do Estado, incluindo uma garantia de financiamento de 100 mil milhões de dólares [mais de 91 mil milhões de euros]. Nos Estados Unidos da América, note-se que [o investidor e filantropo] Warren Buffett, rei dos bons negócios, está novamente a oferecer os seus serviços ao governo norte-americano para o ajudar a organizar o setor financeiro.
Hoje, assistimos ao nascimento de uma nova forma de capitalismo financeiro – os bancos estão mais ligados aos governos, que escolhem os vencedores e tentam apoiar as indústrias do futuro. Alguns terão muito êxito, mas, ao olharmos para os volumes guardados na Biblioteca dos Erros, vemos que o colbertismo também teve as suas falhas. Basta observar os limites do sistema bancário chinês, dirigido pelo Estado.
Autor: John Micklethwait e Adrian Wooldridge . Orgão: Bloomberg Opinion