Anthony Bourdain, mítico chef, autor e rosto dos programas televisivos No Reservations e Parts Unknown moldou a maneira como viajo e vejo o mundo. Numa das suas mais icónicas fotografias, ergue um papel com o seguinte mantra: “be a traveler, not a tourist”. Tal mandamento ficou gravado na minha cabeça desde a adolescência e por este tenho-me regido.
Os dicionários pouco distanciam estes dois conceitos, mas Andrew Zimmern, também chef, autor e viajante, não só concorda com Bourdain como acrescenta: “Sê, por favor, um viajante, não um turista.
Tenta coisas novas, conhece pessoas novas e olha para além do que está mesmo à tua frente. Estas são as chaves para compreender este mundo fantástico em que vivemos.”
Viajo não só para compreender este fantástico mundo que Andrew menciona, mas também para me compreender. Descubro-me, enquanto nestes lugares me perco, e a viagem permite-me não só desbravar quem sou, mas também compreender quem quero ser.
São estes novos lugares e pessoas que constantemente desafiam e corrigem as minhas perspectivas acerca da vida, do mundo e, sobretudo, acerca de mim mesmo. Observo os lugares onde aterro com a mesma ânsia e curiosidade com que um recém-nascido observa o mundo que frente a si se apresenta: sem ideias preconcebidas ou receios infundados. Sou privilegiado e sortudo: escuto mais do que falo, aprendo mais do que ensino.

Chegámos a Phnom Penh, capital do Camboja, país que suplica e vocifera para seguirmos o mantra de Anthony Bourdain.
O Camboja, cada vez mais, tem estado nas bocas do mundo: a casa do famoso Angkor Wat, um dos maiores e mais belos complexos religiosos do mundo, tem-se tornado cada vez mais popular entre turistas e viajantes.
Pouco sabia acerca do país antes de aterrar na sua capital. Havia visto fotografias do Angkor Wat, é claro, e o filme First They Killed My Father, realizado por Angelina Jolie, que explora o regime de terror causado pelo Khmer Vermelho (1).
Falhei, enquanto viajante, e pouco li ou estudei acerca do Camboja e da sua capital; poucas foram as questões que coloquei e pouco procurei conhecer os seus problemas e dificuldades. Cheguei ao Camboja despreparado e traí o mantra de Bourdain. Viemos, como tantos outros, para ensinar inglês.
Para fazê-lo, foram-nos apresentadas duas opções: na primeira destas, ensinaríamos crianças pelo período mínimo de um mês numa parte rural do Camboja.
Oferecer-nos-iam dormida e duas refeições por dia. Como não podemos ficar um mês no país, considerámos a segunda opção: pagaríamos uma taxa diária a uma agência de voluntariado e daríamos aulas num dos muitos orfanatos da capital.
O Camboja, cada vez mais, tem estado nas bocas do mundo: a casa do famoso Angkor Wat, um dos maiores complexos religiosos do mundo
Não haveria período lectivo mínimo e, desde que diariamente pagássemos a mencionada taxa, ensinaríamos quantos dias quiséssemos e pudéssemos. Fizemos amizade com o recepcionista do nosso hostel e só essa amizade nos levou a repensar o nosso plano:
– Orphanage? Please be careful…
Thearan adverte-nos para uma realidade que facilmente poderíamos ter descoberto a priori, caso tivéssemos lido, estudado, pesquisado: muitos destes orfanatos e agências de voluntariado não são o que aparentam. O Camboja é um país pobre – um dos países mais pobres do Sudeste Asiático.
O rendimento de muitos habitantes do país não ultrapassa os $4/dia. A maioria das famílias é numerosa e há pais incapazes de alimentar todas as bocas que se sentam em redor da mesa. A solução que estes pais em dificuldades encontram?

Entregar a criança mais velha a um dos orfanatos do país, na esperança que esta seja alimentada três vezes ao dia, tenha acesso a uma educação formal e a cuidados médicos.
Estima-se que pelo menos 80% das crianças nos orfanatos do Camboja não sejam, na verdade, órfãs. Os orfanatos tornaram-se, para uma minúscula minoria, um negócio extremamente rentável. Estes são alimentados por doações internacionais e pelas hordas de voluntários que diariamente têm o seu passaporte carimbado num dos vários postos fronteiriços do país.
Estas instituições beneficiam da desinformação daqueles que crêem praticar o bem: apresentam-se, falaciosamente, como benfeitoras.
No entanto, uma pesquisa mais aprofundada é o suficiente para desmascarar a maioria destas organizações. Estes orfanatos obrigam as crianças a um interminável loop: tornam-se a sua vida e trabalho, uma peça de teatro que desempenham dia após dia.
Estas crianças já assistiram à mesma aula de inglês incontáveis vezes. Todas sabem as vogais e as consoantes do alfabeto latino; todas sabem os pronomes de sujeito e recitá-los de trás para a frente; e todas sabem conjugar o verbo “to be” na perfeição.
São diariamente apresentadas a um novo professor e despendem-se deste assim que o sol se põe. Ao contrário destas crianças, o professor, com um sorriso no rosto e um peito cheio de sentimento de dever cumprido, dá a sua missão por terminada e retorna ao seu quarto de hotel, no centro da cidade.
Na manhã seguinte, parte para Siem Reap, onde se deslumbrará com a beleza de Angkor Wat. O “hello” e o “goodbye” são uma constante. Sem pais presentes – ou figuras que os substituam – estas crianças são incapazes de criar laços duradouros – a impermanência destes voluntários impossibilita-o.
Muitos destes orfanatos não estão sob qualquer tipo de regulamentação ou controlo governamental – funcionam como uma entidade privada, e as crianças estão inteiramente à mercê daqueles que gerem estes estabelecimentos como vulneráveis marionetas, sem controlo sobre os seus fios ou cruzeta. Felizmente, cada vez mais olhares têm caído sobre estes orfanatos: o crescente turismo serviu para desmascarar estas instituições e trazer alguma verdade à tona, e tanto o Governo cambojano como diversas organizações internacionais têm intervindo e lutado contra estes lobos com pele de cordeiro.
Também somos culpados pela proliferação deste fenómeno – se aqui não estivéssemos e se para estes não contribuíssemos, estes orfanatos não teriam como existir.

É o nosso dinheiro que alimenta este monstro e, enquanto viajantes, a nossa carteira tem desmedido peso; enquanto viajantes, a nossa carteira é um voto.
Esse voto poderá beneficiar ou prejudicar países, pessoas, comunidades – a escolha é nossa, e essa escolha deverá ser o mais informada e ponderada possível.
Tomemos o exemplo de Siem Reap, cidade no norte do Camboja, lugar de Angkor Wat. No ano de 2019, mais de dois milhões de turistas visitaram a cidade e o seu templo – muitos destes, em excursões organizadas por agências de viagens do seu país de proveniência.
Consequentemente, grande parte dos dólares aqui gastos por turistas não permanece no país ou beneficia a economia local.
Estas agências estrangeiras mantêm os seus clientes numa “bolha” que os distancia e separa do lugar que visitam – chegam ao aeroporto com um roteiro pré-definido e inflexível, que os limita a hotéis, autocarros privados e aos mais famosos templos da cidade.
Estas agências e roteiros turísticos pouco ou nada estão interessados em ser uma fonte de rendimento para a comunidade de Siem Reap ou em preservar o património e a cultura local dos quais tanto bebem. Os alojamentos escolhidos por estas agências? Resorts e hotéis de cadeias internacionais. Aquele homestay que tão boas opiniões tem no Google Maps? Nem pensar! E almoçarmos ou jantarmos naquele restaurante que dizem servir deliciosa comida Khmer (2)? Para quê se o hotel oferece buffet continental?

E a tão fugaz passagem destes visitantes por Siem Reap em nada contribuiu para as vidas destas famílias. Aqui, a partilha não é equitativa entre o turista e o lugar.
O Camboja pede que sejamos melhores: melhores pessoas, melhores viajantes. Precisamos ler sobre os locais que visitamos, falar com as pessoas que neles habitam, não temer fazer questões, conhecer, aprender, desaprender.
O Camboja, e tantos outros lugares, precisam que sejamos melhores: melhores pessoas, melhores viajantes
Texto & Fotografia João Tamura