Este é, não tenho dúvidas, um dos artigos mais desafiantes desta jornada.
Em primeiro lugar, pelo seu título, que produzirá no pensamento reducionista um julgamento automático. Ainda assim, intencionalmente, optei por mantê-lo, pois não há palavras mais adequadas para um tema que é basilar e raiz de tudo o que vivemos.
Em segundo lugar, porque é uma mulher que o escreve e, por isso, embora tenha maior probabilidade de ser aceite e menos julgada do que um homem, muitos e muitas podem consciente ou inconscientemente ceder à tendência de o categorizar como um assunto da “bondade feminina” ou de “fazer o bem” e de pouca relevância para uma revista sobre Economia e Mercado. E é também por isso que a emergência da Liderança Regenerativa é tão importante.
A minha principal inspiração bibliográfica para este artigo é a “Liderança Regenerativa – O ADN das Organizações do século XXI que dão primazia à vida”, pelo excelente e consistente resumo que os autores Laura Storm e Giles Hutchins conseguem fazer, da jornada da separação (Pág.17).
Embora os seres humanos tenham começado a sair da África Subsaariana para várias partes do globo, há cerca de 100 mil anos, vamos saltar para os últimos 10 mil, em que os registos e evidências de diversos investigadores contribuem para demonstrar que, neste período, as sociedades eram pacíficas, igualitárias, com forte integração e vínculo com a natureza e com um traço comum às culturas antigas de todo o mundo:
Uma comunhão masculino-feminino sagrada, fruto da visão de Deus-Céu e Deusa-Terra e do profundo sentido de reverência à vida.
Com a mudança climática de há 10 mil anos (queda da temperatura entre os 10 e 4 graus) a que a Humanidade sobreviveu, a mudança social e de percepção de identidade – em que, por razões de sobrevivência, passamos a ver-nos não como parte, mas separados da natureza – e o advento da revolução agrícola, trouxeram com eles “o aumento do patriarcado, a crescente estratificação e divisão da sociedade, a priorização de Deus no Céu sobre a Deusa na Terra, a militarização generalizada, a mecanização de armas e ferramentas para exploração e dominação de outros seres humanos e da natureza, o uso generalizado da moeda, o advento da palavra escrita, o direito de posse da terra e muitas outras inovações culturais” (Liderança Regenerativa L.Storm & G.Hutchins), mantendo-se, ainda assim, apesar delas, um profundo respeito e relação entre natureza e vida humana até há cerca de 500 anos.
Seguem-se a pequena idade do gelo, o dogma difundido pelo Cristianismo de “Deus separado e acima de tudo”, e até a condenação da anterior simbiose com a natureza, manifestada sobretudo pelas mulheres que, além da forte conexão com os elementos naturais, utilizavam as suas propriedades medicinais.
É com a Idade Média que Deus e o Homem se divorciaram da Natureza (e da Mulher).
E embora nos possa parecer chocante ler excertos de Bacon (1603) sobre “como a natureza deve ser feita escrava do homem (…) espremida, moldada e dominada”, esta visão distorcida e obscura, não está apenas patente nas práticas intensivas e destrutivas de exploração da natureza – e suas comunidades.
O desconhecimento e preconceito em relação ao conceito de género ainda toca a todos os mundos, do sul ao norte, da classe baixa e analfabeta à classe alta e sobre-educada
Ela está patente na forma como, ainda hoje, vemos a vida com a lente da luta pela sobrevivência, a competição do dog-eat-dog e “a sobrevivência do mais apto” de Darwin, que ainda nos fazem pensar que esta é a nossa natureza, e não evidenciam as inúmeras formas de relação, parceria, cooperação e redes presentes na natureza e, claro, em nós como parte dela.
Este desequilíbrio profundo, originado pelo divórcio (e dominação) entre homem-natureza, masculino-feminino, mente-matéria, interno-externo, assente no reducionismo racional-analítico e mecanicista, que ainda hoje dita as regras na vida económica, social, cultural e política, é a raiz de toda a instabilidade, degeneração e exaustão a que assistimos.
E se quisermos realmente garantir que a vida continua, é bom que nos foquemos nas nossas originais, inatas e naturais competências de cooperação e parceria, garantindo que o caminho de volta à harmonização permite que a inteligência soberana da vida faça o seu trabalho de regeneração. Este é o caminho da reconexão.
É também desta visão de separação, que emerge o foco no problem-solving, que abordei no último artigo, e que perpetua a “categorização-resolução” de problemas isolados.
A ambição desmedida de “resolver a desigualdade de género, fabricando programas para mulheres em modo automático, é um dos exemplos que melhor aqui se enquadra, e que, não obstante a relevância de muitos deles, ignora o cerne da questão: a distorção e desequilíbrio entre feminino e masculino.
Todos os seres humanos têm características femininas e masculinas. No entanto, a história mostra-nos que as qualidades masculinas foram sendo percebidas como superiores e mais importantes do que as femininas.

O desconhecimento e preconceito em relação ao conceito de género ainda toca a todos os mundos, do sul ao norte, da classe baixa e analfabeta à classe alta e sobre-educada. E o boom de iniciativas que visa contribuir para a tão desejada igualdade de género, não só ignora questões basilares, como gera muitas vezes fragmentação, sectorial e geográfica, entre classes, indústrias, regiões, inequivocamente entre o mundo urbano e o mundo rural, desenvolvido e subdesenvolvido, global e tribal, moderno e ancestral, mas também e não menos importante, entre mulheres e homens.
O que nos falta, isso sim, é atenuar a forma hiper-racional, competitiva, masculinizada e orientada para a acção, conquista e dominação, e abrirmo-nos a uma forma mais feminina e orientada para a cooperação e relação, conectada com o coração, intuição, criatividade e em consonância e profundo respeito com a ciclicidade da vida.
Também o nosso anseio por compreender, sistematizar, controlar, extrair, colocando-nos não só separados do exterior, mas como donos e dominadores do exterior, afastou-nos do centro da vida, das nossas capacidades empáticas, sensoriais e intuitivas, que, ainda hoje, são muitas vezes vistas como irrelevantes, prejudiciais ou mesmo ridicularizadas.
Há um claro desequilíbrio (e domínio) das qualidades do hemisfério cerebral esquerdo (linear, causal, foco nas partes, polarização, uns contra os outros), sobre as qualidades do hemisfério cerebral direito (sistémico, relacional, foco no todo, nas relações e nos padrões, criatividade).
Contudo, a vasta investigação, sobretudo dos neurocientistas sobre este tema, mostra que esta tendência limita a nossa capacidade para lidar com a complexidade dos tempos que vivemos.
É sobretudo com as qualidades do hemisfério direito que podemos lidar com os desafios dos sistemas vivos, emergentes e complexos.

Algumas das tentativas de trazer esta consciência, mais evidentes a partir do final do século passado, descolaram-se da racionalidade e competitividade, mas caíram numa abordagem espiritualizada, pouco consistente e moralista, que obviamente não gera o discernimento que é necessário.
Já as abordagens organizacionais que, entretanto, se tornaram comerciais, parciais e, muitas vezes, pouco éticas, estão ainda longe de fazer um trabalho sistémico profundo que conduza à regeneração. Faltam-nos Arquitecta(o)s Cooperativ(a)os, Líderes Regenerativos, que activem a inteligência colectiva dos sistemas e os vivifiquem.
O caminho da reconexão, da reintegração e da regeneração é feito por todos e por todas nós. Cada um na sua esfera familiar, organizacional, comunitária.
Em parceria, em rede. Toda(o)s podemos activar o nosso pensamento sistémico, o nosso estado de agência, a nossa sustentabilidade interna e externa, a nossa relação simbiótica com a vida. E este é o caminho de reconexão com a inteligência soberana da vida.