Passámos meses a praticar o desapego às coisas que preenchiam a nossa casa: os livros e os discos que lotavam as estantes, a televisão sobre o móvel IKEA, as fotografias que decoravam as paredes, as roupas que enchiam os armários.
Quando tivemos a certeza dos nossos planos, começámos a esvaziar o nosso T2 em Benfica: vendi a minha colecção de discos através do OLX e os meus livros nos alfarrabistas do Chiado; despachámos os móveis pelo Marketplace do Facebook e a PlayStation numa daquelas lojas lisboetas que compra artigos electrónicos em segunda mão por 1/10 do seu valor original.
Vendi a minha câmara digital ao meu amigo Francisco e dei o meu carro ao meu pai. A minha mochila Quechua tem capacidade para 70L; a da Sara para 60L.
Após despirmos a casa quase por completo, iniciámos o árduo exercício de definir a carga essencial para os próximos meses: câmara de filmar, três livros, algumas mudas de roupa para o tempo quente, algumas mudas de roupa para o tempo frio, duas câmaras analógicas, dez rolos de película 35mm a cores, dez rolos de película 35mm a preto e branco, computador, guarda-chuva… fazemos e desfazemos as malas infinitas vezes, até encontrarmos a selecção perfeita de itens. Aterrámos em Kuala Lumpur às 23h, vindos de Chiang Mai.
Na fila à nossa frente, os homens que desembarcaram do 0315 da Bangla Airlines, vindo de Daca; do 0193 da Malásia Airlines, vindo de Bangalore; do 0415 da Nepal Airlines, vindo de Katmandu.
Eu e a Sara passámos meses a decidir os objectos que preencheriam as nossas mochilas para esta viagem; a escolha a que estes homens são obrigados é mais imediata que a nossa: pegam as poucas roupas que têm no armário, um ou dois pares de sapatos, um telemóvel capaz de ligar para casa, as rupias que têm na carteira e que, à chegada, trocarão para ringits, e uma mica capaz de guardar o passaporte, o contrato de trabalho, algumas fotos tipo passe e toda a restante documentação que possa ser solicitada aquando da chegada a este lado do Índico.
Esta fila é constituída por homens que vieram para Kuala Lumpur para construir os arranha-céus e os condomínios de luxo da capital; as auto-estradas que ligam Kuala Lumpur a Malaca, e Malaca a Johor; e a linha de metro que, em 2027, ligará a Malásia a Singapura.
Após cruzarem os postos de imigração do aeroporto, são acolhidos por amigos e familiares que já antes haviam feito esta mesma travessia e que os auxiliarão na aprendizagem desta estranha língua e destes novos costumes.
Grande parte do seu salário mensal retorna a casa: a Daca, a Bangalore, a Katmandu. Muitos trabalham para um dia também retornarem: para construírem uma moradia, fora da cidade; para abrirem uma loja; para comprarem um carro em segunda mão.
Outros trabalham para trazerem a família para junto de si. São esses os objectivos que os suportam dia após dia.
O nosso quarto fica em Brickfields – bairro historicamente ligado à população indiana de Kuala Lumpur, e onde o alojamento é mais barato.
Nesta Little India cruzo-me diariamente com os mesmos homens com que partilhei a fila para o posto de imigração, à chegada à Malásia – vejo-os pós-trabalho, nas paragens de autocarro e nas estações de metro, em videochamadas em bengali ou hindi, a acalmarem a saudade e a solidão por breves instantes.
Olho de soslaio para os pequenos ecrãs que os estendem através do oceano e vejo os sorrisos nos rostos femininos que pacientemente aguardam um bilhete de avião com o seu nome gravado, ou a ânsia dos filhos que tanto anseiam o seu abraço.
As casas em que habitam na capital malaia em muito contrastam com aquelas que constroem; vivem engolidos pela sombra dos arranha-céus e dos centros comerciais que as suas mãos ergueram.
Visito os seus bairros, os seus lares: entro em prédios de 15 ou mais andares, com mais de dez apartamentos por piso e demasiados corpos por apartamento – as roupas estendidas de patamar a patamar indicam serem famílias numerosas, aquelas que aqui habitam.
Nos pisos térreos, em frente aos restaurantes nepaleses e indianos, às lavandarias self-service, e às casas de apostas, que vendem raspadinhas e bilhetes de lotaria, um número quase infinito de scooters estacionadas.
Nas costas destas, as malas da Grab, da Food Panda, da ShopeeFood e da Airasia – empresas de food delivery que, a par das empresas de construção, empregam um sem número de migrantes.
Acordamos antes de o sol raiar e, antes de partirmos, reviramos o quarto de cima a baixo, de maneira a garantirmos que não esquecemos nada:
“A câmara de filmar que ainda não usámos? Já está na mochila; o carregador desta? Também; passaporte tens? Sim, já está guardado; relógio?
Está no pulso; e os quilos de roupas que trouxemos e não vestimos ainda? Na mochila, claro.”
O táxi aguarda-nos à porta do prédio e as nossas mochilas, cheias até ao seu limite, pesam em demasia – descer as escadas com estas às costas é uma tarefa árdua e penosa.
As estradas vazias permitem que demoremos menos de 30 minutos até ao aeroporto.
No entanto, e apesar da madrugadora hora, o aeroporto está lotado. Embora já tenhamos feito o check-in online, juntamo-nos à fila para despachar a nossa bagagem.
À nossa frente, uma família de quatro norte-americanos. Partirão para Bali e despacham oito gigantescas malas, todas com mais de 20 kg – ao lado destas, as nossas mochilas parecem-nos minúsculas.
Em sentido inverso, e já tendo cruzado os postos de imigração, vemos chegar os homens que desembarcaram do 0175 da Malaysia Airlines, vindo de Mumbai; do 2178 da SriLankan Airlines, vindo de Colombo; do 1815 da IndiGo, vindo de Chennai. São malas e mochilas pequenas, aquelas que estes homens carregam.
Ao contrário do que acontece connosco, não são essas que lhes pesam, mas sim coisas que as mãos não tocam, impossíveis de carregar às costas, de quantificar numa balança ou de acomodar num porão de um Airbus. Os norte-americanos viram-nos as costas e chega a nossa vez: “Your bag, sir?”
E o carrossel engole as nossas mochilas, cheias não só com roupas, mas com algo que ainda mais peso tem; algo que também as mãos não tocam, impossível de carregar às costas, de quantificar numa balança ou de acomodar no porão do Airbus que nos levará para a cidade de Ho Chi Minh.
É um privilégio aquilo que nos enche as mochilas até cima e que nos permite cruzar estas fronteiras não por necessidade, mas por opção.
Texto & Fotografia João Tamura