De Moçambique à República Centro-Africana, o Ruanda está a afirmar-se como uma potência militar, cujas capacidades de deslocação e de projecção são agora incontornáveis.
Estava escuro quando a horda de motos invadiu Dassari, uma cidade no norte do Benim, na fronteira com o Burkina Faso. Os homens pararam primeiro, por um momento, à frente de uma esquadra antes de dispararem um dilúvio de balas, matando dois polícias e deixando um ferido.
Este foi apenas o último de uma série de ataques perpetrados, desde o ano passado, na fronteira com o Benim. Na maioria, são obra de grupos islamistas, radicais, há muito estabelecidos no Mali e no Burkina Faso, mas que estão agora a aumentar as suas incursões nos Estados vizinhos da costa ocidental.
Em Setembro, as autoridades beninenses revelaram que estavam em conversações com o Ruanda quanto ao fornecimento de apoio logístico e de conhecimentos especializados, por forma a ajudá-lo a lidar com a violência jihadista. Cerca de 350 soldados ruandeses poderiam ser destacados, numa primeira fase, mas o seu número poderia duplicar. No entanto, de acordo com um porta-voz do governo do Benin, este acordo não previa o envio de tropas terrestres.
“Os soldados ruandeses ganharam uma reputação de excelência e ainda não se envolveram na trama de escândalos, de abusos sexuais e de indisciplina, que caracteriza tantos outros exércitos em missões de paz“
Esta não é a primeira vez que o Ruanda é abordado por outros Estados africanos para falar sobre questões de segurança. Desde o monstruoso genocídio em 1994, Kigali investiu nas Forças Armadas e destacou-as para África, nas muitas missões de manutenção da paz.
Segundo o Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), o Ruanda é o quinto maior contribuinte mundial para as missões das Nações Unidas e o segundo maior ao nível continental. Apesar do seu número relativamente pequeno, os soldados ruandeses ganharam uma reputação de excelência e ainda não se envolveram na trama de escândalos, de abusos sexuais e de indisciplina que caracteriza tantos outros exércitos envolvidos neste género de missões.
O Ruanda poderia ser comparado a Israel, nação do Médio Oriente, cuja pequena dimensão é inversamente proporcional à reputação do seu Exército. Em 2022, Israel classificou-se em 18.º lugar entre 142 países, no índice Global Firepower, que compara a força militar das nações.
“A participação do Ruanda em missões de manutenção da paz beneficiou-o”, confirma Phil Clark, professor de Relações Internacionais, na Escola de Estudos Orientais e Africanos (Soas) da Universidade de Londres. “O seu Exército construiu uma reputação de eficácia nestas operações multilaterais.”
Como resultado, há cada vez mais países que estão agora a voltar-se para o Ruanda para que este os ajude a manter ou a restaurar a segurança interna. Quando grupos rebeldes invadiram a capital da República Centro-Africana (RCA), na viragem do ano 2020-2021, foi ao Ruanda e aos mercenários russos do Grupo Wagner que o Presidente Faustin-Archange Touadéra se dirigiu para pedir ajuda.
Originalmente, as duas forças trabalharam em conjunto, mas, em Junho de 2021, o Ruanda suspendeu esta cooperação na sequência de um aumento de relatos de ataques a civis por parte dos mercenários do Grupo Wagner. Com a sua ajuda, o Presidente Touadéra conseguiu, no entanto, atenuar a pressão no cerco sobre Bangui. Depois, a presença contínua de soldados ruandeses desencorajou novos ataques à capital, garantindo, ao mesmo tempo, a segurança nos abastecimentos à República Centro-Africana.
A notícia espalhou-se rapidamente e, pouco tempo depois, Moçambique pediu a ajuda de Kigali. Há vários anos que Moçambique enfrenta uma insurreição, apoiada pelo Estado Islâmico, no Norte da província de Cabo Delgado. Isto já resultou na morte de mais de três mil pessoas e na deslocação de outras 800 mil para o Interior do país.
A intervenção das Forças Armadas ruandesas em Moçambique foi ainda mais eficaz do que na República Centro-Africana, em grande parte porque a situação era menos complexa, tratava-se apenas de uma operação localizada numa área de Moçambique contra um grupo jihadista, e não de uma série nebulosa de movimentos armados, espalhados por todo um território. No entanto, a experiência do Ruanda na República Centro-Africana provavelmente muito contribuiu para este sucesso.
A intervenção ruandesa resultou na rápida restauração da autoridade governamental em Cabo Delgado e levou os militantes islâmicos a fugir. Os moçambicanos receberam os soldados ruandeses de braços abertos e elogiaram os seus libertadores. Estes últimos ficaram na província de Cabo Delgado, participando no esforço de reconstrução e evitando novos ataques.
Oportunidade Perfeita
As autoridades ruandesas destacam um argumento moral para estas intervenções. Tendo sofrido a violência do genocídio de 1994, enquanto o mundo olhava para o lado, o Ruanda acredita agora que sabe como responder a tais atrocidades. Mas talvez não seja só isso.
As intervenções multilaterais suscitam um crescente descontentamento no continente. Do Mali à República Democrática do Congo (RDC), as missões de manutenção da paz da ONU são cada vez mais criticadas e alvo de acusações de piorarem as situações em vez de as melhorarem. As missões regionais, sob a égide da União Africana (UA), da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e mesmo da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), são consideradas essencialmente ineficazes e demoradas a serem criadas. A cooperação regional permanece limitada, devido a disputas de soberania entre vizinhos e à desconfiança em relação a qualquer intervenção externa.
Em contraste, as operações bilaterais, como as organizadas pelo Ruanda, podem ser decididas rapidamente e dentro de um quadro claro estabelecido pelos dois Estados envolvidos, sem a necessidade de passarem por laboriosas negociações multilaterais. As preocupações com eventuais violações de soberania são também menores, porque estas intervenções ocorrem exclusivamente a pedido de um país, e a cooperação é também mais simples de estabelecer, porque não envolve estruturas de comando complexas.
“Não é só o Ruanda”, continua Clark. “Em todo o continente africano, os Estados estão cada vez mais desconfiados das missões regionais ou da UA, e há uma forte procura deste tipo de missões bilaterais.” Em suma: o Ruanda está a responder a uma procura de mercado.
Estas operações são também largamente apoiadas pelas potências ocidentais. “É uma oportunidade perfeita”, reconhece Thierry Vircoulon, investigador associado do Ifri para a África Subsaariana. “Estes países precisam de ajuda para garantir a sua segurança, e o Ocidente não quer envolver-se demasiado, por isso há muitos argumentos a favor desta solução.”
França, por exemplo, manifestou publicamente o seu apoio à missão ruandesa no Norte de Moçambique, onde a Total Energies tem um projecto de gás natural liquefeito estimado em 20 mil milhões de dólares. O Presidente Macron libertou, então, 495 milhões de dólares de ajuda ao desenvolvimento do Ruanda. Numa altura em que as intervenções ocidentais em África sofrem de um crescente desinteresse – como é o caso da quase expulsão das forças militares francesas do Mali, em Agosto passado –, delegar estas missões de segurança a um intermediário africano é uma possibilidade apelativa. “Permite à França evitar acusações de neocolonialismo”, sublinha Clark.
“Ao assumir o papel de polícia continental, o Ruanda está também a reduzir o risco de ser acusado quer de abusos quer de violações dos direitos humanos no próprio território“
Mas é claro que o Ruanda não se limita a fazer favores a outros países. Deve, então, a comunidade internacional preocupar-se com os demais motivos?
Menor Risco de Críticas
O Ruanda tem um interesse pessoal em preencher a lacuna de segurança no continente. A presença das suas Forças Armadas em Moçambique e na República Centro-Africana melhorou as condições de acesso às explorações mineiras e agrícolas, permitiu a assinatura de contratos de infra-estruturas e teve benefícios económicos positivos para todos os países envolvidos.
Na República Centro-Africana, o Presidente Touadéra está agora a oferecer condições generosas aos investidores ruandeses – nomeadamente uma isenção fiscal de dez anos para os empresários que se instalem nas zonas rurais. Por sua vez, o Ruanda e Moçambique assinaram um memorando de entendimento para promover parcerias económicas.
Estrategicamente, ter uma presença militar no estrangeiro também aumenta a capacidade de um governo atacar os adversários. A chegada de soldados ruandeses a Moçambique não está totalmente relacionada com a presença de dissidentes ruandeses naquele país. Desde que o Exército ruandês se envolveu na segurança de Moçambique, pelo menos um opositor do governo ruandês foi assassinado em Moçambique, enquanto outros dois foram vítimas de tentativas de rapto e uma pessoa foi dada como desaparecida.
Ao assumir o papel de polícia continental, o Ruanda está também a reduzir o risco de ser acusado quer de abusos quer de violações dos direitos humanos no próprio território. De facto, o destino dos dissidentes ruandeses em Moçambique não tem causado grande agitação, nem mesmo a alegada colaboração do Ruanda com o grupo rebelde M23, composto principalmente por tutsis, que, desde 2012, tem vindo a travar uma guerra de guerrilha no Leste da República Democrática do Congo. Além disso, também nada se ouviu sobre o mau historial dos direitos humanos no Ruanda, onde os opositores políticos são regularmente alvo de raptos e de assassínios.
Um dos casos mais conhecidos envolveu o antigo chefe dos serviços secretos ruandeses, encontrado morto, em 2014, num quarto de hotel na África do Sul, depois de ser suspeito de conspiração num golpe contra o Presidente Paul Kagame. Correu o rumor de que o Presidente contratou assassinos para o eliminar.
O Ruanda está certamente consciente de que, ao participar nestas operações externas e ao contribuir para a segurança do continente, está em posição de se tornar indispensável para as potências ocidentais que são mais céleres a criticar as violações dos direitos humanos. “Esta não é a principal razão do seu envolvimento além-fronteiras”, diz Clark. “Mas certamente desempenha um papel. Quando se é útil, há menos hipóteses de ser alvo de críticas.”
As reacções às intervenções ruandesas no continente são outra questão. Alguns países não gostam de ver os soldados de Kigali a operar na sua esfera de influência. A presença de soldados ruandeses em Moçambique despertou a ira da África do Sul e da Tanzânia, bem como o descontentamento da SADC, para quem a escolha do Ruanda, em detrimento das forças regionais, prejudica a sua reputação.
É sabido que o intervencionismo ruandês faz estremecer muitos governos africanos, em grande parte porque a comparação não é lisonjeira para com eles.
Em várias grandes potências, como a Nigéria e a Etiópia, estão a ser levantadas questões sobre a razão pela qual os Estados com problemas de segurança optam por apelar ao pequeno Ruanda, em detrimento de grandes nações africanas com exércitos maiores e com maior autoridade no continente.
Quem lhe Sucederá?
Finalmente, há a questão do que vai acontecer, quando o Ruanda não for mais capaz de assumir o papel de polícia africano. Pois, embora tenha um Exército moderno e sofisticado, Kigali permanece limitado em número e em breve estará desactualizado, se continuar a intervir em todo o continente. Então, quem ficará no lugar do Exército ruandês quando este atingir os seus limites?
Historicamente, o Chade tem desempenhado um papel semelhante, há muito tempo, sobretudo na África Ocidental. Contudo, o país não tem tantos recursos e está actualmente a atravessar um período de transição complicado, desde a morte do Presidente Idriss Déby [que estava no poder há quase 30 anos], em Abril de 2021.
Outros candidatos não têm urgência em disputarem o lugar, e o continente está cada vez mais dependente do Exército ruandês. “Hoje, o Ruanda é a primeira nação a que outros países recorrem em caso de problemas de segurança”, explica Vircoulon.
“Mas o Exército ruandês corre o perigo de se esgotar”, diz Clark. “Ele vai atingir a percentagem máxima de forças que pode mobilizar no continente.”
Kigali encontrar-se-á num momento em que terá de traçar uma linha. Como a situação piora do Burkina Faso para o Togo, é pouco provável que o Ruanda consiga extinguir todos estes fogos, à medida que continua a aumentar a influência e o respeito pelas suas intervenções.
Autora: Jessica Moody . Orgão: Foreign Policy
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