O dia nasce do ventre da floresta envolto na cacimba que nos molha a pele. O Parque Nacional de Gorongosa acorda como se a noite fosse apenas um manto mágico sobre o sol. É dia outra vez, mas nada do mesmo. E então percebemos o porquê de ser sempre sugerido que os visitantes façam dois safaris, um ao fim de tarde e outro ao início da manhã.
Na tarde anterior, esbarrámos com um elefante solitário a esticar a tromba para aceder às folhas de uma acácia, com babuinos em piruetas e um bando de mabecos numa cesta. Com a noite, chegámos à lagoa ao fim de uma vegetação rasteira, como se fosse um mar de larvas de uma erupção recente, com a cor azul cinza do céu ao fim do dia e do sol com o laranja a roçar o vermelho. Uma cor que resiste mesmo depois do sol se pôr.
Mas nada hoje é como foi ontem. O céu deu outra cor à lagoa. As impalas, que durante a tarde estavam sempre esquivas, apenas vultos entre os arbustos a desafiar a nossa retina, pela manhã deixam-se ver por mais tempo, como se se espreguiçassem depois de uma noite em que estiveram demasiado ocupadas a ser invisíveis aos olhos dos predadores. Um hipopótamo deixa-se banhar numa destas lagoas feitas de vazio e água e folhas de árvores como confetes de celebração da vida. E não há de ser sempre isso um novo dia, a celebração da vida?
Um leão ruge, seguimos a direcção do som, perdidos na excitação de o encontrar. Mas no lugar sugerido pelo rugido, apenas uma garça no ramo mais alto da árvore, depois dela, só o céu. Em terra, nem sinais do leão, apenas ossadas − de um waterbuck, dizem-nos os guias mais experientes. A distribuição dos ossos dizem muito sobre os predadores. Os guias, neste ofício diário de perscrutar a vida selvagem, aprenderam também a ser legistas. “Foram os mabecos”. Como sabem? Dizem-me que estes cães selvagens que aprenderam a andar em bando para se tornarem mais fortes e eficazes, depois de abater a presa, destroçam-na, puxando cada um o naco que possa saciar a fome. Não há ar de dúvida no que falam, acedemos. Ao longe, uma manada de bois-cavalos aproxima-se. Mas nota a nossa presença e embrenha-se, de volta, pela floresta mais fechada. Outra vez, o rugido do leão. Viramo-nos para a nova direcção. “Não tens medo de encontrar o que tanto procuras?”, uma pergunta colocada a um dos personagens de um dos contos de “O Caçador dos Elefantes Invisíveis”, de Mia Couto, que agora podia ecoar como plot de um filme de terror. Mas o peso da curiosidade parece sempre fazer do medo pluma. Encontramos o leão refestelado num capim baixo, como se pousasse para a fotografia. Prepara-se para a sesta, depois de uma noite longa a tentar ser invisível até apanhar as presas. Parece notar a nossa presença. Mas depois vai-se encolhendo no capim, como se não quisesse ser fotografado ou filmado com a luz errada − Madonna dizia o mesmo de Warren Beatty.
Em Gorongosa, o peso da curiosidade parece sempre fazer do medo pluma.
O Parque Nacional de Gorongosa também se desfez da luz sépia do passado. A dos anos das guerras que quase o condenavam também à morte. Ressurgiu das cinzas pela mão de Greg Carr, um filantropo que fez fortuna na tecnologia e decidiu investir em causas ambientais. Em 2004, com o Governo de Moçambique, acordou reconstruir a infra-estrutura do Parque, restaurar a sua fauna e ora bravias e estimular o desenvolvimento económico. Hoje, quase 20 anos depois, o PNG é um exemplo de restauração e conservação de África e que tem muito a ensinar ao mundo.
Mas há a vida para lá do Parque. Pelos caminhos da famigerada Serra da Gorongosa, com montanhas pejadas de verde no horizonte, perseguimos a cachoeira. Sabemos que está por perto. Ouvimo-la a mover-se. A água corre e cai. A cachoeira parece nascer das pedras. A água corre e cai, agora sobre os nossos ombros.
Como ir?
A partir de Maputo, pode voar até à Beira. É uma viagem de perto de 200 km por estrada até chegar à Gorongosa.
O que fazer?
Safari ao fim de tarde e ao início da manhã. Seguir pelos trilhos até à cachoeira. Mas também visitar o tanto de projectos implementados pelo Parque, como o Centro de Reabilitação de Pangolim onde pode pegá-los
Onde comer
O restaurante do Montebelo Gorongosa Lodge & Safari fornece uma variedade de pratos.
Onde dormir
No Montebelo Gorongosa Lodge & Safari ou nas tendas na área do Parque, com direito a visita de facoceiros e de pequenos macacos.
Cuidados a ter
Não alimentar os animais. Ter sempre os guias por perto. Parte do trilho para a cachoeira é feito a pé, tem de estar devidamente calçado.
Revista Índico