É certo e incontestável que durante a pandemia do covid-19 não foram poucas as empresas tecnológicas que viram os seus negócios disparar.
Claro que, em Moçambique, o cenário foi, e continua a ser, um pouco diferente. E dizer pouco é, na realidade, constatar o muito que é ocupado pela distância enorme que separa as escassas, e ainda pequenas, empresas que actuam na área da inovação no País.
Numa altura em que está prestes a assumir um cargo preponderante na Associação das Pequenas e Médias Empresas (APME) na área das TIC; em entrevista ao DE, Alexandre Coelho, director-geral da VOID – uma empresa moçambicana de tecnologia especializada em gestão de inovação e transformação digital que trabalha com projectos de desenvolvimento de soluções que se enquadram naquilo que são os desafios emergentes do contexto africano na área do retail tech, agritech e fintech – olha para o contexto moçambicano e explica porque é que, na opinião de quem vive por dentro este mercado, a lucratividade da maior parte das startups que trabalha no ramo de inovação tecnológica é ainda escassa ou nula.
E situa o problema no mercado numa questão fulcral: a falta de investidores e mecanismos de injecção de capital nas startups moçambicanas que, por via disso, e de um mercado que ainda não está, ao nível do consumo, preparado para o que elas propõem, se debatem com problemas de sustentabilidade financeira, principalmente depois da pandemia, período em que muitos esperavam que servisse de oportunidade, como aconteceu noutras geografias.
Como olha para a questão da sustentabilidade das startups, depois da pandemia de covid-19 em Moçambique?
Há duas perspectivas para isso: costumo fazer muito trabalho de mentoria com empreendedores na área da tecnologia e sou sempre muito realista com as startups em Moçambique. O que digo é que não existem investidores, não existe capital de investimento à partida, por isso é preciso que a empresa seja sustentável. E isso leva muito tempo, a não ser que o produto que a startup tem seja altamente escalável, se torne viral rapidamente e consiga expandir-se também rapidamente. Se não, vai levar muito tempo até conseguir ter alguma sustentabilidade. Por isso é que a maioria das startups acaba por ‘morrer’.
“De facto, não foi um período em que a tecnologia ou quem trabalha na área possa dizer que sentiu um impacto positivo gigante”
Alexandre Coelho
Mas não foi o vosso caso, porquê?
Sim, mas não posso dizer que foi fácil, longe disso, porque a empresa foi constituída em Setembro de 2019 e, em Dezembro, começou uma pandemia global, que aqui, em Moçambique, só em Março de 2020 é que começou a apertar um pouco mais. Todos os planos e estratégias que tínhamos montado foram completamente alterados. Sentimos, então, um impacto muito grande naquilo que era a nossa estratégia, sendo que, por exemplo, o nosso produto UBI (primeiro produto da empresa, uma plataforma de informação sobre a cidade e tudo o que nela acontece, permitindo a interactividade entre os usuários, e composta por um ecossistema de aplicações e quiosques interactivos colocados nas avenidas da cidade de Maputo) estava muito focado nos eventos, e sofremos bastante porque estes praticamente deixaram de existir.
Assim, nos primeiros dois anos e meio tivemos de nos adaptar e readaptar. Curioso que, apesar de tudo, o nosso mercado tem uma sede muito grande de inovação e de tecnologia, mas temos ainda falta de educação digital por parte dos nossos dirigentes e decisores, o que cria alguma retracção. A pandemia no mundo inteiro foi um impulsionador gigante da tecnologia, mas vemos que aqui no nosso mercado não foi da mesma maneira. Só para dar um exemplo: várias plataformas de e-commerce “explodiram”, mas em Moçambique, por mais que tenham surgido inovações nessa área, não tiveram o mesmo impacto porque temos um contexto muito específico.
“Esta área de inovação tecnológica tem as suas dificuldades e limitações e também temos um mercado um pouco viciado, sendo necessário conhecer bem os caminhos”
Alexandre Coelho
De facto, não foi um período em que a tecnologia ou quem trabalha na área possa dizer que sentiu um impacto positivo gigante. Talvez para quem trabalhe com infra-estrutura de redes, e porque as empresas procuraram fortalecer toda a sua área digital mais para o desenvolvimento de soluções e uns pequenos websites. Mas para nós, que trabalhamos com o desenvolvimento de soluções mais complexas de negócio, não tivemos essa experiência. Esta área tem as suas dificuldades e limitações e também temos um mercado um pouco viciado, sendo necessário conhecer bem os caminhos.
E como é que se desbravam esses caminhos?
Foi, de facto, muito difícil manter o negócio durante a pandemia. Por duas vezes tive de analisar se seria possível injectar mais sócios, uma vez que é uma sociedade unipessoal, que sou eu. Tive de fazer suprimentos à empresa para poder sustentar a operação durante alguns períodos, mas à medida que a pandemia foi dissipando, começaram a surgir também algumas oportunidades, isto porque, durante a pandemia, as coisas também andaram muito dispersas, houve muita atenção para a área da saúde, sendo que muito do investimento ia para esse sector. Surgiram pequenas oportunidades, mas que não podemos dizer que davam sustentabilidade à empresa.
“Foi, de facto, muito difícil manter o negócio durante a pandemia. Por duas vezes tive de analisar se seria possível injectar mais sócios, uma vez que é uma sociedade unipessoal, que sou eu”
Alexandre Coelho
Aí também aproveitámos para a reposicionar. E foi nesse momento que decidimos pôr em standby a plataforma UBI e fazer um rebranding e um reposicionamento transformando-a naquilo que é hoje a VOID, uma vez que sempre foi o produto UBI a estar à frente da empresa. A estratégia foi, assim, puxar mais para VOID, afastando-a de um dos seus produtos. Especializámo-nos em gestão de inovação e transformação digital e temos conseguido projectos nessa área.
Quais?
Estamos a trabalhar com pelo menos duas das 50 grandes empresas de Moçambique. Uma é a maior empresa de produção de frangos e outra é uma das maiores que abarca várias áreas desde automóveis, imobiliário, etc. Nessas empresas, providenciamos apoio aos processos de transformação digital. Para nós, foi uma aposta ganha nesse sentido porque, depois da pandemia, com a questão do foco ter saído da área da saúde, acho que vieram ao de cima muitas fragilidades que existem a nível da nossa infra-estrutura de IT a nível global e, na sequência, foi anunciado um conjunto de injecções de fundos aqui no País. A título de exemplo, o Banco Mundial anunciou uma injecção de 500 milhões de dólares para um conjunto de programas de transformação digital, e temos várias outras organizações que também estão a investir em programas de transformação digital.
Nota que o sector privado está a aperceber-se da urgência na aposta em tecnologia e inovação como propulsor dos seus negócios?
Sim, o sector privado está a caminhar nesse sentido, inclusive a ver muito mais relevância em ter uma infra-estrutura de IT, por exemplo. Também fizemos uma escolha em trabalhar em determinadas tecnologias específicas, o que não é comum numa empresa como a nossa. Estamos a falar de tecnologias de arquitecturas de micro serviços, normalmente direccionadas para os bancos ou empresas de telecomunicações. Conseguimos, com isso, de facto, três grandes projectos e, felizmente, depois desta travessia pelo deserto, a empresa ganhou uma certa sustentabilidade.
“O que acontece é que muitas dessas oportunidades vão para empresas já consolidadas, com 20 anos de experiência no mercado e as pequenas e médias startups de tecnologia acabam por não ter tantas oportunidades nesses programas específicos de transformação digital”
Alexandre Coelho
Acredita que financiamentos de entidades como o Banco Mundial, Banco Africano de Desenvolvimento ou UE para a área da digitalização são fundamentais para impulsionar este segmento?
Acho que é inevitável que isso aconteça. Só temos de quebrar com algumas problemáticas que temos, que são, muitas vezes, os tipos de programas que depois são alocados às empresas que já têm um certo nome no mercado e, na verdade, existem algumas que, sem lhes tirar o mérito, têm todo o valor, mas muitas vezes, em alguma ocasião, não se adaptaram ao novo contexto mundial.
O que acontece é que muitas dessas oportunidades vão para empresas já consolidadas, com 20 anos de experiência no mercado e as pequenas e médias startups de tecnologia acabam por não ter tantas oportunidades nesses programas específicos de transformação digital. Mas quero acreditar que haverá oportunidades para todos.
Existe alguma associação a que estejam afiliados para apresentarem as vossas questões, em conjunto, aos decisores políticos para mudar este cenário?
É curioso falar disso, porque estou neste momento no processo de me juntar à Associação das Pequenas e Médias Empresas (APME) para assumir, à partida, a vice-presidência do pelouro de Tecnologias e Inovação e, eventualmente, depois, a presidência do pelouro, mesmo para influenciar políticas que possam beneficiar as PME de tecnologia. Já desenhei algumas acções, dados e planos para seguir neste caminho.
Asseguro que também temos desenhado isto a nível da VOID, num programa de inovação, que se chama “innovators club”, que vamos lançar brevemente, e que serve para gerar debate e conhecimento em torno do que é inovação. Isto porque constatámos que, no nosso mercado, fala-se muito de inovação, sendo esta uma palavra que está na ordem do dia, mas a maioria das pessoas não sabe o que significa nem sabe o que é inovar. Não estamos a falar só de tecnologia, estamos a falar de inovar num sentido mais lato e o que é necessário, quais são os passos, os frameworks para conseguir gerir inovação, como gerir a mudança e quais os resultados que a inovação traz.
Como tal, é algo que achamos pertinente: envolver um conjunto de pessoas interessadas em inovação, que vão poder discutir e gerar debate e ideias em torno deste conceito.
Texto: Nário Sixpene . Fotografia: Paulo Almeida