A Organização Holandesa de Desenvolvimento (SNV) vai dar início à implementação do chamado Investimento Responsável em Terras. A ideia é concretizar dois objectivos historicamente difíceis de conciliar: o acesso seguro à terra e a produtividade. Hilário Sitoe, da SNV, esclarece como se pretende lá chegar.
Com uma duração prevista para quatro anos e um custo de 800 mil euros (mais de 53 milhões de meticais), o projecto, lançado recentemente, terá ainda de juntar os principais interessados, nomeadamente o Governo, as comunidades e o empresariado para delinear formas de actuação.
A SNV pretende, no fundo, colmatar as lacunas que impedem o País de transformar a terra num activo para o desenvolvimento, numa altura em que a política e estratégia da mesma estão em revisão, e com um processo de auscultação muito deficiente.
De acordo com Hilário Sitoe, líder do sector da agricultura na SNV, além desta entidade, o projecto é administrado por um consórcio constituído pelo Centro de Pesquisa Florestal Internacional (CIFOR), pela Land Equity International (LEI), o Center for People and Forests (RECOFTC) e pelo World Agroforestry (ICRAF), e conta com apoio financeiro da Agência Suíça para o Desenvolvimento e Cooperação (SDC).
Recentemente, a SNV lançou um projecto a que chama de Investimento Transformativo em Terras que, entre outras questões, pretende “razoabilizar” a questão do acesso à terra pelas comunidades, ajudando a marcar uma posição contra o fenómeno da usurpação. Como é que projecta intervir neste domínio?
Primeiro, importa fazer uma contextualização à luz da Constituição moçambicana e uma retrospectiva para entender como estávamos e porque estamos assim hoje. É importante frisar e compreender que a evolução por si começa a mostrar e a trazer, não apenas em Moçambique, uma discussão à volta dos investimentos na terra.
“Porque é que as comunidades não são capazes de fazer da terra um activo? É porque não têm capacidade de usá-la para desenvolver projectos grandes e produtivos”
O Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) serve como um conforto para as sociedades menos favorecidas. Uma boa parte está nas mãos das comunidades, que a têm como recurso para o desenvolvimento de qualquer activo.
Como tal, se garantirmos que, à luz da actual legislação e do direito costumeiro, as comunidades continuem detentoras da terra, estamos a criar condições para que as mesmas possam gerar alguma renda e terem o seu meio de sustento.
Pode parecer que isso já funciona assim, até porque as comunidades já detêm a terra há tempos. Então, a pergunta pode ser: “porque é que não são capazes de fazer dela um activo?”
E a resposta é que não têm capacidade de usar a terra para desenvolver algo grande, não a podem tornar produtiva. Por isso circunscrevem-se apenas a praticar agricultura doméstica e, poucas vezes, conseguem excedentes para comercializar e tirar algum ganho para alimentar as suas famílias.
Uma das discussões importantes a este nível é o facto de a terra, por lei, ser propriedade do Estado. Não haverá, por isso, limites de intervenção do SNV na tentativa de proteger os interesses das comunidades e do sector privado?
Creio que a grande questão é essa. O projecto olha para todas estas dinâmicas na perspectiva de investimentos baseados na terra, exactamente para criar condições para sistemas alimentares mais sustentáveis.
Para discutir a agricultura na perspectiva de produção e comercialização tem de se olhar também para outros factores como os recursos naturais envolvidos, os sistemas de transporte e processamento.
Tem de se tornar a cadeia cada vez mais sustentável do ponto de vista de sistemas alimentares, e isso só é possível se tiver terra arável disponível e que possa ser utilizada, seja para pequenos investimentos ou para os grandes, mas que sejam capazes de gerar renda.
Assim sendo, o projecto quer criar condições para, de acordo com o contexto, estimular uma discussão dos diversos sectores – público, privado e organizações da sociedade civil –, e discutir o tema sob o ângulo do direito de terra por parte das comunidades e investimentos baseados na terra onde a comunidade é consultada.
A discussão estende-se aos aspectos relacionados com o financiamento de investimentos sobre a terra, mas também à necessidade de manter, provavelmente, o direito de uso e aproveitamento, sem excluir a propriedade porque, se isto for possível, estaremos a contribuir para melhorar a produção nas comunidades menos favorecidas. É essa, em suma, a visão do projecto.
A experiência mostra que é muito antigo e difícil de concretizar o objectivo de conferir segurança ao direito de uso e aproveitamento da terra às comunidades e ao empresariado. Qual será o aspecto inovador no projecto da SNV?
Já há três abordagens interessantes: uma é a das compensações não monetárias, mas à luz do uso e aproveitamento da terra. Outro modelo é o da plataforma das partes interessadas, porque pensamos que é possível aproximar o sector privado às diversas comunidades que querem proteger os seus interesses, direitos e deveres à luz da legislação primária. Depois, temos o sector privado que está interessado em aumentar os investimentos baseados na terra, e, por fim, temos o sector público que é o guardião e gestor da terra. Estamos a discutir todas estas questões para depois serem colocadas sobre a mesa e debatidas pelos três intervenientes – Governo, empresariado e comunidades.
“O projecto olha para todas estas dinâmicas na perspectiva de investimentos, exactamente para criar sistemas alimentares mais sustentáveis”
Repare que, por exemplo, na fase de consulta da nova Política Nacional de Terras, as comunidades não foram consultadas porque ocorreram eventos extremos, no caso os ciclones Idai e Kenneth, que dificultaram o acesso a algumas zonas onde as questões da terra são até mais prementes. Depois, temos a questão da insurgência no Norte, onde também não foi possível fazer consultas em certos lugares, sem contar com o covid-19, que coincidiu com o período das consultas, inviabilizando-as porque não podia haver contacto directo entre as pessoas.
A consulta às comunidades não foi feita na plenitude pelas questões que mencionei e isso não é culpa de ninguém. O que pode ter acontecido é que uma série de questões que talvez interesse às comunidades possa ter passado despercebida na actual redacção da política de terras.
Projectos similares estão a ser desenvolvidos noutros países, nomeadamente no Gana, Etiópia e Myanmar. Quais são as respostas que esses mercados deram e que poderiam dar uma visão do que vai acontecer em Moçambique?
O Gana tem um dos melhores exemplos de descentralização no uso da terra que promove o seu acesso seguro pelas comunidades e pelo empresariado. Naquele país, os líderes locais têm liberdade de decidir como a terra deve ser distribuída e utilizada, quer pelo sector privado, quer pelas comunidades.
Estes líderes estudam as propostas de investimento sobre a terra e decidem se devem ou não avançar com concessões para novos investimentos, mediante um estudo minucioso sobre os benefícios que esses projectos podem proporcionar à economia local. Mas para decidirem sobre isso contam com grande suporte técnico. Cada caso é diferente do outro, e cada país pode desenvolver a sua estratégia, mas no Gana funciona bem e existem investimentos de qualidade.
Haverá envolvimento do sector financeiro nestas discussões? Qual é o parecer deste sector sobre o projecto?
Imediatamente não será envolvido, mas vamos trabalhar com representantes do sector privado, incluindo a CTA. Um dos principais problemas que temos é que este devia ser um diálogo tripartido, mas não é possível ter o sector privado, o Estado e as comunidades em simultâneo. Deve-se, por isso, criar condições para se ter os três na mesma mesa a discutirem as premissas que existem para investimentos baseados na terra.
Se o sector privado quiser melhorar o seu ambiente de investimentos vai ter de fazer um programa com sustentabilidade ambiental, sustentabilidade social das comunidades e sustentabilidade técnica, porque tem de deixar as comunidades felizes, mas não com o que vimos habitualmente que é abrir um furo de água aqui ou uma escola ali. Creio que tem de ser um plano de desenvolvimento com mais sentido.
Temos, por exemplo, os investimentos do oil & gas que envolvem muitos milhões de dólares. E o que vemos é que fazem um furo de água enquanto podiam criar um plano de desenvolvimento mais bem elaborado ou fazer um plano de ordenamento daquela comunidade, investir em infra-estruturas sociais e criar condições para o desenvolvimento do capital humano que ali estiver, abrir escolas, disponibilizar bolsas de estudo e criar condições para que essas pessoas que se vão formar sejam empregadas.
Esse modelo já é usado em muitos países. Se uma determinada comunidade estiver próxima de um projecto de oil & gas, porque não transformá-la numa cidade? Do meu ponto de vista, a discussão deve ser por estas vias.
Ao fim dos quatro anos de duração, que País teremos em termos de exploração de terra se tudo correr conforme as previsões?
Nesta fase, estamos a fazer estudos que vão incidir no tipo de plano de acção que temos de ter para implementar as actividades à medida dos problemas que existem.
Mas eu creio que se nós chegarmos a um estágio em que o diálogo tripartido de facto ocorra, e as comunidades já participem nas questões dos grandes investimentos, e os DUAT para as comunidades sejam tramitados de forma muito mais célere, pode ser um grande investimento do projecto.
Há exemplos de lugares onde se fizeram grandes investimentos sobre a terra, que depois se transformaram em grandes cidades. Esse é um outro nível de anseios que requer muita seriedade e celeridade. As comunidades levam muito tempo à espera do DUAT, cerca de dez anos ou perto disso. O sucesso dos investimentos na terra passa por conseguir uma boa base de dados para a sua gestão, que as comunidades participem e tenham voz, e que os investimentos sejam social, ambiental e tecnicamente sustentáveis.
Texto Celso Chambisso • Fotografia Mariano Silva & D.R
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