Economistas alertam para possibilidade de haver falta de transparência na gestão das receitas provenientes do gás natural. Os especialistas foram contactados pelo Diário Económico (DE) para comentarem a recente proposta do Fundo Soberano, submetida pelo Governo à Assembleia da República, que prevê a canalização de 40% das receitas geradas pela indústria do gás para o Fundo nos primeiros 15 anos, ao contrário da proposta inicial, que estabelecia um peso de 50% para o Fundo e a outra metade para o Orçamento do Estado (OE).
Os economistas acreditam que, apesar de se desconhecerem as razões desta redução (embora reconheçam ser legítimo visto que o País funciona com base num orçamento deficitário), a entrada dos recursos de exploração do gás poderá agravar o velho problema da falta de clareza na gestão de fundos públicos.
Egas Daniel, da London School of Economics and Political Science (LSE), entende que a redução de 50% para 40% do peso das receitas fiscais para o Fundo Soberano espelha um maior peso de gastos no presente em relação ao futuro. Para ele, embora isso faça sentido pelo facto de o País ter necessidades prementes por satisfazer, pode-se correr o risco deste aumento de recursos para o OE não ser acompanhado pela melhoria da capacidade de absorção e uso eficiente do valor por parte do Estado.
“Isso pode acarretar um desperdício relativo de recursos enquanto não tiver sido fortalecida a capacidade institucional de gerar bons resultados com este valor. Assemelha-se a aumentar água num balde sem tapar os furos que deixam a água escapar desse balde”, alerta o economista, sublinhando que, “de qualquer forma, o País ainda tem um período de, aproximadamente, seis anos antes dos encaixes mais significativos de receitas para fortalecer as instituições (fechar os furos de ineficiência da despesa pública)”.
“É preciso ver a expectativa real das receitas ou previsões claras de gastos para se poder ter uma ideia muito mais realista”
Partilhando da mesma posição, o economista do Instituto dos Estudos Sociais e Económicos (IESE), Michael Sambo, olha para alguns factores económicos que podem ter originado esta redução das receitas a alocar ao Fundo Soberano. Mas questiona também quais as expectativas de incremento nos gastos públicos previstas para os anos vindouros.
Na visão do economista do IESE, é preciso ver a expectativa real das receitas ou previsões claras de gastos para se poder ter uma ideia muito mais realista, visto que, “ao criar-se o Fundo, espera-se um grande volume de receitas fiscais, e, portanto, alta lucratividade com as vendas. Além disso, também se pretende proteger a economia da volatilidade dos preços no mercado internacional”.
“Não havendo clareza nos gastos que serão feitos, pode-se fazer gastos relativamente arbitrários, pois não se tratam de receitas que advêm de impostos pagos pelo cidadão, mas de um recurso que pertence ao Estado moçambicano do qual todos nós somos parte. No geral, acho que o importante não é discutir o que terá provocado esta redução da alocação ao Fundo, mas, sim, quais os projectos que poderão absorver os 60% das receitas que se espera gerar sem, necessariamente, causar choques macroeconómicos e financeiros para Moçambique”, salientou.
Michael Sambo explica que, ao fazer esta proposta, o Governo deve estar a prever gastos bastante acentuados. No entanto, espera que, com a entrada destas receitas, haja dívidas públicas saldadas, sem que se volte a contrair outras enquanto os recursos estiverem a gerar receitas.
O economista alerta, igualmente, para a necessidade de se apurar as reais estimativas do volume de receitas que Moçambique poderá absorver sob risco de se fazerem previsões exacerbadas.
“As estimativas de receitas têm sido, muita das vezes, sobrestimadas. Talvez não seja o caso do gás natural do Rovuma, mas, no início, houve alguma estimativa por cima, relativamente à exploração do gás de Temane e Pande, em Inhambane, tanto que havia uma disparidade daquilo que eram as estimativas do FMI, do Banco Mundial, do Ministério dos Recursos Minerais e do que depois foi se efectivando como receitas. É, pois, importante, anotarmos esta questão”, reiterou o economista do IESE para depois questionar: “Quais são os mecanismos que foram tomados em consideração para que as estimativas sejam mais ajustadas/realistas?”.
Alocação: eis a questão
Não obstante, e sob pena de se continuar a observar esta fraca transparência da gestão dos fundos provenientes dos recursos naturais que o País dispõe, Egas Daniel sugere que os recursos sejam distribuídos pelos sectores sociais como uma estratégia de desenvolvimento, uma vez que a recente proposta submetida ao Parlamento não contempla esse aspecto.
“A proposta do Fundo não contempla directrizes claras sobre como se vai promover o desenvolvimento através do financiamento aos sectores sociais. Pode ser que isso venha a ser feito à posteriori. O sector da saúde parece ter avançado significativamente na estruturação de uma Estratégia Nacional de Financiamento do Sector (que inclui uma métrica de financiamento situada ao nível de 3,5% do PIB como critério de alocação de recursos). É necessário que o Plano Económico e Social e Orçamento do Estado (PESOE), uma vez recebidos os valores do Fundo, apresente uma secção específica que demonstre como e onde os recursos do mesmo serão aplicados”, argumentou o Egas Daniel.
De acordo com a proposta submetida à Assembleia da República, 40% das receitas fiscais provenientes da exploração de gás no norte de Moçambique serão canalizadas, nos primeiros 15 anos de exploração, para o Fundo Soberano que o País está a preparar para gerir os quase 100 mil milhões de dólares que deverá receber em receita fiscal.
Depois, a percentagem sobe para 50%, de acordo com a versão preliminar da lei, cuja submissão aos deputados deverá acontecer até final deste ano. Esta parte representa uma variação face à ideia de 2020, na qual o Fundo receberia 50% nas primeiras duas décadas, um valor que subiria depois para 80% dos impostos provenientes do sector do gás.
A proposta de lei do Fundo Soberano de Moçambique (FSM) prevê que a capitalização arranque com as receitas deste ano da plataforma Coral Sul, que começou a extrair gás do Rovuma em Junho.
“As receitas provenientes da exploração do projecto FLNG Coral Sul de 2022 são repartidas” de acordo com o articulado da nova lei.
A proposta de lei, que deverá ser apreciada pelo Parlamento até Dezembro, segundo o memorando entre o Governo e o Fundo Monetário Internacional que sustenta o programa de assistência financeira de 470 milhões de dólares até 2025, prevê que o Fundo Soberano seja capitalizado nos primeiros 15 anos com 40% das receitas do gás e petróleo, cabendo 60% ao Orçamento do Estado (OE).
Contudo, segundo o relatório divulgado há dias pelo Centro de Integridade Pública (CIP), a proposta do Fundo Soberano negligencia a componente de desenvolvimento. Para o CIP, o documento “não prioriza o investimento”, componente que poderá promover mudanças estruturais necessárias para o desenvolvimento acelerado de Moçambique.
Texto: Hermenegildo Langa