O chefe de cozinha Rodrigo Pazos teve a ousadia de levar à mesa de jantar a planta associada à violência na Colômbia. “Sobre um biscoito de massa mãe, adicione a farinha de coca para dar amargor à receita”. O cozinheiro espalha o pó da folha que é a matéria-prima da cocaína, droga que alimenta o conflito armado e da qual a Colômbia é o principal fornecedor mundial.
A folha, ancestral para as comunidades indígenas e energético milenar durante as suas longas jornadas de trabalho, carrega o “estigma” do narcotráfico.
Mas o chefe de cozinha Rodrigo Pazos não é o único a utilizar esta planta: vários dos cozinheiros mais renomados da Colômbia têm-na usado como ingrediente inovador.
Pazos, de 34 anos, serve o biscoito banhado em farinha de coca com um tartar de atum e pipián (um cozido típico), cinza de alecrim e arroz de titoté (coco). “Em primeiro lugar, é desafiador como cozinheiro incluí-la nos menus e, em segundo, que tenha aceitação do público”, acrescenta o chef, que vende o prato a 7,7 dólares (cerca de 326 meticais).
Gosto estranho
Rodrigo Pazos prepara um prato com farinha de coca num restaurante de Bogotá, em 23 de Agosto de 2022. Várias sessões de “tentativa e erro” levam-no a deparar-se com a receita que combina os sabores do Pacífico e do Caribe à folha cultivada em 24 Estados dos 34 da Colômbia.
Confiando em que, algum dia, se torne num condimento como o sal ou a paprica, os chefs que se aventuraram a cozinhar com farinha de coca ainda exploram receitas com o seu gosto amargo.
Pazos tentou “assá-la”, “diluí-la” e misturá-la com ovo antes de o paladar o aconselhar a deixá-la pura.
Outros adicionaram-na a molhos, cocktails ou em misturas no Reto Coca (Desafio Coca), uma iniciativa que, desde 2019, reúne cozinheiros eminentes em torno da planta colhida pelos indígenas com permissão, em Lerma, município do sudoeste da Colômbia, castigado pela violência.
As receitas, compiladas no site retococa.org, são a excepção de um problema que a Colômbia enfrenta pela explosão dos narcocultivos. Segundo a última contagem da ONU, o país tem 142 mil hectares plantados com coca.
O próprio Pazos nasceu em Popayán, cidade próxima de Lerma. Na adolescência, enquanto viajava por terra com a sua família, viu veículos incendiados pela extinta guerrilha das FARC, que extorquia civis nas estradas.
“Levar a coca para o forno e fogão”, diz o chef, “aponta um caminho longe da ilegalidade para os cultivadores. É dizer-lhes: ‘pronto, cultivem a coca, porque vários cozinheiros em diferentes cidades estão a trabalhar com ela e incluem-na nos seus menus’.
A farinha de coca, rica em ferro, fósforo e cálcio é também vendida em mercados de Bogotá e na Internet por cerca de nove dólares o pacote de 250 gramas.
Tabu
O chef colombiano Yulián Téllez prepara um prato à base de farinha de coca num restaurante de Bogotá, em 23 de Agosto de 2022.
Num outro restaurante, sofisticado, de Bogotá, Jeferson García introduz um doce cremoso à base de coca em pó num saco de pastelaria. De seguida, cobre um biscoito de coco ralado, misturado com uma semente amazónica e rapadura.
Com receitas como esta, pretende “tirar esse tabu” da coca. “Todos sabemos que a Colômbia é denominado como o país que mais exporta” cocaína, mas a folha “é uma planta (…) que os nossos ancestrais utilizavam”, diz.
Junto dele, Yulián Téllez remexe numa panela colágeno bovino com rapadura até produzir a gelatina de pata, um doce típico dos Llanos Orientales (Planícies Orientais), onde cresceu, vendo de perto o conflito entre guerrilhas e paramilitares, com a população civil no meio. O homem adiciona coca à mistura pegajosa e cobre com toucinho, enquanto recorda as noites na sua povoação, Guamal. Tinha de “dormir debaixo de uma sala de jantar com colchões” porque a sua família morava ” perto da esquadra de polícia “, que os guerrilheiros atacavam com granadas.
Hoje, alguns perguntam “como lhe passa pela cabeça” vender pratos com coca. Fazendo ouvidos moucos, continua e continuará a usar a farinha no seu restaurante.
“Muitos cozinheiros como eu estão a ver as suas propriedades e a perceber que podemos preparar muitas coisas bem interessantes”, argumenta.
Exame