O País produz apenas 5% do trigo que consome, em parte porque os produtores não conhecem as especificidades desta cultura nem as técnicas para o fazer, embora este seja apenas um dos problemas apontados pela União Nacional dos Camponeses, através do secretário-executivo, Luís Muchanga
Fundada em 1987 e registada em 1994 com o objectivo geral de representar os camponeses e as suas organizações para assegurar os seus direitos sociais, económicas e culturais através do fortalecimento das organizações camponesas, a União Nacional dos Camponeses (UNAC) congrega cerca de 150 mil famílias camponesas à escala nacional.
“Não reconhecemos, como País, o quanto o trigo é importante e o quanto precisamos de aumentar a produção. Isso não é compreensível, não se pode falar da dieta alimentar sem se pensar em trigo”
De todos, reconhece que os produtores de trigo são residuais, e quase inexistentes. E, à semelhança do sector privado, aponta os nós críticos que minam a produção deste cereal e o caminho que pode libertar o País da dependência de importações. Luís Muchanga, secretário-executivo da UNAC, explica à E&M porque não se produz trigo em Moçambique, o que falta e o que deveria ser feito para tornar o País auto-suficiente.
Quais são os factores que levam à baixa, ou quase inexistente, produção de trigo em Moçambique?
É o facto o País, embora com boas condições ecológicas para a produção do trigo, não estar a capitalizar essa vantagem.
Não reconhecemos efectivamente o quanto este cereal é importante e o quanto precisamos de aumentar a sua produção. Isso não é compreensível se tomarmos em consideração que não se pode falar da dieta alimentar de um moçambicano, particularmente na zona urbana, sem o trigo. Actualmente, a oferta interna cobre apenas 5% da demanda, muito longe de poder sequer pensar em cobrir a necessidade interna.
E como se altera este paradigma?
Em 2008, quando tivemos os primeiros sinais da crise mundial de alimentos, houve uma mobilização e intervenção que tinha como meta reduzir o défice de produção para menos de metade da procura interna em muito pouco tempo (cerca de três anos).
Isto é, numa altura em que o País precisava de 370 mil toneladas de trigo, nós afirmámos que conseguiríamos cerca de 190 mil toneladas em pouco tempo.
Em que consistia esse programa e o que levou a que essa meta não se concretizasse?
Era um programa ambicioso. Um plano alargado de produção alimentar – O Plano de Acção para a Produção de Alimentos 2008-2011 – que ficou activo durante uma crise que se caracterizou pelo aumento acentuado dos preços do trigo, mas que, quando estes começaram a descer, as autoridades relaxaram do ponto de vista de intenção política e intenção prática no investimento para a produção. Ou seja, não conseguimos colocar em prática a nossa perspectiva que era, na altura, a de lidar com os desafios que existiam.
A que desafios se refere? Muitos deles são ainda actuais, ou não?
Um deles está na área da pesquisa. Sendo esta uma cultura que não é muito praticada no nosso País, precisamos de nos orientar com base em dados e indicadores, pelo que o primeiro passo passará por investir na investigação para que possamos produzir à escala necessária. Mas, além disso, há toda uma cadeia para ser repensada, do processamento ao armazenamento, passando pela formação técnica dos pequenos produtores, a abordagem às questões climáticas, etc.
Na altura, foram arroladas as províncias de Manica, Sofala e Tete, que nos davam maior possibilidade de incrementar a produção do trigo. Mas passado todo este tempo não conseguimos fazer nenhum investimento, voltámos ao relaxamento e olhamos para a importação como se fosse o principal desafio.
O que parece ser claramente o caminho errado, concorda?
Primeiro, não vemos a oportunidade que temos de entrar no mercado e apoiar a produção deste cereal. Também não estamos a apostar na pesquisa necessária nem na capacitação técnica dos produtores para que eles possam ‘pôr a mão na massa’.
E, depois, não estamos a preparar o conjunto de processos que dinamiza a própria cadeia. Nada está a ser pensado numa corrente única para que possamos dar passos significativos.
Quer dizer que as fragilidades recaem todas sobre os fazedores de política? Qual é o papel dos produtores neste processo?
Os produtores, como disse, precisam de ser estimulados e formados. Não são capazes de dar passos consistentes sozinhos se a ideia for a produção do trigo em larga escala. Essas questões já foram identificadas há muito tempo. Houve essa intenção, mas não foram dados os passos concretos no sentido de nos capacitarmos e fortalecermos internamente para partirmos, de forma agressiva, rumo à produção deste cereal.
“Não devemos pensar em investir hoje para ganhar hoje. Precisamos de políticas públicas coerentes. Não temos políticas que garantam a segurança alimentar, e é preciso pensarmos na segurança e na soberania alimentar”
É difícil esboçar o tempo exacto durante o qual é possível ter resultados visíveis de uma intervenção desta dimensão, porque as campanhas agrícolas estão ligadas a outros factores externos, como os choques climáticos que temos vindo a sofrer nos últimos tempos, mas tenho a certeza de que, não podendo eliminar a dependência das importações em tão pouco tempo, podemos reduzi-la significativamente.
As alternativas ao pão, muitas vezes apontadas pelos governantes, também passam pela intervenção dos agricultores. A mandioca e o milho são parte dessa matriz. Haverá, também aqui, alguma responsabilidade do lado dos produtores, concorda com isso?
É verdade. É preciso ver outras alternativas para reduzir a demanda do trigo na produção alimentar. Aqui em Moçambique, em 2008, houve um trabalho muito interessante, no qual participou a Universidade Eduardo Mondlane (UEM), e que consistiu em ver que tipo de dinâmicas podiam ser pensadas na produção do pão para que o País pudesse reduzir o volume necessário do trigo para satisfazer as necessidades internas.
Nessa altura, a solução encontrada foi a mistura de uma pequena percentagem da farinha de milho e de mandioca na farinha de trigo. Essa experiência deu certo e foi possível reduzir a necessidade do trigo em 30%. O ponto essencial é que essas questões foram consideradas apenas no momento da crise que se vivia, e depois foram esquecidas, mesmo sendo importantes. Imagine se em 2008 tivesse sido levada a cabo, de forma contínua, a iniciativa de misturar 30% da farinha de mandioca em 70% da farinha de trigo. Hoje, provavelmente, estaríamos a usar 30% do trigo e 70% da farinha de mandioca.
Mas o Governo já reagiu sobre as alternativas que tinham sido consideradas naquele âmbito, e diz que concluiu que o pão produzido, envolvendo a produção da mandioca, sai ainda mais caro…
Essa percepção tem que ver com a forma como queremos promover e incentivar a cultura da mandioca.
Por exemplo, a mandioca hoje está a alimentar uma fábrica de cervejas (da CDM, produzindo uma gama de produtos da cervejeira).
As províncias de Nampula e Inhambane são grandes produtoras da mandioca.
Se acreditamos que esta cultura pode ser uma solução, considerando que o País é o quarto maior produtor mundial deste tubérculo, significa que temos potencial e condições climáticas para produzi-lo em massa.
Acredita que se produzirmos massivamente a mandioca sairá cara? É que, quando se diz que estamos à procura de soluções, não podemos olhar para a mandioca de forma isolada. É preciso olhar a sua massificação e produção, trazer a capacidade de processamento.
É tudo uma questão de garantir a soberania alimentar, que é uma forma de também garantir o bem-estar dos moçambicanos. O problema da mandioca é a produção e o processamento. Não apenas a produção. E há exemplos. Em Nampula processa-se mandioca até nos bairros. Porque não podemos alargar esta prática?
Outra alternativa é a chamada “broa de milho”, que é um pão muito caro, mas que, quando produzido de forma massificada e por pessoas formadas para o efeito, é possível fazê-lo em larga escala. Não devemos pensar em investir hoje para ganhar logo a seguir. Precisamos de políticas públicas coerentes e não temos políticas públicas que garantam a segurança alimentar. Mas é preciso pensarmos seriamente nesta ideia de soberania alimentar.
E de que forma podemos estimular o produtor nacional, na sua pequena dimensão, a produzir o trigo sem contar com o apoio do Estado? Seria isso possível?
Precisamos de ambas as coisas, e é necessária a intervenção do Estado. Primeiro, porque este precisa de perceber que há que dinamizar a produção desta cultura e de toda a sua cadeia de valor.
Para isso, são indispensáveis políticas públicas, incluindo as proteccionistas, tal como aconteceu com a produção do frango, que tem dado bons resultados ao nível da redução da importação. Tenhamos essa mesma visão na produção do trigo. Depois, precisamos de um investimento público sério que passe por conceder assistência técnica. Por exemplo, porque é que o trigo não faz parte das culturas que foram seleccionadas como emblema do País, sabendo-se da importância que tem?
Precisamos também de garantir que os agricultores saibam trabalhar com esta cultura, garantir que o mercado absorve a produção feita pelos camponeses e com preços que estimulem a produção.
Nós temos uma riqueza que não estamos a tomar em consideração, somos um país que tem 70% da população a viver no meio rural, desse universo, 80% está dedicado exclusivamente à produção agrícola, mas não estamos a capitalizar esta vantagem.
Texto Celso Chambisso • Fotografia Mariano Silva