Xefina pode ser lembrada como o primeiro baluarte de defesa da Costa durante a I Guerra Mundial. Ou como o lugar da morte de Dionísio António Ribeiro, governador de Lourenço Marques. Ou como a prisão-desterro de nacionalistas moçambicanos. Ou como o chão sagrado onde foi rodado “O Tempo dos Leopardos”. Ou como o lugar por onde se moviam Alfredo e Jôta, personagens de Juvenal Bucuane no livro que leva o nome da Ilha.
Há uma pluralidade de vozes sobre Xefina. Há História e há histórias. Há os personagens fictícios e há os reais ou aqueles que se movem entre os dois universos como Pwapo, que nos recebe logo à chegada. A princípio, pensamos ouvir Guapo, esse termo espanhol que invoca beleza. “Pwapo, na minha terra, Nampula, significa velho”, esclarece. Mas nem sempre foi o nome dele – afinal, ninguém nasce velho, continua estranho o caso de Benjamin Button.
“Quando cheguei, existia aqui um velho da minha terra que eu chamava Pwapo por respeito. Quando morreu, toda a gente passou a chamar-me assim”, explica. É o caso dos nomes que damos e que acabam também sendo nossos por contaminação. E o tempo o fez merecedor, agora já com 63 anos a tingirem de branco os fios das barbas que se deixam ver. Nascido na Ilha de Moçambique, chegou à Xefina como Sambo Ali na boleia de um amor que prometia terra em que fosse erguida uma casa, um lar. Mas depois de alguma felicidade, a mulher decidiu deixá-lo para trás e seguir para Inhambane, levando os dois filhos, que o visitam de quando em vez.
Mas a mulher nunca mais viu. Deixou a vida militar em 1987, com uma passagem pela tropa e pela guerra. Não revela se desertou ou se foi desmobilizado. Mas o olhar, com as íris da cor das nuvens que anunciam chuva, diz-nos alguma coisa do que andou a ver nos anos de guerra. “Aqui é a minha casa. Todo o mundo me conhece”, gaba-se. O que não é difícil considerando que não se contam mais de 100 habitantes no perímetro da Ilha. Percebe a provocação e decide alargar o território. “Mesmo no bairro dos Pescadores, todos me conhecem”. E por onde chega esta fama? “Eu não tenho problemas. Sou boa pessoa”. Não o podemos desmentir. Sem saber quem chegava, sozinho formou quase uma comitiva de recepção.
Depois de a nossa lancha ancorar, mostrou-se disponível para nos levar pelos labirintos da Ilha que fez de sua casa desde 1988. O barco que se move à velocidade da agilidade dos seus braços permite alimentar o corpo. Mas o espírito parece perdido. Ao longo da viagem percebemos que há momentos em que se quer evadir do mundo. Talvez por isso continue a viver na Ilha. “Não cansam de falar?”– Pwapo. A agressividade que a pergunta podia sugerir diluiu-se com o riso que soltou a seguir. Mas ele cansa, estava cansado e precisava de descansar.
Há uma pluralidade de vozes sobre Xefina. Há História e há estórias. Há os personagens fictícios e há os reais ou aqueles que se movem entre os dois universos…
Foram cerca de 20 minutos a arrastar os pés pelas matas, as mãos como catanas a abrir caminho. Nem voz. Mas já nos havia mostrado as ruínas de um antigo quartel, o comando que faz a foto da capa do livro de Juvenal Bucuane, uma casa que presumimos que fosse do comandante, um refeitório e uma prisão com celas minúsculas que continua sombria. São as últimas paredes de um tempo que se está a esfarelar. Chegados à zona norte da Ilha, vemos o que um dia foi baluarte, com bunkers, canhões e as celas submersas pelo mar. Como se a maré tivesse baixado e revelasse uma cidade, uma versão armada de Pavlopetri. “Isto tudo estava dentro do mato quando cheguei”, voltava assim à fala.
E Carlos Serra, ambientalista e biólogo com quem falámos depois, confirma. “Não há nenhum plano de protecção para a Ilha”, declarou. E o mar vai fazendo o seu império, engolindo a memória. A ilha de Xefina Grande, este torrão de terra a minorar-se enquanto o mar cresce, corre o risco de desaparecer como aconteceu com as ilhas de Xefina Pequena e Média, extinguindo toda a ideia do que um dia fora arquipélago. “Se a Xefina acabar, o bairro dos Pescadores também vai ficar ameaçado”, avisa Pwapo. Mas quem o vai ouvir?
ROTEIRO
COMO IR
A partir de Maputo, com uma agência de viagens, como a Safe Travel, pode ir de lancha até à Ilha Xefina. É cerca de uma hora pela estrada de água.
ONDE DORMIR
Pode acampar na Ilha. Mas precisa de consultar as autoridades locais. Ou, então, pode passar a noite em estâncias hoteleiras na cidade de Maputo.
ONDE COMER
Não há restaurantes, pelo que deve sempre levar mantimentos a bordo.
O QUE FAZER
Palmilhar a Ilha é preciso. Pode sempre lançar uma semente ou muda à terra na esperança que se faça árvore. Mas pode também fazer a viagem à Ilha dos Portugueses cujas águas convidam para um mergulho.
CUIDADOS A TER
Levar calçados que lhe permitam caminhar pelas matas. Seja precavido/a ao entrar pelas celas, são agora abrigos de morcegos. Não é aconselhável que escale as ruínas do baluarte submersas no mar.
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