Enquanto famílias, empresas e até o Estado são sufocados pela cada vez maior factura de aquisição dos combustíveis, chegam-nos sinais de que os próximos tempos não serão melhores e fica uma certeza inquietante: mesmo tendo subido, a verdade é que os preços dos combustíveis em Moçambique deveriam ser ainda mais elevados porque, a continuar assim, todos perdem, incluindo o Estado que está a cobrir a diferença entre o preço real e os preços actualmente praticados.
A E&M explica como funciona este mercado tão impactante em praticamente tudo ao nosso redor e revela como se chega aos preços finais que nos tocam a todos no bolso.
Há algumas semanas, as gasolineiras convocaram a imprensa para protestar contra a fraca capacidade de geração de receitas do sector. As contas feitas na altura pelo presidente da Associação Moçambicana de Empresas Petrolíferas (AMEPETROL), Michel Amade, indicavam, por exemplo, que uma viatura que abasteça em Ressano Garcia e cruze para Komatipoort, na África do Sul, estará a pagar, em Moçambique, 19,89 meticais a menos por litro. O preço justo, segundo a organização, seria o de 26,9 meticais a mais para o diesel. Quanto à gasolina, deviam ser cobrados 19 meticais a mais por litro, sobre os actuais 77,39 meticais, perfazendo 96,39 meticais por litro. Isto quer dizer que o preço em Moçambique estará desajustado em relação ao que deveria ser o preço real que pudesse gerar lucro face à subida de preços do crude no mercado internacional.
Preços altos para o consumidor mas baixos para os operadores do mercado: eis o dilema do mercado nacional
Da comparação realizada pela AMEPETROL entre sete países da região, nomeadamente a Tanzânia, Essuatíni, África do Sul, Zâmbia, Zimbabué e Quénia, Moçambique tem os preços mais baixos dos combustíveis. E, apesar de as gasolineiras estarem cientes de que estes valores são elevados para a capacidade financeira dos cidadãos e das empresas, consideram que manter a estrutura actual de preços pode resultar na redução da capacidade de importação de alguns operadores, que já começaram a queixar-se.
O Governo, através do ministro da Economia e Finanças, Max Tonela, já veio a público admitir que “pode ser que tenhamos de fazer mais um ajustamento para garantir a continuidade do fornecimento dos combustíveis no País”. De facto, em meados de Junho corrente, a Autoridade Reguladora de Energia (ARENE) anunciava a perspectiva, no mesmo mês, de uma nova subida do preço dos combustíveis e produtos derivados, justificada por um “choque externo”. Era mais um golpe para os consumidores, que ainda sentem o peso do ajuste feito em finais de Maio.
O que não se consegue ver
Ricardo Cumbe, secretário-geral da AMEPETROL, organização composta por 30 operadores associados, afirma que a questão da subida do preço dos combustíveis tem sido analisada de forma simplista, ou seja, as pessoas fazem leituras desajustadas da realidade, chegando até a relacionar o que se assiste nos dias que correm ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia. “Mas é uma questão tão complexa que exige um exercício aturado para que se perceber a sua génese”, avisa. O responsável explica que a actividade do sector é coberta por uma legislação e o grande problema é a falta do cumprimento do Decreto n.º 89/2019, de 18 de Novembro, particularmente no que diz respeito ao ajustamento de preços.
“As pessoas fazem leituras desajustadas da realidade, chegando até a relacionar o que se assiste ao conflito entre a Rússia e a Ucrânia”
O ponto crítico é que os produtos petrolíferos importados apresentam custos diversificados e, de acordo com o critério estabelecido no Decreto, estes custos devem estar acomodados na estrutura de preços que é calculada no final de cada mês pela Autoridade Reguladora de Energia (ARENE), tendo em conta alguns factores que incluem o custo do frete ao qual se adicionam outras taxas, direitos, IVA, o factor cambial, etc.
Deste exercício resulta uma tabela bem definida, que traduz os resultados finais que são obtidos depois da ponderação dos dados dos dois últimos meses em termos de quantidades importadas. A estes, adiciona-se o custo de importação e faz-se uma média ponderada que resulta no preço final. “Acontece que esta média não satisfaz os operadores”, afirma Ricardo Cumbe. E porquê? A AMEPETROL considera que a média ponderada contradiz a Lei que estabelece a obrigatoriedade de os operadores manterem um stock de combustíveis capaz de cobrir 23 dias de abastecimento do mercado. Ao invés, acomoda uma média que representa 60 dias. “Aqui há um contraste que tem impacto na nossa velocidade de recuperação de um custo real que incorremos para a importação. Porque a estrutura trabalha na base da média e a legislação considera 23 dias”, protesta o secretário-geral da AMEPETROL. O cenário mais confortável, prossegue, está na opção dos 23 dias defendida na Lei. Porquê? “Com as limitações financeiras e a capacidade reduzida para fazer importações, só nos limitamos a trazer encomendas por vezes aquém de uma cobertura de 23 dias. O outro desafio é que, ao usar uma média ponderada, a ARENE acomoda o preço actual a um custo do mês anterior (neste caso, relativamente mais baixo). Então, o factor ‘média’ nunca nos vai trazer um alinhamento de ponto de vista de timeline, para a recuperação dos custos efectivos”, argumentou Ricardo Cumbe. Mas não é só isso. “Feito o cálculo pelo regulador, existem as premissas mínimas
e máximas.
Assim, se a variação de preços for de até 20%, o regulador tem a autonomia de chancelar se a nova estrutura de preços deve ou não ser cumprida pelos operadores. Mas, quando a variação for acima dos 20%, o regulador perde essa autonomia”. É esta última situação que ocorreu nos últimos meses, segundo a AMEPETROL. “Quando é assim, o assunto deve ser remetido ao Conselho de Ministros, o que não está a acontecer numa frequência mensal desde o ano passado, conforme estabelece o [decreto] 89/2019, de 18 de Novembro”.Perante esta discordância, os operadores acabam por recorrer a uma opção que designam por ‘estrutura de preços nominal’.
Mas, dentro desta opção, o Governo diferencia a estrutura nominal daquela que os operadores identificam como sendo a mais correcta. Dessa diferença resulta uma variação que vai determinar o elemento de compensação. É sobre este valor que incide o montante que o Governo deve às gasolineiras, actualmente avaliado em cerca de 140 milhões de dólares.
“Isso tem vindo a corroer os níveis de tesouraria das empresas desde o ano passado e, quanto mais tentamos continuar a operar, mais nos endividamos porque somos obrigados a recorrer a financiamentos bancários e atraímos taxas de juro altas. Todos estes elementos são a razão das grandes inquietações que temos estado a manifestar junto das autoridades do sector”, esclareceu.
Sinais de negligência
A acrescentar aos factores por detrás das subidas acentuadas do preço dos combustíveis, o representante de um dos operadores do mercado que prefere o anonimato recorda que, de acordo com a Lei, os preços devem ser ajustados e anunciados na terceira semana de cada mês. Mas tal não acontece sempre. Só quando os preços mudam. Quando não variam não há comunicação.
“E não é assim que deveria ser. Mesmo quando os preços se mantiverem inalterados, faria toda a diferença que as autoridades viessem a público explicar a razão dessa manutenção, para criar confiança na comunicação”, defende. Entende, por isso, que “o que está a contribuir para o alvoroço a que se assiste, decorrente da subida de preços, é a falta dos ajustamentos pontuais. É que o Governo, para salvaguardar a protecção social, manteve a expectativa de que os aumentos do preço no mercado internacional eram fenómenos passageiros e que em dois ou três meses normalizar-se-iam. Isso não aconteceu e os preços aumentaram consideravelmente”.
O preço sobe todos os meses desde Setembro do ano passado, excepto em Março deste ano. Mas só agora é que estão a ser repassados ao mercado. Actualmente, o barril de petróleo no mercado internacional tem oscilado entre os 110 e 120 dólares, contra os anteriores 80 dólares (aproximadamente).
Uma face ainda mais oculta: operadores desorganizados
Afinal, nem todos os operadores do mercado têm capacidade técnica e financeira para operarem. A denúncia é feita por uma fonte da E&M que representa uma das empresas petrolíferas de referência do mercado nacional. Com experiência de vários anos e presença em muitos outros mercados, a fonte confidenciou-nos que um país com a dimensão de Moçambique não precisaria de mais de nove importadores de combustíveis, mas neste momento há 30 importadores licenciados para fazer a importação e distribuição. Angola, por exemplo, com uma dimensão muito maior do que a de Moçambique, tem apenas quatro empresas que fazem a importação. “Isto quer dizer que as empresas que entraram no mercado nos últimos quatro a cinco anos vieram causar perturbação por não terem a dimensão, organização e capacidade financeira para estarem neste negócio acabando por prejudicar toda a cadeia”, denunciou.
Acrescenta, no entanto, que parte destas empresas não têm capacidade financeira porque durante muito tempo adoptaram práticas pouco sustentáveis — como descontos e preços muito reduzidos — para ganharem a quota de mercado, o que até é contra a Lei já que o preço de venda ao público é fixado pelo Governo e não é susceptível de ser alterado. É por isso que, com esta crise, segundo a fonte, das 30 empresas a operarem, cerca de cinco ou seis nunca importaram combustíveis e só sete ou oito estão, efectivamente, a fazer a importação. Também refere que, quando há muitas empresas em situação de insustentabilidade, a banca começa a ter restrições de emissão das garantias bancárias. E qualquer problema com parte dos players assume um carácter sistémico.
A diferença entre o preço cobrado e o que devia ser cobrado é que gera a dívida do Governo para com as importadoras, que se acumula todos os meses
Por exemplo, os navios chegam e só se aproximam ao porto para descarregar quando tiverem as garantias bancárias devidamente emitidas. Mas ocorre, muitas vezes, que, ao chegar, o navio se depara com apenas 30% ou 50% das garantias bancárias e fica ao largo durante alguns dias à espera que a empresa consiga completar o requisito. Isto acaba por encarecer o produto, porque cada dia que o navio leva ao largo custa 25 mil dólares. Isto é, os elos mais frágeis da cadeia podem prejudicar todo o processo de abastecimento. Mesmo assim, admite que a forma como funciona o mercado da importação dos combustíveis em Moçambique é “muito boa pelo facto de estar centralizada e permitir a facilidade de negociação de melhores preços com os fornecedores (são compras agregadas de maior dimensão e não cada um a fazê-lo individualmente), além de que permite um maior controlo da qualidade do produto e dos termos de entrega”.
Geralmente, os contratos de importação são celebrados entre os fornecedores e todos os 30 players do mercado, em nome do IMOPETRO, que é o agente de procurement. Os combustíveis são recebidos quase todos os dias nos portos de Maputo, Beira, Nacala e Pemba.
Preços continuarão a subir
Os operadores avisam que, se já em Maio, o legislador havia alertado para o facto de o preço dos combustíveis estar aquém do nível adequado, não se pode esperar facilidades nos meses que se aproximam, visto que as facturas que as gasolineiras estão a receber agora estão em níveis que superam os custos de Abril e Maio. Significa que estão presentes todas as variáveis que determinam o ajustamento dos preços para cima até ao fim deste ano, apesar de se verificar uma espécie de sorte ocasionada pela estabilidade cambial que dura há 16 meses.
Entretanto, há divergências de opinião quanto à eficácia de uma eventual intervenção do Estado no alívio dos encargos fiscais dentro da estrutura de preço dos combustíveis. Enquanto a AMEPETROL considera que “há muita gordura por retirar na parte dos impostos”, e que, “estando o País numa situação de crise, o Governo não tem como dar continuidade à gestão deste cenário sem mexer nas partes mais sensíveis, como o IVA e outros impostos e direitos”, outros operadores entendem que a carga fiscal de aproximadamente 5% aplicada sobre os combustíveis não deve ser vista como factor determinante na subida do preço dos mesmos, porque não é excessiva quando comparada à media internacional e à de países como Portugal, onde o peso dos impostos sobre os combustíveis chega à casa dos 60%.
Estão presentes todas as variáveis que determinam o ajustamento dos preços para cima até ao fim deste ano, apesar estabilidade cambial
No ambiente actual, o facto curioso é que o diesel passou a custar mais do que a gasolina, o que contraria a tendência tradicional. Isto resulta do facto de que, durante a pandemia do covid-19, houve uma redução da produção do diesel, mas, agora com a recuperação das economias, a utilização deste combustível volta a aumentar, mas não é acompanhada pelo aumento da produção, particularmente devido à guerra entre a Rússia e a Ucrânia. É que a Rússia deixou de exportar para outros mercados, o que fez crescer pressão da procura sobre outros fornecedores. Assim, com a oferta a baixar e a procura a aumentar, o preço do diesel passou a superar o da gasolina.
Recorde de inflação
A subida do custo dos combustíveis arrasta os preços de todos os outros bens e serviços na economia, a começar pelo custo dos transportes. Em Moçambique, este aumento já se faz sentir e poderá ficar ainda pior nos próximos meses, se se mantiver a previsão dos especialistas.
A consultora Oxford Economics, por exemplo, prevê que a inflação média, este ano, fique acima dos 9%, o valor mais alto desde 2017. Chega a antever uma agitação social devido ao impacto dos preços no sector dos transportes. “Prevemos que a média da inflação anual suba de 5,7% em 2021, para mais de 9%, este ano”, referiram os analistas da consultora, citados pela Agência Lusa.
Na análise, salientam que “as dificuldades na cadeia de abastecimento global foram agravadas pela série de ciclones tropicais que atingiram o Centro e o Norte do País no princípio do ano, bem como pela guerra em Cabo Delgado” e acrescentam que a subida dos preços afecta desproporcionadamente alguns sectores específicos, como os transportes. Previsões similares já foram divulgadas por outras instituições, incluindo o FMI.
Subsidiar? Sim. Mas não todos…
A primeira ideia defendida pelos operadores é a de que é preciso desmistificar a ideia de que o Governo pode fixar o preço dos combustíveis, porque não há tanta margem para o fazer, na medida em que o principal determinante é o custo do produto no mercado internacional e este está completamente fora do controlo.
Isto é, se o Estado não tiver recursos para subsidiar as gasolineiras, como fazia num passado recente, será preferível deixar que o custo dos combustíveis reflicta o preço real para não onerar o Orçamento do Estado e evitar beneficiar camadas da sociedade que têm capacidade de pagar (incluindo dos países vizinhos). Em lugar disso, deve procurar subsidiar os sectores de actividade económica mais necessitados.
A política de subsídios tem sido desencorajada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), que defende que, a ser aplicada, deve privilegiar as camadas mais pobres da sociedade para evitar riscos sociais e políticos decorrentes de aumentos globais nos preços de commodities.