Enquanto muitos desacreditam, Salim Valá, Presidente da Bolsa de Valores de Moçambique, não tem dúvidas do impacto no crescimento económico da transformação dos clubes em empresas. Assume ser difícil, mas garante que é possível e explica como…
“Salim Valá entende que por mais que um clube tenha boas infra-estruturas e bons jogadores não alcançará sucesso económico se a sua gestão não for criteriosa, racional e não permita a sua perenidade no tempo, ou seja, se não for possível depois melhorar a formação das camadas jovens, criar boas infra-estruturas para treinos, academias, bons campos, centros de estágios, etc., como acontece, por exemplo, na Associação Black Bulls.
Mas tudo isto deve ter lugar dentro da perspectiva de que os clubes sejam geridos como empresas, pondo fim àquela visão “arcaica e ultrapassada” e que periga os próprios resultados desportivos, em que os clubes, enquanto associações sem fins lucrativos, perseguem objectivos ligados à massificação da prática do desporto, ou culturais, ou de outro cariz.
A Bolsa de Valores de Moçambique (BVM), que está a desenvolver esta iniciativa em conjunto com a Secretaria de Estado do Desporto, foca-se em dois objectivos fundamentais. O primeiro consiste em que, ao apostarem em Sociedades Anónimas Desportivas (SAD), os clubes conseguirão obter financiamento.
Segundo, mas não menos importante, na assimilação das melhores práticas de gestão dos clubes, condição para que os seus recursos sejam bem aplicados e possam ter impacto na economia.
A BVM propõe a transformação de clubes desportivos em SAD, cuja experiência internacional já provou ser um modelo com bons resultados para a sustentabilidade dos clubes e para a economia. Olhando para o panorama nacional de clubes, grosso modo, desestruturados ao nível financeiro e da organização das contas, o que inspira a Bolsa a acreditar no sucesso desta solução?
O nosso ponto de partida foi a constatação de que o País está a desperdiçar uma oportunidade económica. Isto é, os clubes, o sistema financeiro e o País no seu todo estão a desperdiçar a janela de oportunidade que já existe, porque o Governo criou, há sete anos, através do Decreto Lei 1/2015, o Regime Jurídico das SAD, um instrumento já aprovado. A BVM já estava atenta a esta oportunidade e procurámos a liderança da nova Secretaria de Estado do Desporto, na pessoa do respectivo presidente, Gilberto Mendes, com o qual discutimos como poderíamos operacionalizar o Regime Jurídico das SAD que, apesar de existir desde 2015, não está a ser utilizado nem pelas federações, nem pelos clubes.
Em concreto, a transformação dos clubes em SAD é uma inovação em Moçambique, já que a visão tradicional dos clubes é a de servirem como associações sem fins lucrativos
Assim, iniciámos o diálogo sobre o assunto, analisámos o instrumento, auscultámos os agentes desportivos e consultámos o que está a acontecer noutras geografias, principalmente na Europa, onde a experiência está enraizada e com sucesso. A seguir decidimos cristalizar este interesse mútuo com um memorando de entendimento, que foi rubricado para assegurar que este instrumento jurídico possa ser implementado na prática pelos clubes moçambicanos.
Se o Regime Jurídico das SAD existe desde 2015, o que pesou para que só agora esteja a ser alvo de atenção?
Isso tem que ver com o processo de elaboração legislativa. Temos, no País, referências de que o facto de existir uma lei, norma ou regulamento não é suficiente para a sua implementação. É preciso que existam instituições e mecanismos práticos concretos para a sua operacionalização. Em concreto, a transformação dos clubes em SAD é uma inovação em Moçambique, já que a visão tradicional dos clubes é a de servirem como associações sem fins lucrativos. Esta inovação, mesmo na Europa, começou a emergir na década de 1990. O facto de ser uma abordagem nova, desconhecida na realidade moçambicana e pela própria BVM, é que justifica que não tenha havido avanços desde a aprovação do Regime Jurídico das SAD.
Mas, do nosso lado (BVM), começámos a reflectir sobre este assunto em 2017 e só encontrámos terreno fértil na visão do próprio Governo através da Secretaria de Estado do Desporto. Ou seja, durante este tempo, tivemos de estudar a realidade internacional, as especificidades de Moçambique e a situação concreta em que se encontram os cerca de 300 clubes espalhados pelo País.
Foi preciso muito trabalho de campo para se ter o panorama actual dos clubes e depois desenhar a proposta de transformação, supomos. Em que consistiu?
Nós, BVM, e a Secretaria de Estado do Desporto, realizámos, em conjunto, diversas acções que não se circunscreveram apenas à elaboração e assinatura do memorando de entendimento, mas incluíram a consciencialização, a formação e capacitação de quadros da Secretaria de Estado do Desporto em Maputo e noutros pontos do País.
As sessões de formação estenderam-se para as federações e clubes em Maputo, Beira e Nampula. Toda esta movimentação é determinada pela procura. Por exemplo, os clubes da província de Sofala convidaram-nos e tivemos de deslocar uma equipa para dialogar, consciencializar e capacitar pessoas sobre assuntos relativos aos requisitos e práticas de gestão financeira, contabilidade, etc., e que abrem espaço para beneficiar das vantagens da Bolsa.
Na prossecução destas acções também dialogámos com clubes da Cidade de Maputo, como o 1º de Maio, Estrela Vermelha, Black Bulls, entre outros, assim como com clubes de províncias como Inhambane. Neste momento estamos a ser procurados por clubes de Tete. E como é que se desenvolve este processo? As federações provinciais convidam a Bolsa para as sessões de esclarecimento envolvendo os interesses de vários clubes, mas sempre com janelas abertas para a interacção com um clube específico. Isto mostra que há interesse dos clubes em adquirir uma visão empresarial e trilhar por este caminho.
Do trabalho feito chegaram à conclusão de que, de facto, existe potencial para esta “aventura” que parece tão distante da realidade do País. O que existe, em concreto, que faz acreditar no sucesso desta ambição?
Podemos fazer o aproveitamento do grande potencial que muitos clubes têm de infra-estruturas que se estão a danificar, e a mobilização do empresariado para apoiar clubes nos vários pontos do País, aproveitando a vasta massa associativa de moçambicanos, que gostam do desporto, e que se podem transformar nos futuros accionistas de clubes.
Infelizmente, temos a tendência de descredibilizar ideias inovadoras ainda na fase de concepção. No início, tive conversas com pessoas ligadas ao desporto que defendiam que a transformação de clubes em SAD é um projecto de elite, um sonho longe da realidade de um país pobre como o nosso. Esquecem-se que, por exemplo, hoje, o sistema financeiro nacional tem produtos e soluções de base tecnológica que se usam nos países desenvolvidos. Com isto quero dizer que não devemos limitar a nossa ambição. Também não devemos olhar para as SAD como a panaceia que vai resolver todos os problemas de gestão dos clubes, mas, se bem usada, vai resolver alguns problemas dos clubes que apostarem nesta estratégia. É preciso ter a consciência de que há clubes que, pela sua situação financeira, não podem transitar de imediato para SAD, mas também há aqueles que estão preparados, bastando apenas uma tomada de decisão para avançarem.
Nos próximos dois ou três anos, Moçambique tem condições para ter duas, três ou mais SAD, pelos sinais que estamos a ver tendo em conta os requisitos e interesses dos clubes. É possível termos SAD que usam o mercado de capitais como mecanismo de financiamento, para dar visibilidade aos clubes e para absorver investidores estrangeiros.
Nesta estratégia, que possibilidades há para os clubes mais pequenos, que estão mais distantes de preencher os requisitos financeiros e organizacionais ajustados a uma visão empresarial? Vão merecer algum tipo de apoio da Bolsa e da Secretaria de Estado do Desporto para não perderem este barco, ou nem por isso?
Como disse, a nossa abordagem é ditada pela procura. Os clubes manifestam interesse e nós respondemos, e já visitámos vários clubes com capacidades diferentes em termos de infra-estruturas, capital, gestão, etc. Ouvimos as suas preocupações e informámo-nos sobre o que estão a fazer em todas as vertentes e depois mostrámos os requisitos necessários para poderem trabalhar connosco.
Os requisitos são os tradicionais, pelo que não há os que são específicos para a transformação em SAD. Isto é, além dos jurídico-legais, existem os económico-financeiros (contas organizadas e auditadas, capitais próprios de 4 milhões de meticais para pequenas e médias empresas e 16 milhões para grandes empresas) e os requisitos de mercado (dispersão accionista suficiente e livre transmissibilidade das acções).
A par da fraca qualidade de infra-estruturas, os agentes desportivos manifestam reservas quanto à capacidade de formação de talentos, tomados como o principal activo dos clubes. Isto parece constituir uma barreira importante para a transformação que se pretende…
Quando fizemos o diagnóstico constatámos que estes problemas não são apenas de Moçambique. Angola, Botsuana, Maláui, Cabo Verde, por exemplo, enfrentam os mesmos obstáculos. Em Moçambique, alguns clubes como os Ferroviários têm boas infra-estruturas desportivas implantadas pelo País já desde o tempo colonial. Hoje estão a degradar-se. E este é o nosso ponto fraco. Uma experiência boa sobre como revitalizar as infra-estruturas vem da cidade de Chimoio, onde o Conselho Municipal fez uma parceria com empresários privados com este propósito. Mas o importante é que depois sejam geridas dentro de uma perspectiva económica.
“Não devemos limitar a nossa ambição. Também não devemos olhar para as SAD como a panaceia que vai resolver todos os problemas de gestão dos clubes, mas, se bem usada, vai resolver alguns problemas…”
A formação é também um elemento vital para garantir a sustentabilidade dos clubes. Temos gente com potencial, jovens que gostam de desporto e têm talento nas diversas modalidades. O que se deve fazer, agora, é dar novo ímpeto a esta vontade de fazer as coisas através de um trabalho conjunto envolvendo o Governo, as escolas, as federações e as comunidades nos bairros. É importante não perder de vista esta ligação institucional que vai permitir identificar e lapidar talentos.
Existem, em África, histórias bem-sucedidas de uma experiência como esta que queremos perseguir? Quais?
Existem alguns casos, mas não podem ser considerados como experiências consolidadas. E é por isso que este trabalho é liderado pessoalmente pelo PCA da Bolsa. É uma oportunidade para Moçambique fazer a diferença no continente. Ponderamos tornar-nos num dos melhores países a utilizarem a Bolsa de Valores como instrumento catalisador e dinamizador do desenvolvimento desportivo.
Temos estado a explorar experiências bem-sucedidas de outras partes do mundo fora de África, como de Portugal, Inglaterra, Países Baixos, França, etc.
Até onde a economia, no seu todo, pode chegar se conseguir materializar a ideia de transformar clubes desportivos em empresas?
Estamos a fazer isto como oportunidade de negócio. A Bolsa vai ganhar, os clubes vão ganhar e toda a economia vai ganhar. Isto vai mexer na roda da economia, não só por haver clubes bem geridos, mas porque o consumo vai aumentar significativamente e a venda de jogadores é uma fonte de divisas que faz toda a diferença, sem falar no aumento do número de empresas, de emprego e do alargamento da base tributária. E porque a poupança interna do País é baixa, clubes que apresentem bons resultados têm o potencial de atrair investidores individuais ou institucionais de todo o mundo e isso é uma oportunidade para o crescimento económico. Transformando-se em empresa, o clube é, obrigatoriamente, submetido ao escrutínio público.
Periodicamente, terá de prestar contas não só aos sócios, como ao público através dos canais existentes na Bolsa, nomeadamente o boletim de cotações e o site. Assim, o clube passa a ser uma marca registada porque passa a realizar negócios dentro dos princípios de transparência e ética.
Além disso, possibilita qualquer cidadão a investir em mais do que um clube e ampliar a sua base de geração de retornos. Ou seja, é possível, neste modelo, ser sócio de um clube e, ao mesmo tempo, ser accionista de outros clubes.
Texto Celso Chambisso • Fotografia Mariano Silva e Jay Garrido