O multimilionário Bill Gates concedeu uma entrevista ao jornal Negócios, onde conta como é ter voltado a estar ‘solteiro’ depois de se separar da sua mulher, Melinda, e como se tem mantido ocupado, a esquivar-se aos anti-vacinas e usando a sua fortuna para combater a próxima pandemia.
O multimilionário, por volta da altura em que chegou aos 31 anos, o brilhante cromo-programador sempre pareceu acertar em tudo à primeira. A sua empresa, a Microsoft, liderou o boom tecnológico, mas ser o homem mais rico da época não era suficiente. Quadros valiosos, iates e aviões a jacto aborreciam-no. Ele queria, além de tudo o mais, salvar o mundo. Nas três décadas seguintes, doou mais de 50 mil milhões para erradicar a poliomielite, eliminar a malária e salvar milhões de vidas. Além disso, também desenvolveu uma reputação de profeta, tendo sido um dos primeiros a alertar o mundo para as alterações climáticas e para a pandemia global.
Mas era o seu casamento com Melinda que o distinguia de todos os outros gigantes de Silicon Valley, Bezos, Zuckerberg e Elon Musk. Bill e Melinda, agora com 66 e 57 anos, pareciam ser o casal perfeito.
Durante grande parte dos últimos dois anos, salienta Gates, tem andado focado em vencer a pandemia covid. A capacidade de Gates para adivinhar o futuro sempre foi estranha, portanto não ficou surpreendido quando uma doença misteriosa, em Wuhan, obrigou o mundo inteiro a confinar-se. Há três anos, o que é que o mantinha acordado à noite? “A ideia de uma pandemia”, respondeu imediatamente. Deu, até, uma conferência em formato TED Talk, em 2015, alertando para a hipótese de um super vírus. Todos nós descartámos essas as preocupações, na altura. Agora sente-se ‘justificado’: “Se a pandemia não tivesse acontecido, teria sido um TED Talk bastante obscuro. Agora foi visto 43 milhões de vezes. Toda a gente que trabalha com doenças infecciosas tem um receio enorme de vírus respiratórios transmissíveis ao homem. Quanto mais as pessoas viajam e mais acentuada é a interação entre as espécies selvagens e os seres humanos, maior é o risco do tipo de doenças zoonóticas interespécies”.
O seu TED Talk previu 30 milhões de mortes e 10 biliões de dólares de prejuízos económicos. “É quase estranho quão perto aquela demonstração, em concreto, que eu dei, ficou perto da situação real”, diz ele. O seu mais recente livro foca-se em como prevenir outro fiasco e deve ser de leitura obrigatória para todos os líderes. “Poucas gerações sobrevivem a eventos que provocam biliões de dólares de prejuízos e dezenas de milhões de mortes. Um sismo nunca fez isso, ou um incêndio e, no entanto, nós estávamos mais preparados para fenómenos desses. Gastamos milhares de milhões de dólares por ano em defesa, mas quase nada em pandemias.”
Nos últimos dois anos, Gates tem andado focado em vencer o covid
Gates passou horas a estudar estatísticas relativas à resposta de cada país ao vírus: “Sou um homem de dados.” Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul responderam bem no início. Mas ele ficou muito bem impressionado com o Vietname pelo seu sistema de saúde, notificações por mensagem e 98% de cobertura de vacinação. “É uma excepção anómala”, diz o multimilionário. Gates é fã dos confinamentos, mas diz que países como a Suécia são complicados, porque, apesar de terem regras permissivas, a população comportou-se responsavelmente, como se tivesse estado sujeita a confinamento, ao passo que os EUA foram mais rigorosos, mas tiveram piores taxas de cumprimento. “E Hong Kong é um exemplo raro onde foi feito um trabalho excelente com os confinamentos, mas que deu origem a um sentido de afrouxamento no que toca à vacinação daqueles para quem o risco era maior. Entraram na [vaga] Ómicron com uma taxa de vacinação de 35% das pessoas com mais de 65 anos, o que é gritante.” Enquanto isso, o Japão é um caso único, “devido à sua obsessão com o uso de máscaras. Tem a população mais velha [do mundo], mas tem sorte, porque as pessoas também são magras e muitos dos riscos de morte estão associados à obesidade e diabetes.”
Desde o início que Gates, que tem os melhores epidemiologistas e directores executivos de farmacêuticas do mundo nos ‘acessos rápidos’ do telemóvel, acreditou que uma vacina era a melhor forma de travar a epidemia e começou a preparar-se para a sua produção. “Eu pensei que a conseguiríamos obter mais depressa e nós fizemo-las mais barata. Dou a nós próprios nota B+ pelas nossas vacinas, que têm sido a nossa melhor arma. Até a [chinesa] Sinovac e a vacina russa funcionaram bastante bem”, diz ele. “Já o tratamento tem constituído a maior decepção.”
Gates parece tratar o vírus como um inimigo e a pandemia como uma guerra. “Vejo, de facto, isto como uma batalha e o vírus como nosso adversário. Estou constantemente a interrogar-me se ele foi mais esperto do que nós e como é que nos está a passar a perna. Isto devia ser mais fácil do que uma guerra, uma vez que estamos todos a partilhar conhecimento e a ajudar-nos uns aos outros”, diz ele, “mas tem sido mais fracturante do que eu pensei”.
No seu livro, ele sugere: “Observem os cuidadores e os voluntários”. Algumas pessoas foram avarentas e egocêntricas, outras altruístas. “Em termos de natureza humana, vimos que a pandemia trouxe ao de cima o melhor e o pior das pessoas. Haverá sempre algum grau de pânico e egoísmo, açambarcamento, aproveitamento, pessoas e países que pensaram que podiam obter as vacinas primeiro que os outros. Vacinámos muitos jovens em países desenvolvidos antes de idosos na América do Sul e em África. Agora o mundo tem uma oferta excedentária.”
Como tecnófilo que está convencido que a tecnologia pode resolver qualquer problema, deve ter sido difícil ver as pessoas comportarem-se, muitas vezes, tão irracional e contrariamente aos seus próprios interesses, em especial quando se tornou o alvo da ira dos ‘anti-vacinas’. Aquando de um seu discurso, no mês passado, os manifestantes saíram à rua em bandos. “Felizmente, perceberam mal o dia, por isso desencontrei-me deles. A ideia de que eu seria apontado como alguém que, de algum modo, desempenha um papel nefasto no que toca a esta pandemia foi algo que não previ. Sim, eu trabalho no mundo das vacinas e tenho imenso dinheiro. Mas alegar que eu controlo o corpo das pessoas é bizarro.”
E o que é que ele diz aos amigos que não querem ser vacinados? Se não te vacinares, não quero estar contigo? “Sim, a coisa está a ir de ‘não quero ver ninguém’ a ‘só quero estar com gente vacinada’.” Ele recusa-se a chamar aos não-vacinados egocêntricos, embora acha difícil compreender por que razão toda a gente não haverá de querer proteger-se a si própria.
“Eu trabalho no mundo das vacinas e tenho imenso dinheiro. Mas alegar que eu controlo o corpo das pessoas é bizarro”
Gates está também preocupado com o facto de outros programas de vacinas poderem sofrer com isto. “Se a bizarrice da perspectiva das vacinas da pandemia alastrar, por exemplo, à vacina contra o sarampo nos países em vias de desenvolvimento, onde o sarampo ainda mata 140 mil miúdos por ano, será trágico.”
A recusa de algumas pessoas em usar máscara também o deixa perplexo. “O nível a que as máscaras bloqueiam a transmissão e a infecção é realmente incrível. A coisa mais arriscada que eu fiz durante toda a pandemia foi quando fui à conferência CoP 26, em Glasgow, quando o índice de infecção estava bastante elevado. A adesão à máscara era bastante grande quando estávamos lá fora, na rua, mas assim que entrávamos para os cocktails, toda a gente se punha a beber sem máscaras. Era uma loucura. Pelo menos eu já tinha três doses de vacinação.”
Bill Gates nunca apanhou covid [pouco depois da publicação desta entrevista no The Times, Gates revelou ter sido infectado com a doença]. Em parte, deve sentir curiosidade pela ideia de finalmente conhecer o seu adversário. “Agora já só estou a fazer dois testes por semana e só se me sentir um pouco em baixo. As minhas duas irmãs e os maridos não apanharam, nem a Melinda ou algum dos meus três filhos. E há um deles, pelo menos, que nem sequer foi supercuidadoso.”
Será que Bill violou regras, organizou raves, partilhou malas de vinho ou bolos de aniversário com colegas? “Eu só tomei a vacina quando chegou a minha vez. Agora estou a aprender como dar as minhas próprias festas, mas não dei nenhuma nestes últimos dois anos. Penso que a maioria das pessoas se manteve dentro da sua própria bolha.” O escândalo britânico do Partygate deixa-o perplexo. “Não conheço os factos particularmente bem. O que sei é que se algo parece ser hipócrita adquire uma certa sonoridade para as pessoas que estão a fazer sacrifícios na altura. Por isso, eu aconselhá-los-ia a não fazerem mais festas durante a pandemia. Mas eu não sou o rezingão de serviço.”
No entanto, Gates sente-se, de facto, culpado por ter passado uma pandemia bem mais fácil do que a maioria do mundo. “Tive uma Internet perfeita, casas grandes, uma avião privado com risco zero de contaminação. Pude estar com os meus filhos. Outras pessoas sofreram bem mais, especialmente as pobres.”
No dia em que a América entro em confinamento pela primeira vez, há mais de dois anos, Bill lembra-se de ter deixado os escritórios da Fundação a pensar que todos os projectos que tinham estavam em risco, agora que o pessoal tinha ido para casa. “Estranhamente, foi o meu primeiro amor que me demonstrou estar errado. Muito simplesmente, os colaboradores pegaram todos nos seus computadores e continuámos a ser 90% tão produtivos quanto antes. Passámos dois mil milhões de dólares de cheques para apoios à pandemia. E não houve um único deles em que eu dissesse: ‘Se estivesses metido em casa, enfiado no teu pijama, terias feito bem melhor do que passar aquele cheque’.” Logo, a Microsoft deve ter-se saído muito bem. “A Microsoft representa, talvez, 10% ou 12% da minha fortuna. Mas as acções, em geral, portaram-se bem, portanto, sim, isso significou que pudemos doar um montante de dinheiro recorde. Com Warren Buffet [o investidor e parceiro de bridge de Gates], punha-me a conversar sobre como havíamos de conseguir pôr todos os filantropos, em especial os do sector das tecnológicas (porque a digitalização recebeu um boost gigantesco no seguimento do crescimento das compras online) a aumentar o seu nível de donativos.
Gates recusa-se a dizer quanto dinheiro ganhou durante a pandemia. “No meu caso, tem de se fazer os devidos ajustes pelo facto de eu, à data, ser casado e agora ser divorciado, mas continuo a viver abastado, ao passo que a maioria das pessoas teve dificuldades e as economias de muitos países foram-se abaixo.”
“Muito simplesmente, os colaboradores pegaram nos seus computadores e continuámos a ser 90% tão produtivos quanto antes.”
Bill Gates considera que tanto os jovens, como os idosos, pagaram um preço demasiado elevado durante a pandemia. No seu livro sugere que as escolas devem ser mantidas abertas em todos os locais em que tal seja possível, caso venha a eclodir outro surto. “Nas cidades interiores, nos EUA, verificam-se perdas de aprendizagem que vão até dois anos – isto é uma coisa simplesmente super dramática. Houve imensos lares de idosos que se transformaram em prisões.”
Uma boa liderança é o seu outro requisito crucial numa pandemia. Será que Gates considera que o mundo teve os líderes certos? Antes de responder, Gates faz uma pausa durante longos momentos. Ele que detesta ataques pessoais e política, mesmo apesar de ser notório que tinha pouca paciência para aturar os presidentes Trump, Putin ou Xi. “Bem, nós perdemos uma data de bons líderes. Além de que é difícil ser líder. O mundo tem dependido dos EUA em muitas áreas, incluindo na da saúde global. Por isso, ter uma pandemia em que a infra-estrutura global de saúde estava sujeita a grande pressão e os EUA, pelo meio, ainda abandonam a OMS [Organização Mundial de Saúde] e alegam que foi infiltrada pelos chineses, o que definitivamente não é verdade. Isso foi complicado porque quem é que preenche esse vazio? Os EUA não estavam muito presentes. Havia poucos bons líderes, poucas pessoas de valor a quem dar ouvidos e imensas mensagens caóticas.”
À medida que o mundo emerge desta pandemia, e com uma guerra grassando desenfreada na periferia da Europa, temos a sensação de estar a entrar numa nova era de fragilidade e incerteza. Será que Gates continua a ser um optimista ou sentirá que a Humanidade está a andar para trás? “Penso que é uma pena e, à luz dos critérios mais objectivos, é erróneo e triste que as pessoas agora se sintam tão preocupadas e nervosas quanto ao seu futuro. Até a pandemia deu origem a uns quantos grandes avanços na investigação científica e acelerou a chegada das vacinas para outras doenças.”
Mas as pessoas e a política parecem ter ficado mais polarizadas e as guerras culturais tornaram-se tóxicas. “Bem, a forma positiva de ver isto é dizer que estamos a dar-nos melhor no que toca aos direitos das mulheres e dos homossexuais, mas ainda agora ficamos desconfortáveis com os transgénero. Havemos de nos sair melhor também aí e acho que a forma como as pessoas ficaram tranquilas quanto às pessoas gay está dramaticamente melhor do que quando eu era novo. As pessoas transsexuais criam complexos relativos à forma como são tratadas, aos desportos e às prisões, mas eu não sou um perito na matéria, não tenho dados sobre isso. A minha filha mais nova põe-me a par da terminologia e dos comportamentos. É como na turma dela, os miúdos podem ser gay, transgénero, aquilo que quiserem ser.”
Questionado se há alguma coisa que o impeça de dormir, neste exacto momento, Gates respondeu: “Bem, espero que nunca tenhamos de lidar com bioterrorismo e com um vírus intencionalmente provocado. Mas estamos a fazer progressos noutras áreas, como na cura para o VIH. Cortámos a mortalidade infantil para metade, entre 1990 e 2020, e temos uma oportunidade de voltarmos a cortá-la para metade outra vez até 2040. Estamos a fazer enormes progressos no campo da compreensão do microbioma – para o mundo rico, isso significa resolver a sobrenutrição e, para o mundo em vias de desenvolvimento, a malnutrição, portanto, é bastante empolgante. Depois, juntem a tudo isto alguma prevenção do Alzheimer. Ou seja, apesar de toda a polarização e liderança imperfeita que temos, eu continuo a sentir muito fortemente que a condição humana está a melhorar.”
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