Cerca de 280 quilómetros depois, pedras alvas colocadas meticulosamente sobre uma duna pejada de verde anunciam o destino. A vila é pacata, animada pelos sussurros de mulheres e de homens que chegam do pequeno mercado de venda de produtos frescos, na margem da estrada onde sopram ventos salgados como se mostrassem o caminho para o mar a que chegaríamos.
Por estradas de terra, abertas em trilhos onde se impõem árvores selvagens e manadas de bois que ruminam a refeição anterior, uma lagoa espreita, como uma língua que sibila em direcção à areia fina e quente. No Lake View, a lagoa Nhambavale anuncia-se maior, quase um mar, mas, apesar da incitação dos ventos, tem a paciência de permanecer no mesmo lugar. Naquela paisagem de dunas coroadas por arbustos que o vento ergueu da areia esbranquiçada, o sol é cortante. Depois a perdemos no horizonte. Voltamos a encontrar neste espaço que fez da sua presença o nome: Lake View Resort. Nhambavale – é assim que a chamam e descobrimos aqui onde a lagoa se anuncia maior, quase um mar, que, apesar da incitação dos ventos, aprendeu a paciência de permanecer no mesmo lugar. Mas não se deixa ver toda. Há um elevado pedaço de terra, a insinuação de uma colina que se interpõe. Ao entardecer, o sol deixa o rasto sobre as águas, como se anunciasse os caminhos dos mundos em que o dia não cede à pressão da aproximação da noite.
Ao entardecer, a imagem que temos é do sol com os raios em implosão a assentar por detrás da colina, longe dos nossos olhos, como um bebé que se aninha ao colo. Mas deixa o rasto sobre as águas, como se anunciasse os caminhos dos mundos em que o dia não cede à pressão da aproximação da noite. Por esta altura, a lagoa veste o laranja do fogo-fátuo, o verde das árvores na margem embaladas pelos ventos que trazem sempre a lembrança do sagrado-sal. Outra vez o mar.
Já a lua, que se começou a apresentar discreta quando o sol era ainda presença física, enche-se até se tornar uma íris prateada sobre o pano negro da noite — há piratas que nos espreitam do céu. O mar a que chegaríamos no dia seguinte é violento, a lembrar a violência do mar que fez de Barcolino — de que conhecemos a triste história — um morto-vivo, no romance de Lucílio Manjate em que o mar é paisagem e personagem.
Ao entardecer, o sol deixa o rasto sobre as águas, como se anunciasse os caminhos dos mundos em que o dia não cede à pressão da aproximação da noite
Este mar, o de Chidenguele, cresce com a espuma das ondas para matar a sede da margem-deserto. Naquela paisagem de dunas coroadas por arbustos, que o vento ergueu da areia esbranquiçada, em que o sol é cortante, caranguejos alaranjados deixam-se ver por momentos, fugazes, antes de se entocarem pela ameaça das nossas pegadas vincadas na terra humedecida.
As tocas (presumo já ter ouvido), ao mesmo tempo que servem de um lugar para que os caranguejos se protejam, dizem muito do tamanho do macho que as escavou e que se encontra dentro, o que facilita a escolha das fêmeas sobre a toca de leito e o macho para o acasalamento. Inteiramo-nos então das estacas implantadas como suportes de um dossel para pequenos bancos e mesas feitos de troncos, carcomidos pelo tempo, mas que resistem em nome do que já foram um dia ou do que podem sempre voltar a ser: espaço de celebrações de amor com o mar a servir de trilha.
Este é o lado da praia para quem sonha com a intimidade do mar, sonha em aprender o segredo das marés que fizeram nascer a terra e toda a vida que se seguiu. Os búzios que chegam anelados pelas ondas sussurram aos nossos ouvidos essas histórias.
Mas como se houvesse uma invisível cortina de ferro, como se as águas fossem outras, existe um outro lado desta praia para quem quer o reencontro com a humanidade. Se pensávamos que os longos períodos de confinamento podiam fazer também a humanidade perder o hábito das manhãs, que os homens e mulheres voltariam como se caminhassem em Marte, ao primeiro sinal de liberdade as imagens que nos chegam daqui desmentem.
Há um grupo animado de adolescentes que joga à bola, um casal que se diverte com o esbatimento das ondas nas conchas, crianças que constroem os castelos que ruirão na primeira grande onda, amigos que fazem das mãos bases que servem de mola impulsionadora para piruetas que os devolvem ao mar. Percebemos, então, por que os pássaros, ainda que criados em cativeiro, não desaprendem a ambição de chegar às nuvens.