Chego à cidade da beira quando já se viviam os dias cinzentos impostos pela pandemia, com as máscaras nos rostos que impediam que se visse o verdadeiro rosto da cidade. Se o olhar nos transmite o espírito, a boca e o sorriso são o cartão de visita do rosto.
Na marginal, sopra uma brisa impregnada de sal, adolescentes jogam futebol na margem possível como que a ignorarem a revolta de um mar que parece querer engolir tudo. O bar em que me sento, mesmo à beira mar e que parece que se vai esvair a qualquer momento, é dos poucos lugares em que ainda se podem ver os rostos sem máscaras, em que qualquer conversa se torna num momento de liberdade.
Com a pandemia a impor dias menores, Beira pedia passos mais rápidos, mais largos, uma corrida em contra-relógio, como se tivéssemos medo de que a qualquer momento o nosso roteiro fosse desfeito, que tudo de repente se esfarelasse na mão dura do tempo.
A cidade parece estar em metamorfose constante, num pêndulo que nunca tem pouso fixo. A luz sépia do passado é ainda presente e não dá para deixar nada para o futuro de que não temos garantias que chegará. Na dúvida, é melhor abarcar tudo o que o olhar permitir, na mesma ambição de Pahom, de Liev Tolstoi, na esperança de que tenhamos um final mais feliz.
E tudo em nome da memória futura, que será tudo o que teremos quando a memória física deixar de existir. O antigo Palácio dos Casamentos começa a ceder ao peso das águas. Mas o mural do artista plástico Chicani, a conservar o azul céu, como se fizesse as vezes do mar que estava com as cores das monções, permanece intacto. Mas nunca sabemos até quando.
Então ficamos ali a pensar em quantas fotografias foram tiradas depois de juras de amor eterno e desejamos que o amor seja mais eterno do que as paredes do edifício que ouviram as juras.
Bem perto, há o Grande Hotel, um monstro vítima da sua grandeza, a guardar a imponência que lembra outros tempos… tempos muitos distantes e que não voltam mais. O futuro chegou demasiado cedo e demasiado cedo virou passado. Agora, há ali outras vidas e outras histórias para serem contadas. Mas não deixa de ser um bom espécime do Movimento Moderno dos meados do século passado, em que também se insere a Casa dos Bicos mais para o centro da cidade. Era a Arquitectura a desafiar os padrões demasiadamente comedidos.
Mas nem tudo é luz sépia. Há um verde vibrante no Parque de infra-estruturas Verdes e talvez seja por aqui que uma Beira do futuro renasça. E para ajudar na drenagem das águas das chuvas e ajudar a proteger a costa, ao mesmo tempo que se reactiva o mangal. Mas mais do que isso, tem uma espécie de exposição permanente com esculturas e murais de artistas consagrados, como Idasse Tembe, aos que são o futuro como AfroIvan. Tem também casas de restauração. E Ambiente, e Turismo, e Arte, e Cultura, e Comércio. Tudo no mesmo espaço a provar que podem ter soluções integradas. Talvez para lá voltaremos, para uma viagem mais demorada, sem a pressão do medo de que talvez a mão dura do tempo esfarele tudo.
Revista Índico e E&M