Uma análise aos quase 20 anos de presença da mineradora brasileira Vale em Moçambique, num balanço que envolveu pesquisadores moçambicanos e internacionais, com destaque para os brasileiros, ficou nítida a ideia de que o carvão não tem grande espaço na matriz dos recursos que há no País. Ou seja, morre aqui a expectativa (tão recente) que se tinha de que aquele minério ajudaria Moçambique a dar o passo inicial para a ascensão ao grupo dos países de rendimento médio, conforme os prognósticos de várias entidades internacionais entendidas em matéria de desenvolvimento.
A propósito, o consultor e pesquisador moçambicano Thomas Selemane recorda que, em 2011, publicou, em co-autoria com o economista João Mosca, uma obra intitulada “Eldorado Tete”, que era uma pesquisa ampla sobre os aspectos socioeconómicos daquela província desde o início
da extracção de carvão.
Naquela altura, com sete anos de presença da Vale no País (está cá desde 2004), havia muitos trabalhadores expatriados e nacionais que não eram de Tete, mas que lá foram em busca de trabalho. A empresa empregava um total de 10 mil pessoas, o que dava a imagem de um lugar de oportunidades.
Além disso, a quantidade de empresas contratadas pela Vale era muito superior ao que já se tinha visto em qualquer projecto ou província do País, reforçando o título de “El Dorado”, que Tete veio a ostentar, ainda que várias outras pesquisas tenham alertado para o facto de essa percepção não passar de mera ilusão.
É simples entender porque é que entre as várias empresas presentes nas minas de Tete, entre as quais a indiana Jindal, a Vale, sozinha, é determinante para previsões pessimistas, não apenas sobre a exploração do carvão, como para a economia de Moçambique. É que, em termos de exportações, 32% são relativas à indústria extractiva, cuja maioria é composta pelo carvão, em que a Vale é responsável pela maior parte da sua produção.
A Vale argumenta a sua saída evocando planos de ordem ambiental. Sem querer discutir o mérito dos seus planos – até porque o mundo desdobra-se em adoptar práticas amigas do ambiente, para o qual o carvão é um inimigo de peso – o painel que fez o balanço da presença da Vale na conferência recentemente organizada pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) levanta uma série de preocupações que questionam a actuação da multinacional, acabando por reduzir ao mínimo, senão mesmo anular ou classificar como negativo, o impacto da sua presença nestes quase 20 anos. O que realmente falhou?
Benefícios fiscais, a maior frustração
Afinal, 2021 era precisamente o ano em que a Vale deixaria de beneficiar das isenções fiscais acordadas com o Governo no início das suas operações! Uma análise apresentada pela economista Inocência Mapisse, especialista em assuntos relacionados com a indústria extractiva, lembra que ao iniciar as suas actividades em meados de 2011, a Vale beneficiou de um contrato que prevê mais de dez benefícios fiscais.
Mas, três anos depois, a multinacional solicitou ao Governo moçambicano a revisão em baixa da carga tributária alegando que os custos eram muito elevados face ao preço do carvão no mercado internacional naquela altura, o que não permitia à empresa operar em condições aceitáveisde produtividade.
“Tendo sido aceite esta solicitação, e prevendo que iria conceder mais benefícios fiscais por dois ou três anos, o Governo deveria ter feito uma análise dos custos e benefícios que lhe fossem favoráveis, o que não chegou a acontecer”, lamenta a especialista.
Agora que a Vale vai embora, uma análise ao conjunto dos benefícios fiscais, segundo a pesquisadora, mostra que o País esteve longe de explorar de forma aceitável o potencial da exploração de carvão. Para isso, recorre ao contrato e enumera uma série de itens que prejudicaram o País.
A extensa lista das isenções inclui o Imposto de Consumo Específico na importação de máquinas, equipamentos, viaturas de trabalho, etc., “lembrando que os projectos extractivos, sendo intensivos em capital, seriam exactamente onde o Governo deveria retirar benefícios”, lamentou Inocência Mapisse, que revela que o mais grave pode ter sido a redução em 25% do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (IRPC) por cinco anos, a contarem a partir do primeiro exercício em que a empresa tivesse lucro tributável.
“Ora, o IRPC é uma das categorias com maior peso na estrutura tributária. É onde o Governo deveria ter retirado os seus dividendos da concessão da licença para a exploração do carvão. Mas sucede que foi nesta mesma categoria onde reduziu 25% por cinco anos”, criticou, citando muitos outros exemplos desfavoráveis a Moçambique. A especialista também olha com estranheza o facto de a Vale ter reportado prejuízos de 2012 a 2020, excepto em 2017, o que na sua óptica denuncia fragilidades de fiscalização por parte das autoridades moçambicanas.
Em última análise, o fim dos benefícios fiscais concedidos à Vale por dez anos estava previsto para este ano (2021), em que, por “coincidência”, a mineradora decide desistir do projecto. “Na lógica de qualquer entidade, quando se decide conceder benefícios fiscais por um período, significa que no período seguinte tem de se conseguir benefício adicional. Mas, neste caso, não aconteceu e com o agravante de ter sido um processo bastante nebuloso”, constatou a economista.
Uma presença envolta em problemas?
Thomas Selemane entende que o que aconteceu em Moatize e que acontece, regra geral, nos grandes investimentos de extracção de minérios é, em primeiro lugar, um processo de expropriação de terras e isso foi o que ocorreu no caso de Moatize à volta dos reassentamentos. Com base em pesquisas feitas por outros autores internacionais, o economista também faz menção à fome que os reassentados passavam e que fez lembrar a famosa frase “O que é uma casa sem comida?”, para dar a entender que os benefícios reais da presença da Vale não foram efectivos.
“Agora a Vale vai sair, mas os problemas que a extracção de carvão levantou em Moçambique continuam presentes na política pública económica e na sociedade moçambicana porque o cerne da questão ainda não foi devidamente debatido”, argumentou. Também deixa uma crítica ao que considera ser o sacrifício dos meios de produção local para dar lugar a uma exploração industrial que não se sebe se trará ou não benefícios para o País.
“Do lado do Governo e do capital extractivo, há uma assumpção de que é inevitável extrair o carvão, o que também torna inevitável reassentar pessoas para dar primazia à mineração em detrimento de qualquer outra actividade económica como alternativa de desenvolvimento. O problema é que entre o Governo e as multinacionais não há uma negociação sobre o processo de implantação dos projectos, mas sim uma consulta para discutir como se pode fazer uma melhor consulta comunitária, o que acaba por ser muito bom para os projectos, mas totalmente contraproducente para a construção de um caminho de desenvolvimento da sociedade e do País”, concluiu.
Estado moçambicano foi incapaz de se impor
A partir do Brasil interveio Isabella Lamas, professora de Relações Internacionais da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira da Bahia, UNILAB, e que estudou a perspectiva de actuação internacional da Vale, sendo que parte da sua tese de doutoramento debruça-se sobre a relação conflituosa e socioambiental da mineradora no domínio da governança e em três contextos distintos, entre os quais o moçambicano.
Para a especialista, há uma ausência muito importante na regulação corporativa nos âmbitos internacional e local, em que as corporações muitas vezes operam de acordo com as leis dos Estados hospedeiros das suas actividades e em contextos de uma ausência da definição clara das suas responsabilidades.
O resultado disso é que as corporações assumem papéis que, tradicionalmente, competem aos governos como o investimento no bem comum, a gestão de conflitos, a oferta de serviços públicos e o planeamento de infra-estruturas nas áreas abrangidas pelos projectos. Desta forma, a partir do momento em que a Vale ganhou a concessão de exploração, passou a ser agente central de administração dos territórios, papel que devia ser do Governo.
“Isto se acentuou-se particularmente no caso dos reassentamentos em Tete, que levaram a Vale a construir muitos serviços sociais básicos como escolas, centros de saúde, etc.”, defendeu Isabella Lamas, para quem este fenómeno gerou uma dependência contínua da Vale enquanto provedora
de serviços públicos, o que terá aberto espaço para fragilidades na prestação de contas.
E por falar na prestação de contas, segundo Isabella Lamas, os aspectos ambientais expõem lacunas consideráveis. “Com a saída da Vale, como é que se vai fazer a gestão ambiental dos espaços que a Vale ocupou ao longo do tempo?
Para mim, daqui em diante temos uma discussão muito séria sobre a responsabilização e quanto ao legado que fica”, sugeriu, tomando como exemplo o caso do Canadá, onde é muito comum o debate sobre as minas desactivadas com impactos ambientais negativos e que precisam de ser geridos por vários anos.
Desastres ambientais, a herança
Isabella Lamas diz ter estado em Tete em 2016, seis anos depois do início das operações da Vale, e testemunhou, nas ruas, “a frustração das pessoas em relação à promessa de um El Dorado que nunca começou”. “O discurso do Governo, dos doadores e de instituições financeiras internacionais era parecido com o do Banco Mundial: dizia-se que a exploração dos recursos naturais levaria ao bem-estar da população, mas esse discurso nunca se concretizou.
Ao contrário disso, o que se viu foi uma série de conflitos socioambientais que se seguiram e se desenvolveram ao longo dos anos devido à forma de actuação da Vale”, criticou a especialista, referindo-se ao que chama de “violações dos direitos humanos e aspectos ambientais bastante problemáticos”, o que contribuiu para acentuar o paradoxo da existência de um crescimento económico em paralelo com o aumento da pobreza
e das desigualdades sociais.
Por seu turno, Ana Garcia, também pesquisadora brasileira da actuação das empresas brasileiras, incluindo do ramo extractivo, e professora de Relações Internacionais da Universidade Católica do Rio de Janeiro, revela que há comunidades que vivem nas proximidades das minas, que não foram reassentadas e que sofrem com a poluição do ar causada pelas operações da empresa, causando doenças respiratórias graves. Além disso, há o problema das cercas colocadas para impedir a entrada de pessoas que moram nessas localidades e que acaba por lhes comprometer a livre circulação, problemas relacionados com o encerramento de várias estações de ferrovias em Nacala dificultando o transporte de passageiro, e o problema da falta de cobertura nos vagões que transportam carvão, libertando poeiras nas regiões por onde passa.
A Vale sai, o que fica?
Há evidências de que Moçambique não pode mais “sonhar alto” com o carvão. Por exemplo, desde 2014, o consumo de carvão na China, o maior consumidor e importador do mundo, vem caindo numa tentativa de responder aos compromissos internacionais para reduzir a poluição.
O Reino Unido, que depende do carvão para a produção de energia eléctrica, pondera fechar as suas últimas três centrais a carvão em 2024. Outro grande entrave para que o País se imponha é a concorrência de outras grandes potências produtoras do minério, com destaque para a Austrália, cuja localização geográfica rivaliza com a de Moçambique em relação aos mercados asiáticos.
Internamente, Inocência Mapisse faz alusão a outro factor: o acordo da Vale com a Mitsui, em Abril deste ano, para a compra da totalidade dos activos da empresa japonesa (15%) é um movimento que não se pode perceber facilmente e que acrescenta dúvidas à continuidade da exploração
de carvão no País. Embora se faça uma projecção positiva do financiamento e da exploração do carvão, mesmo após esta transacção (com uma economia anual do projecto em torno dos 25 milhões de dólares), a economista entende que “não se percebe a lógica de a Vele, que detém mais de 80% do projecto, precisar de comprar a participação da empresa japonesa Mitsui para se desfazer do negócio, no lugar de vender a sua própria participação e sair”.
Texto Celso Chambisso