Com muito conhecimento da história da construção de Moçambique, Lourenço do Rosário considera que Samora Machel já tinha, por diversas vezes, se referido à formula para a construção da independência económica.
Mas não resultou Daí que sugere uma reforma do sistema, ao mesmo tempo que exprime alguma indignação com aspectos relativos à corrupção, má distribuição de riqueza e má governação de um modo geral.
É preciso lembrar que Lourenço do Rosário é fundador e primeiro Reitor da primeira instituição privada do País de ensino superior – a Universidade Politécnica. Doutor em Literaturas Africanas pela Universidade de Coimbra, Reitor da Universidade Politécnica, Presidente do Mecanismo Africano de Revisão de Pares – MARP, e Presidente da Comissão Nacional do Instituto Internacional da Língua Portuguesa.
É também professor convidado de diversas universidades da Europa, África e Américas. Muitas vezes ouvimos vozes defenderem que 46 anos de independência política deveriam corresponder a um avanço maior do que o que se verifica na independência económica.
Por exemplo, um Orçamento do Estado com menor necessidade de injecção externa de recursos…
Devo começar exactamente pelo conceito de independência. Temos de ir atrás no tempo e verificar que este conceito remonta aos anos 1940/50 acompanhando outros conceitos de afirmação, nomeadamente o pan-africanismo e negritude, face à realidade colonial que vivíamos nessa altura.
Se revisitarmos alguns dos pronunciamentos de Samora Machel retirararemos bons elementos para reflexão. Um dos mais importantes foi que “nós não lutamos para substituir a bandeira dos portugueses…”
Nunca se debateu grandemente a abrangência do conceito de independência porque foi capturado pelos movimentos nacionalistas que tinham uma vertente que era a libertação política. Se visitarmos o programa da FRELIMO na época, o seu propósito era libertar os homens e a terra, o que implicava independência política e todos os factores para dispor dos recursos naturais.
Agora, estando no séc. XXI, não podemos continuar a usar um conceito que foi importante politicamente. Hoje, falar de independência económica acaba por resultar numa série de significados que não se encaixam porque vivemos na globalização onde somos o elo mais fraco e temos problemas sérios de má governação no continente (conflitos, pobreza endémica, corrupção, infra-estruturas decadentes, etc.). É muito difícil falar em independência económica num contexto destes.
Então, onde está a génese da dependência?
A correlação de forças entre a governação política e as holdings nacionais, que acabam por mandar nos destinos do planeta, trazem a grande contradição entre o poder eleito e o poder das corporações. Quem manda? O poder das corporações acaba por influenciar e impor-se aos poderes eleitos porque são eles que determinam o andamento do planeta.
Se equacionarmos novamente o programa da FRELIMO de libertar a terra, a riqueza e os homens, estes objectivos foram alcançados? Os homens estão libertos? Se sim, então eles têm acesso à riqueza. Será que a terra está liberta? Mesmo hoje, assistimos grandes corporações como a Total, entre outras, a imporem as suas regras.
Então, o que foi liberto na luta de libertação nacional? Por que temos dúvidas de que a terra e os homens foram libertos? E se não foram libertos, o que está a fazer o poder político? Voltamos à situação de dominados? Estas questões são as que devem ser respondidas pelos economistas. Mas, pelo que sei, as ciências económicas não são mais do que a gestão das dificuldades de acesso à riqueza.
E por que não estamos libertos?
É como as mães que estão sempre a queixar-se da falta de dinheiro, mas todos os dias conseguem pôr a comida na mesa, vestir os filhos e os mandarem para a escola etc. Como é que elas fazem? É porque essas mães conseguem, com o pouco que têm, governar bem as suas casas.
Estas mães são o melhor exemplo de boa governação que pode servir às ciências económicas para desenvolverem as suas teorias.
Quando se tem riquezas e possibilidade de as explorar mas os filhos passam fome, então há má governação. Tem-se dito, sempre, que Moçambique é potencialmente rico. Mas os homens que vivem em Moçambique são pobres.
É verdade que há alguns ricos, mas não são representativos e podem resultar da má distribuição desta riqueza. É o mesmo que alguém que tem, na sua casa, vários filhos, mas uma pequena parte vive na fartura e outra não recebe nada. Portanto, eu discuto o conceito de independência económica, mas não tenho tese sobre o assunto.
Sempre foi assim desde a independência política? Ou há uma sucessão de erros que nos vão acompanhando ao longo do tempo no contexto da “libertação da riqueza” a que já se referiu?
Se revisitarmos alguns dos pronunciamentos de Samora Machel podemos retirar bons elementos para reflexão. Um dos mais importantes foi que “nós não lutamos para substituir a bandeira dos portugueses nem pôr um Presidente preto”.
Isto significa que ele tinha uma teoria clara das ciências políticas que diz que, normalmente, quando um escravo (dominado) luta contra o seu senhor e o vence tem a tendência de ir buscar os vícios do seu antigo opressor e comportar-se como tal. Samora Machel repetia que “alguns de nós hão-de querer comportar-se como
o velho colono”.
Na História, esta teoria verifica-se…. E Samora ia fundo ao afirmar que “se amanhã vocês se aperceberem que estou a construir um prédio, perguntem-me onde é que fui buscar o dinheiro, porque somos todos pobres”. Então, revisitar estas palavras de Samora é muito importante para tentar perceber onde é que nós nos
perdemos.
Está a falar do velho problema da corrupção…
Sim. Samora também dizia: “Se amanhã o inimigo entrar na nossa casa (não importa quem seja), alguém
de nós abriu-lhe a porta”. Agora ouvimos e vemos grandes projectos dos nossos parceiros, ONG e empresas lucrativas a meterem muito dinheiro, mas, depois, o que é que fica no País?
Por exemplo, se os EUA doam dinheiro para o combate ao covid-19, que parte vai beneficiar os moçambicanos e qual é que vai beneficiar os que nos deram esse dinheiro, e que fica na nossa dívida? Por exemplo, li há pouco tempo que um dos grandes problemas da ajuda aos deslocados da violência em Cabo Delgado é que grande parte das verbas que são disponibilizadas para ajudar os deslocados estão a pagar os agentes da cooperação para se deslocarem em carros de luxo e se hospedarem em hotéis em Pemba.
E aqueles refugiados são o pretexto para se movimentar muito dinheiro que não os beneficia. Alguém lhes abriu a porta. Mesmo falando das dívidas ocultas (2,2 mil milhões de dólares), com que parte do dinheiro os nacionais que estão presos ficaram?
Muito pouco. Grande parte do dinheiro ficou com eles. Nós ficámos com a fama de corruptos e “fecharam-nos as torneiras”, como forma de chantagem.
Assim, mais uma vez, não temos condições para falar em independência económica. E nem política, porque não temos voz activa. Sem podermos gerir o nosso próprio orçamento, não conseguimos nem podemos decidir sobre a governação do nosso país.
O que deveríamos ter feito naquela época? Fica a impressão que não tínhamos condições de pôr a economia a funcionar sem o suporte externo. Onde vamos buscar os exemplos?
Em África, ao longo da História, temos algumas tentativas de escapar a esta lógica que criou a imagem de que o continente é governado por políticos rentistas, ou seja, que arrendam a terra para tirar alguns proveitos.
O rentismo contrapõe-se à ideologia de alguns países sobretudo os asiáticos como Vietname, Singapura e mesmo a Coreia do Sul, China, etc., que encontraram outras vias de desenvolvimento que, mesmo havendo corrupção, permitiu que houvesse uma distribuição mais visível da riqueza que não dá a sensação de uma pobreza que progride de geração em geração como acontece cá.
Há também países em África que é preciso estudar muito bem. Por exemplo, verificar o que é preferível entre a lógica da democracia que nos é imposta ou vendida pelo Ocidente e outro tipo de governação política. Maquiavel dizia que a pior coisa que existe na democracia é que esta tem dentro de si mesma os genes de auto-destruição.
Um exemplo é a corrupção da qual todos nós falamos, mas olhamos sempre para os dirigentes, esquecendo a praticada pelos que estão cá mais abaixo. Ou seja, estamos na democracia e nela implantamos um veneno
que toda a sociedade tem. Maquiavel considera que, quando isto acontece, é preciso que surja alguém que tente destruir este caos que se instalou e tente construir um novo cosmos. E esta entidade, se quiser fazer política, deve esquecer-se da ética.
O que é que isso quer dizer? E como se aplica no caso de Moçambique?
Por exemplo, o Ruanda, do presidente Paul Kagame, é uma ditadura. Kagame pegou num país que estava num completo caos e transformou-o num dos mais prósperos do continente. Será esta a via para mudar a realidade de Moçambique? É apenas uma pergunta que faço. Não estou a exprimir vontade de viver no Ruanda.
Mas Paul Kagame faz uma distribuição da riqueza que faz daquele país um bom exemplo de governação em África. As instituições funcionam bem, mas ele persegue os adversários políticos, etc., é um aspecto no qual temos de reflectir.
O Gana, Etiópia, Botsuana são outros bons exemplos de países no que diz respeito à distribuição da riqueza e com instituições fortes. Em Moçambique, o que devia ter sido feito é pararmos e ver se o sistema que implantámos em 1990 tem estado a servir ou não. Mas, no lugar disso, entretemo-nos a gerir conflitos e a ter instituições pesadíssimas, nomeadamente um Parlamento ineficaz.
Não há moçambicano que tenha um respeito orgânico para com o Parlamento, porque este não serve para nada. Então, é preciso reformar o sistema, porque já verificámos que não serve.
Mas existe, por parte de quem tem de tomar decisões, a percepção de que o sistema carece de reforma? Quer parecer que a sociedade vive conformada…
Não. Não está conformada. É que há outros vícios aqui. Por exemplo, toda a gente está atenta em perceber se o Nyusi fica na presidência ou sai, embora segundo a Constituição da República ele deva sair. Estamos a perder tempo e energia a discutir uma pessoa. Isto é um erro crasso.
A mim não importa se ele fica ou não. O meu problema é: se ele ficar é para fazer igual ao que já fez ou tem propostas para se mudar o sistema? Se quiser ficar que fique, mas que traga propostas de mudança do sistema.
Tomando por base a percepção que tem sobre a vontade ou não de reformar o sistema, que futuro projecta para o País no que diz respeito à perseguição da autonomia económica?
Por natureza, eu sou optimista. Tenho sempre esperança, sobretudo nos jovens. Vejo gerações como a do Chissano e outros líderes africanos alguns ainda no poder, outros reformados e alguns até falecidos, que quiseram reformar a filosofia de governação no continente. A criação do NEPAD, do MARP, etc., teve que ver com isto.
Os países africanos criaram blocos regionais que se vigiam mutuamente e em casos de golpe de Estado até há sanções. O mesmo acontece no caso dos ataques de Cabo Delgado. Isto é, há intenções para mudar as coisas, mas essas mudanças, muitas vezes, precisam de revoluções para encurtar a distância entre o discurso e a acção.
No processo, o grande perigo é de os revisionistas ignorarem os discursos reformistas e engatarem a “marcha-atrás”. Por isso é preciso que, quando se introduzirem as reformas, haja activistas que sejam capazes de garantir que as mesmas sejam implementadas. Portanto, só a juventude pode trazer mudanças.
Sente que esta juventude está no caminho certo para alimentar optimismo na conquista da independência económica?
O problema é que a juventude actual está a ser vítima do ritmo do tempo, o que é natural, já que tem energia e quer testar essa energia com o que é oferecido para o consumo (informação, cultura, tecnologia, etc.). Estou a dar um seminário num curso de doutoramento e fico frustrado que, a este nível, haja jovens que não leram livros completos.
Consomem alguns jornais e são vítimas de fofocas políticas, quando a sociedade é feita de muito mais do que a política. É muito difícil quando jovens pensam que só podem singrar quando entram nas estruturas à espera da vez deles. Outros jovens vivem de copos, viagens e curtição. Não têm nenhum programa.