Vão decorridos alguns lustres, desde que, no dealbar deste Milénio, Elísio Macamo, Professor de Sociologia e Estudos Africanos na Universidade de Basileia, chamava a atenção para a vulnerabilidade, em termos de Segurança, no norte de Moçambique, mormente na Província de Cabo Delgado – onde se vinha notando uma radicalização de jovens islâmicos, sonhando com o Califado –, fazendo, ele, sempre avultar que se, por um lado, tal problema era agravado pela distância de mais de 2600 km, entre a Capital daquela Província (Pemba) e a do País (Maputo), por outro lado insistia em que tal facto não tinha que ser uma fatalidade, dada a disponibilidade para ajudar Moçambique, oferecida por vários países estrangeiros.
A socióloga Isabel Maria Casimiro, da Universidade Eduardo Mondlane, veio, depois, fazer eco da dita advertência premonitória do Professor Macamo, insistindo no perigo da sobredita radicalização. A situação manteve-se mais ou menos adormecida, até que, a partir de 2017, Jihadistas, ligados ao grupo Al-Shabat, atacaram o Quartel de Mocímboa da Praia e nele hastearam a sua bandeira, não sem antes terem feito carnificina, entre militares e civis.
Nessa altura, o Bispo de Pemba, D. Luís Lisboa, vociferou estar a viver-se ali um preocupante silêncio, tendo tentado sensibilizar as Autoridades Moçambicanas e a Comunidade Internacional para o perigo que a população ali corria, perante tão destemidos e sangrentos ataques.
Até que, em 24 de Março último, se dá o grande ataque a Palma, com elevada mortandade e destruição, a escassos 10 km de Afungi e do Recinto para Exploração do Gás Liquefeito do Norte de Moçambique, um megaprojecto – o maior Investimento Privado da África Subsaariana (superior a 20 mil milhões de dólares norte-americanos) -, que ali vinha envolvendo cerca de 3000 homens, levado a efeito pela petrolífera Total e cuja produção, como ansiosa alavanca para o desenvolvimento de Moçambique, estava previsto começar em 2024.
Perante tão crescente insegurança e proximidade de real perigo a rondar as suas instalações, foi a vez de, volvida uma semana sobre tão devastador ataque, a Total anunciar a suspensão dos trabalhos (o andamento do Projecto do Gás em Afungi), invocando, como causa, a situação de força maior (“Force Majeure”). Repisa-se o facto de a porta- voz da Total (Anastasia Zhivulina) ter salientado que “suspender”… não é “abandonar” o Projecto: que ele será retomado, logo que garantida uma segurança consolidada!…
A figura de “força maior” é novamente catapultada para a ribalta das discussões formais e informais (já anteriormente fomentada devido aos efeitos da pandemia da Covid-19), pelo que ora se analisa, em traços gerais, em que se traduz no ordenamento jurídico moçambicano
A importância deste megaprojecto é facilmente mensurável, tendo em conta que só o investimento necessário para a sua implementação é superior ao Produto Interno Bruto Moçambicano (actualmente em 15 mil milhões de dólares norte-americanos).
Assim, também é facilmente atingível qual a dimensão do impacto para os prestadores de serviços/fornecedores de produtos, que consubstanciam a maioria dos empresários moçambicanos envolvidos, para já, nesta indústria (conforme veiculado, inclusive, pela CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique), da invocação de uma situação de força maior ao abrigo dos contratos já celebrados.
A figura de “força maior” é novamente catapultada para a ribalta das discussões formais e informais (já anteriormente fomentada devido aos efeitos da pandemia da Covid-19), pelo que ora se analisa, em traços gerais, em que se traduz no ordenamento jurídico moçambicano.
Desde logo, esclarece-se que o conceito de “força maior” não existe como instituto jurídico no direito moçambicano (à semelhança do direito português ou até do direito inglês – notando-se que existe no direito francês), mas tal não impede que o conceito seja utilizado na prática contratual, na medida em que as cláusulas de força maior são crescentemente utilizadas nos contratos comerciais (com a câmara de comércio internacional de Paris a apresentar uma das, se não a formulação mais detalhada da cláusula de força maior – ICC Force Majeure Clause 2020 -, na sua versão “detalhada” ou “abreviada”, porventura mais adequada às PME).
Segundo a doutrina prevalecente, para a operacionalização desta figura, exige-se a verificação de quatro requisitos: (i) o carácter inevitável e inultrapassável do evento; (ii) a imprevisibilidade da ocorrência do evento ao tempo do contrato e nas circunstâncias em que foi celebrado; (iii) exclusão do evento da esfera do controlo da parte; (iv) impossibilidade, e não impraticabilidade ou impossibilidade económica.
Neste contexto, os eventos que conduzem à “força maior” incluem, normalmente, guerras, tumultos, disputas industriais, perturbações civis, incêndios, inundações, tempestades e outros de causa natural, epidemia/pandemia, qualquer acção ou inacção do Governo ou outra autoridade competente, interrupção grave das actividades ou interrupção das fronteiras, voos, entre outros
Esta ressalva é importante na medida em que não se deve reconduzir tudo à “força maior”, pois a lei oferece, além da impossibilidade, vários regimes que podem ser aplicáveis (em situações em que a prestação é possível, embora com esforço ou custos desproporcionais para uma ou ambas as partes): a mora do devedor, a mora do credor, a alteração das circunstâncias, o incumprimento culposo, o incumprimento não culposo, o abuso do direito, a desproporção entre custos do devedor e benefício do credor, entre outros.
Neste contexto, os eventos que conduzem à “força maior” incluem, normalmente, guerras, tumultos, disputas industriais, perturbações civis, incêndios, inundações, tempestades e outros de causa natural, epidemia/pandemia, qualquer acção ou inacção do Governo ou outra autoridade competente, interrupção grave das actividades ou interrupção das fronteiras, voos, entre outros.
Importa referir que, na ausência de uma cláusula de força maior, as partes podem recorrer às leis e regulamentos subsidiários, merecendo especial destaque os regimes da impossibilidade de prestar (artigos 790.º e ss. do Código Civil), seja este temporário ou definitivo (com consequências diferentes, naturalmente) e da alteração das circunstâncias (artigos 437.º e ss. do Código Civil) – este último, conforme verificámos, permitindo, ainda assim e em regra, a prestação em causa.
Note-se que as consequências da impossibilidade dependem ainda de a mesma ser imputável a uma das partes, a ambas ou a nenhuma delas, sendo que os critérios de imputação da lei são variados e as esferas de imputação de riscos num contrato podem não ser iguais relativamente a cada uma das partes.
Em suma, chegados aqui, espera-se ter demonstrado a importância de incluir e destrinçar o alcance de uma cláusula de força maior num contrato a ser executado em Moçambique, na medida em que cabe às Partes preenchê-la (podendo inspirar-se em exemplos internacionais, já referidos), ainda que, para certos contratos, estejam previstas regras específicas de atribuição do risco, como o artigo 1040.º do Código Civil quanto à locação e arrendamento.
Em caso de tal não estar especialmente consagrado no documento contratual que une as partes, seguir-se-á um exercício delicado de enquadrar os eventos em causa num dos vários regimes ora identificados, por forma a delimitar a distribuição do referido risco e determinar as respectivas consequências (a de prestar, indemnizar, reduzir o custo, entre outras).