Vem este artigo a propósito de uma intervenção que estou a preparar para investidores estrangeiros que estão a olhar para Moçambique e na qual, para grande embaraço meu, não consegui descortinar informação estatística sobre a classe que funciona – na opinião avalizada da maioria dos economistas – como o grande motor do consumo nos países: a classe média.
Neste artigo, e de modo a fazer luz sobre a realidade Moçambicana, convido-vos a destaparmos o véu sobre a classe do meio Africana. Adoptemos para o efeito a seguinte definição de Classe Média (CM).
1- “É uma classe social característica do capitalismo moderno”. Tendo surgido no século XIV, posicionada entre a classe nobre (detentora da terra e títulos) e o campesinato (detentor do trabalho manual).
Esta classe do meio – a de “burguesia”- era detentora de capital cultural (conhecimento e inovação), e de capital circulante (dinheiro), dominando as principais rotas comerciais de então.
De acordo com o critério do African Development Bank (AfDB), em África actualmente integram a (CM) 350 milhões de almas sendo que, na região SADC (excepto África do Sul), tal valor é de 100 milhões. Estima-se que, em média, 60% das pessoas que vivem nas maiores cidades Africanas pertençam à CM: ainda assim, registam-se grandes disparidades entre, por exemplo, Dar-es-Salaam (Tanzânia) com 69%, e Nairóbi (Quénia) com 49%.
A esta classe, que no seu interior contudo alberga diferentes sub-classes, atribui-se a designação de African Lions.
2-“Que possui um poder aquisitivo característico”. De notar que uma das características chave das classes médias é a cultura de poupança (i.e. de acumulação de capital físico e humano/cultural).
Esta classe, em regra, não gasta mais de 75% do seu rendimento. Estima-se que em África tal cultura de poupança se verifique igualmente, mas com uma diferença em relação aos restantes continentes (Europa e América): a poupança não é feita para efeitos de reforma, mas para fazer face a situações de emergência. Ainda de acordo com o AfDB estima-se3 que o poder aquisitivo dos African Lions se posicione entre os USD$4 e USD$10 por dia e por pessoa (Baixa classe média); e > USD$10 e USD$20 (Alta classe média).
Estimativas da OCDE para a CM apontam para um ritmo médio anual de 4,6% de crescimento do poder de compra, e de 5,3% de crescimento em número de pessoas.
Tipicamente, a CM Africana na região SADC, considerando o alto custo dos juros praticados, financia-se junto da família e amigos.
3 – “E de um padrão de vida e de consumo razoáveis de forma a não apenas suprir as suas necessidades de sobrevivência como também a permitir-se formas variadas de lazer e cultura”.
Este motor do consumo que é a CM Africana não se define apenas e através de critérios estritamente económicos.
A classe do meio vive entre dois mundos: de um lado, o sonho/desejo de ser e imitar a classe alta (>USD$20 por dia e por pessoa). E, por outro, o horror económico/ medo de se proletarizar e empobrecer (>USD$2 por dia e por pessoa: limiar da pobreza).
Esta tensão na classe do meio pode ser percebida através dos seguintes aspectos que, no seu conjunto, revelam um padrão de vida e consumo típicos da CM:
- Propriedade da casa de habitação e do carro: em regra a CM é detentora da propriedade. Contudo, em África, 52% das famílias deste grupo social são apenas arrendatárias. E utilizam maioritariamente os transportes públicos para se fazerem deslocar.
- Educação, lazer e cultura: em regra a CM busca poder, prestígio e distingue-se das restantes – e já vem sendo assim desde o seu surgimento no século XIV – pela sua obsessão em acumular capital cultural/humano quer para si, quer para os seus filhos (v.g. dispende grande parte do rendimento disponível em escolas e colégios particulares). Viajar e desfrutar de bens culturais (música, teatro, eventos desportivos) são, igualmente, traços identitários da CM. E neste aspecto, a CM Africana não é excepção.
- Segurança e emprego formal: como consequência da acumulação de capital cultural/humano, em regra a CM ocupa empregos formais, qualificados (e neste plano distingue-se da classe trabalhadora/proletária, a qual se dedica a trabalhos manuais) e seguros. Vive do salário: em consequência das sucessivas crises económicas e consequente perda de poder de compra, a CM tende a acumular vários empregos. Contudo, em África, apenas 1/3 dos membros da Classe Média possui um emprego formal. E, tipicamente, na Administração Pública.
E normalmente, como o rendimento com base no salário é baixo, imprevisível e variável (portanto, pouco seguro), de modo a compensar esta variabilidade na renda e diminuir a pressão nas respectivas carteiras, a Classe Média africana tende a trabalhar continuamente, desenvolvendo actividade empreendedora na economia informal.
4- Valores e relação com o Estado: em regra a Classe Média em geral, nela incluindo a africana, acredita no esforço individual e no conhecimento (meritocracia), na democracia, no primado da lei, no mercado livre, num Estado pouco intervencionista (a não ser que seja para implementar políticas que aumentem os seus privilégios de classe do meio!).
Em conclusão
Os Africa Lions representam a classe do meio Africana, diversa no seu seio, em crescimento (4,6% de crescimento anual do poder de compra, e de 5,3% de crescimento anual em número de pessoas) e cujos traços identitários não se encerram apenas na sua capacidade aquisitiva (entre USD$4 e USD$10 por dia e por pessoa (Baixa classe média); e > USD$10 e USD$20 (Alta classe média).
As principais diferenças entre a CM Africana, por um lado, e a Europeia e Americana por outro, residem no destino dado à poupança; nas fontes de financiamento empregues; no arrendamento da casa de habitação; no uso de transportes públicos para se comutar entre casa-trabalho; na insegurança do posto de trabalho.
Como semelhanças a destacar entre as CM Africana e CM Europeia e Americana, o credo assente no consumo, na acumulação de capital cultural/humano; no esforço individual e na meritocracia; na democracia e no peso leve do Estado na economia. Mas a classe do meio vive emparedada entre o sonho de ser um dia rica, e o pavor da descida de divisão.