Longe do consenso. Poderíamos sintetizar assim a forma como tem sido recebida e comentada pelas principais organizações da sociedade civil, economistas e académicos a proposta do Banco de Moçambique (BM) para a criação do Fundo Soberano (FS) do país.
Divulgado em Outubro de 2020, o documento, de apenas 13 páginas, explica, em traços gerais, como vai ser financiado e gerido o Fundo, mas falta ainda saber em que vai investir e como vai ser fiscalizada a aplicação das verbas.
Em entrevista à E&M, Jamal Omar, administrador do BM com o pelouro de Estabilidade Financeira, desdramatiza as críticas, sublinhando que “a auscultação pública em curso visa precisamente colher as diferentes visões e contribuições dos diversos sectores da sociedade moçambicana e, com base nelas, elaborar uma proposta técnica definitiva”.
O objectivo da consulta – por enquanto sem data de conclusão – é, avança (ver entrevista na página 28), permitir produzir “um documento que reflicta os diferentes pontos de vista”. Até agora, garante, as contribuições que o Banco Central tem recebido “são bastante ricas e muito pertinentes e irão, sem dúvida alguma, conduzir-nos a um modelo que seja consensual”. Num ponto, pelo menos, parece haver acordo. A criação do Fundo, num País que espera receitas da exploração de gás na ordem dos 96 mil milhões USD nos próximos 20 anos, faz sentido, ou pode fazer, apesar da crise.
Em declarações à E&M, Bruno Dias, Partner/Consulting da Ernst & Young Moçambique (EY), refere que “é sempre oportuna a criação de um fundo quando há boas perspectivas de obter receitas elevadas”, neste caso, do Oil & Gas, uma vez que pode “garantir o desenvolvimento sustentável do País”.
Está prevista a auditoria às contas e operações do Fundo por parte de um auditor externo independente e certificado com periodicidade anual. Esta medida é relevante para fortalecer a transparência e independência da gestão do fundo
Mas, destaca, tal só acontece se “for bem gerido”. O modelo de gestão do Fundo está em linha com o de outros, nomeadamente o da Noruega, o maior do mundo (ver infografia nestas páginas) com várias ‘camadas’ de controlo e fiscalização, mas é preciso apostar na especialização e capacidade de boa gestão. E, sobretudo, na profissionalização da gestão.
Na Noruega, para além dos níveis de controlo propostos para o caso de Moçambique, a gestão é feita pelo Norges Bank, que responde perante o Banco Central, mas tem um board profissional e independente.
O documento do BM prevê que o Fundo, com uma dupla função de poupança e de estabilização fiscal, tenha vários níveis de controlo. À Assembleia da República caberá aprovar a Lei que estabelece e regula o seu funcionamento”; o Ministério da Economia e Finanças actua em representação do Governo e é o responsável pela gestão global e pelo estabelecimento da política de investimento do FS, delegando no Banco Central a gestão operacional, dentro do quadro legal aprovado pela AR; por fim, o BM será o gestor operacional do Fundo, responsável pela implementação da política de investimento.
O BM poderá “fazer a gestão directa de parte dos activos do Fundo, e alocar outra parte a gestores internos e externos a serem por si contratados”, indica o documento em auscultação pública.
Mas, à E&M, António Alberto Francisco, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane (UEM) e um dos principais críticos do processo, deixa um alerta.
“Sabendo que (o Fundo) pode envolver elevados volumes de activos financeiros de propriedade do Estado, o desafio com que nos deparamos é não cairmos na famosa armadilha identificada pelo economista Milton Friedman: Se colocarem o Governo a administrar o deserto do Saara, vai faltar areia dentro de cinco anos”.
Ironias à parte, refere o académico, a verdade é que “para benefício de Moçambique, a atitude intelectual e profissional mais correcta é prestar atenção aos casos de comprovado fracasso dos Fundos Soberanos de Riqueza, como o do Brasil (criado em 2008 e extinto em 2018), ou os problemáticos de Angola, Argélia e Venezuela, entre outros”.
A emenda pior que o soneto “Se o Fundo que o Governo já decidiu criar não for gerido em conformidade com as boas práticas internacionais, não tenhamos dúvidas que acabará por confirmar o provérbio popular: Pior a emenda do que o soneto. Ou seja, pode ser uma opção que tenha sucesso, mas, considerando o nosso contexto institucional, tem fortes chances, dentro de 10 ou 20 anos, levar-nos a concluir que o recente escândalo das chamadas ‘dívidas ocultas’ não passou de uma modesta entrada num grande banquete de delírio desgovernativo financeiro.”
Inocência Mapisse, economista e investigadora do Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização não-governamental focada no combate à corrupção e na promoção da transparência, num documento divulgado em Novembro passado, também deixa alertas. “A estrutura proposta para a gestão do fundo é muito minimalista. Ignora o papel de outras instituições ou grupos relevantes, como é o caso da Procuradoria Geral da República (PGR), do Tribunal Administrativo e das organizações da sociedade civil”, afirma.
“Para além de ignorar o papel de outras instituições, (a proposta) não toma em conta a própria economia política da gestão das finanças públicas, que deve ter em conta os diferentes actores envolvidos nesse processo, os seus interesses institucionais e particulares; as fragilidades e os riscos fiduciários que são constantemente apontados nos relatórios e pareceres do Tribunal Administrativo”, assim como “várias denúncias apresentadas pelos media, e ou, organizações da sociedade civil, no que diz respeito a má gestão financeira dos bens públicos”, destaca.
Tiago Dionísio, economista-chefe da Eaglestone Securities, dá o benefício da dúvida. “Apesar de a maioria dos fundos soberanos em África ser relativamente independente, o risco de interferência política é considerado como um dos principais desafios nalguns países”. Em Moçambique, avança o responsável da casa de investimento, “está prevista a auditoria às contas e operações do Fundo por parte de um auditor externo independente e certificado com periodicidade anual. Esta medida é relevante para fortalecer a transparência e independência da gestão do fundo”.
O que fazer ao dinheiro?
Também a forma como vão ser alocadas as verbas oriundas da exploração dos recursos não renováveis a que a proposta alude (50% para o Fundo, 50% para o Orçamento do Estado nos primeiros 20 anos, 80%/20% a partir do 21.º) merece críticas do CIP.
“A proposta não apresenta os argumentos técnicos para a definição dos 50% da receita anual a ser arrecadada.
Estes argumentos devem tomar em consideração o saldo primário, défice orçamental (líquido dos empréstimos e dos donativos) bem como as metas contidas no plano de acção da política de investimento a ser produzida”, avança o paper do CIP.
António Francisco assina por baixo. “Nada no documento indica que as opções e previsões, incluindo os 50% supostamente destinados ao OE, sejam rígidas e vinculativas. Não sendo uma proposta com carácter vinculativo e sobretudo responsabilizador para quem infrinja tais percentagens, na prática nada impedirá que as excepções e decisões adhoc prevaleçam e se convertam em regra”.
“Até prova em contrário, suspeito que a distribuição 50% – 50% visa unicamente criar o sentimento na opinião pública e decisores políticos que o Governo está comprometido com uma alocação equitativa dos recursos financeiros. Se for isso, para o senso comum a opção 50%-50% é exemplo de equidade politicamente correcta”, afirma.
Também Moisés Siúta e João Mosca, do Instituto de Estudos Económicos e Sociais (IESE)/Observatório do Meio Rural (OMR) alertaram, num documento sobre a proposta do Fundo que o ideal é que “não existam alocações fixas e constantes do FS ao Orçamento do Estado. Propõe-se que seja obedecido o princípio de que as receitas extraordinárias sejam para custear despesas extraordinárias e que o montante anual de transferências do FS para o Orçamento nunca seja superior a determinada percentagem a estabelecer, mas nunca acima de 30% das receitas anuais do FS do ano anterior”.
Paulo Pimenta, sócio da Pimenta e Associados, escritório moçambicano membro da Miranda Alliance, pelo contrário, concorda com a proposta do banco central. “Parece-me uma repartição adequada tendo em conta as necessidades de financiamento imediato do Estado para que se possa fazer sentir o efeito da aplicação das receitas no curto prazo”, diz à E&M.
“Naturalmente que será sempre discutível a percentagem a alocar a cada uma das contas. Na minha perspectiva, e considerando as necessidades de financiamento do Estado para a contribuição do desenvolvimento e melhoria das condições da população, não me parece desproporcionada a alocação proposta”, reitera.
A posição do Movimento Cívico Sobre o Fundo Soberano, também divulgada em Novembro passado, vai em sentido oposto. “A fórmula de 50%-50% representa um grande risco (…), dado o sistema de gestão das finanças públicas em Moçambique não estar em condições de receber um cheque em branco do tamanho que se propõe”
No entanto, admite o documento da entidade, “reconhece-se que, num país com tantas necessidades, seria imoral alocar todas as receitas esperadas a uma conta de poupança”.
Cuidado com os investimentos
Em relação à política de investimento, Paulo Pimenta deixa um aviso. “Deve ponderar-se cuidadosamente este aspecto, pois será esse investimento que permitirá rentabilizar o fundo e a sua manutenção para além do prazo de exploração dos recursos naturais. A carteira de investimentos deverá tomar em conta o risco de cada activo investido e o retorno previsível desse investimento”.
António Francisco considera que “será triste se desperdiçarmos esta oportunidade ímpar para pensar e reconceber Moçambique. Mas tenho esperança de que, até à aprovação do Fundo, ainda possamos superar boa parte das limitações.
Os desafios que nos esperam na próxima década, associados ou não à criação de um Fundo Soberano, justificam uma postura mais ousada, inteligente e empreendedora, em termos intelectuais, políticos e económicos”, conclui. Bruno Dias alinha. “Se o processo for bem conduzido, os investimentos bem feitos, o Fundo pode ser algo extraordinário”, sublinha. “Moçambique vai ter a oportunidade, se fizer tudo bem, de ter um excelente veículo de salvaguarda do país e das pessoas”.
Texto de Ricardo David Lopes