Quando surgiu, de forma inusitada, a notícia do encontro de alto nível entre o CEO da multinacional francesa Total, e o Presidente da República, Filipe Nyusi, a expectativa superou o factor surpresa: estaria à vista a solução para o impasse iminente? Será 2021 o ano do arranque do megaprojecto por que tanto esperámos ou seria mais um ano de espera?
No dia seguinte, 18 de Janeiro, a notícia ia ao encontro da expectativa criada: o homem forte da Total e o máximo governante do País acordaram um reforço das medidas de segurança em redor do empreendimento de gás natural em Cabo Delgado, confirmava, no dia seguinte, à agência Lusa, uma fonte do Governo.
Já no início de Fevereiro, e passados alguns dias após surgirem rumores que apontavam para a possibilidade de a Total estar em negociações com o arquipélago de Mayotte para ali sediar parte da sua base operacional de suporte aos trabalhos a decorrer em Afungi, surgiu a confirmação oficial: quase toda a logística necessária para a exploração de gás natural liquefeito na Área 1 da Bacia do Rovuma, será de facto feita a partir da baia de Pemba, a capital da província de Cabo Delgado. Quanto a Mayotte pode haver a possibilidade de ali estarem sediados alguns serviços de apoio ao megaprojecto mas o quê, em concreto, e em que dimensão, é uma decisão que não está nesta altura perto de, sequer, ser formalizada, segundo apurou o DE junto da Total.
“Com certeza que o projecto está a analisar todas as opções para optimizar parte da sua cadeia logística. O fundamental das operações offshore estará baseado aqui em Pemba, em Muxara e nas instalações dos CFM/PESCHAUD,” confirmou o director geral da Total Moçambique, Ronan Bescond.
Actualmente já retomaram as obras para a construção da base logística em Muxara, um dos bairros da capital da província, ao mesmo tempo que os Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM), em parceria com a empresa PESCHAUD, remodelam o Porto de Pemba. “Visitámos a base logística de Muxara que vai apoiar toda operação offshore, que prevê a perfuração de 18 poços segundo o plano de desenvolvimento. E também as operações offshore que vão ser desenvolvidas pela Technip FMC, a nossa contratada, para as operações offshore em águas profundas. Agora estamos no porto de Pemba onde a CFM e PESCHAUD vão providenciar apoio logísticos para carregar e descarregar navios e todos equipamentos que vão ser necessários para todas operações na área 1,” explicou Ronan Bescond, que também é vice-presidente do projecto Mozambique LNG.
Além de confirmar a instalação da base logística da Total na baia de Pemba, Ronan Bescond reafirmou o compromisso da multinacional em continuar com o processo do conteúdo local, que era uma das maiores preocupações levantadas pelos empresários da província, quando se aperceberam da possibilidade de alguns serviços serem feitos a partir de Mayotte, um arquipélago francês do oceano Índico situado a cerca de 500 quilómetros da costa de Cabo Delgado.
“Nós comprometemo-nos com as autoridades o gastar cerca de 2.5 biliões de dólares e ter cerca de 5 mil moçambicanos empregados nos nossos projectos. E estamos a pensar na formação desse pessoal, por isso, estamos a construir um centro de treinamento em Afungi, e estamos a preparar a construção do centro em Maputo, além de termos as empresas moçambicanas ou registadas em Moçambique, inclusive em parceria com a embaixada francesa oferecemos 40 bolsas de estudos para formação na área, e tudo isso demonstra o nosso compromisso com o conteúdo local”, tranquilizou Bescond.
Entretanto, nesta visita à província de Cabo Delgado, o director geral da Total Moçambique, escusou-se a falar sobre a situação de insegurança na província de Cabo Delgado, mas garantiu que não há mudança de planos para início de exploração de gás previsto para o ano 2024. “O plano inicial continua para inicio da exploração em 2024 e estamos a trabalhar com o Governo para que esse objectivo seja alcançado,” concluiu Ronan Bescond.
O cenário macro
Desde há pouco mais de três anos que a província de Cabo Delgado tem sido assolada por acções insurgentes (com dramáticos impactos sociais espelhados nos 250 mil deslocados) que se têm, cada vez mais, aproximado do recinto de construção do projecto encabeçado pela Total, a que se junta o da italiana Eni e da norte-americana Exxon Mobil e que tem, como é por demais sabido, o potencial de transformar toda a economia nacional. E isso mesmo antes de começarem a ser exportadas as enormes quantidades de reservas de gás natural, que vão colocar o País no topo da lista dos maiores exportadores mundiais e fazer alavancar o crescimento da riqueza interna anual para volumes nunca antes imaginados. Está tudo ainda no papel, claro, tal como nas previsões dos analistas.
É expectável que assim seja, e assim acontecerá, se não houver alterações de planos provocadas por acções imprevistas.
Como as que sucederam, depois de 38 meses de avanços e recuos e de largas centenas de vítimas mortais, após o segundo ataque próximo aos megaprojectos de gás a 29 de Dezembro, dias depois de um primeiro levado a cabo a 07 de Dezembro, na aldeia de Mute, a menos de 25 quilómetros de Afungi, área onde está a ser construída a zona industrial de processamento de gás natural da Área 1.
Tais factos levaram os responsáveis da multinacional francesa a accionar o plano de contingência, enviando centenas de pessoas de regresso à base. Permaneceram alguns, apenas, ligados à segurança da infra-estrutura mas, ao que se sabe, a maioria das equipas foram desmobilizadas e aguardavam instruções para regressar à obra. Algo que já começaram a receber, tendo iniciado o regresso na primeira semana de Fevereiro.
Destinos ligados
A verdade é que toda a situação da instabilidade sempre preocupou quem estava ligado ao processo e algumas soluções foram sendo concertadas. Isto porque a província de Cabo Delgado é estratégica, fruto da exploração do gás natural e do investimento de 23 mil milhões de dólares que ali vai ser feito só na Área 1, prevendo-se um equivalente, também na casa dos 20 mil milhões, na infra-estrutura da Área 4.
Com o início da produção previsto para 2024, e com a Total a ser a operadora e proprietária de 26,5% do projecto, os prazos e o investimento nunca chegaram a estar em causa, mesmo com o cenário de pandemia global a caminhar para o seu pico ou com os anúncios recentes de grandes investimentos da multinacional francesa em operações ligadas às renováveis, dando seguimento a uma estratégia anunciada para o mercado energético, apresentada em Outubro, e que preconiza o aumento dos investimentos em renováveis e electricidade.
Uma lógica semelhante ao que o seu rival norueguês começou a fazer em 2018, na sequência de uma mudança de nome da Statoil para Equinor, ou à Shell, BP e Exxon, que seguem o mesmo caminho. Já não há dúvidas, actualmente, que os grandes líderes das energias limpas do futuro serão, na prática, os grandes poluidores do presente.
Mas voltando à Total, nessa mesma estratégia, a petrolífera assumiu que se concentrará em “projectos de baixo custo e privilegiará o valor em relação ao volume”. Podemos não ver aqui um bom prenúncio para Moçambique.
No entanto, na próxima década, a sua produção de energia irá crescer um terço, aproximadamente de 3 a 4 Mboe/d, sendo que metade será de GNL, e a outra metade a partir, principalmente, de energias renováveis. E aqui sim — pelo aumento substancial da quota de produção de GNL — Moçambique é absolutamente decisivo na estratégia da multinacional petrolífera.
Quase tanto como o seu sucesso é decisivo para o desenvolvimento, a vários níveis, de Moçambique.
Ainda em Cabo Delgado
Por isso mesmo, a conversa de presidentes era encarada como um momento fundamental: para a Total e para Moçambique. “As questões de segurança têm vindo a ser discutidas com as autoridades, nomeadamente com os Ministérios da Defesa, do Interior e da Energia. A Total não utiliza empresas privadas de segurança armada”, dizia há alguns dias Nicolas Terraz, o chefe do ramo de exploração- produção na África subsaariana, que segue diariamente a situação em Cabo Delgado e que assumia que a instalação era, naquela altura, “segura”.
A nova versão do acordo de segurança estabelecido em Setembro entre o Governo e a petrolífera francesa, e que preconizava o estabelecimento
de uma força de segurança conjunta, previa o aumento da contribuição financeira da Total para as autoridades, em troca de uma melhor protecção das infra-estruturas do seu projecto pela assim designada ‘Task Force Conjunta’ de Cabo Delgado, cujo número foi aumentado, após o ataque de 12 de Agosto, de 500 para cerca de 3 mil homens, de acordo com várias fontes.
“A Mozambique LNG (consórcio que envolve, para além da Total, a japonesa Mitsui (20%) e a petrolífera estatal moçambicana ENH (15%), cabendo participações menores à indiana ONGC e à sua participada Beas, à Bharat Petro Resources, todas com 10% e à tailandesa PTTEP com 8,5%) está a prestar apoio logístico às forças de segurança pública designadas para proteger as actividades do projecto sob a forma de veículos, alojamento e alimentação.
Ao abrigo deste acordo, os operadores pagam ao Ministério da Defesa uma compensação pelas missões de protecção realizadas nas instalações de Afungi”, disse a Total na altura da assinatura do acordo. “Cada oficial militar ou policial moçambicano designado para a protecção da instalação
recebe formação VPSHR (Princípios Voluntários sobre Segurança e Direitos Humanos).
A Total está particularmente vigilante quanto à correcta aplicação destes princípios, e este assunto é regularmente levantado junto das autoridades”, diz Terraz. No projecto, também estão envolvidas várias empresas de segurança privadas cujo pessoal está desarmado. Em Agosto, existiam contratos com as empresas britânicas de consultoria de segurança Blue Mountain & Control Risks, bem como com os gigantes globais de segurança: GardaWorld (canadiana), G4S (britânica), para além da moçambicana Arkhe Risk Solutions.
Sintonia total
“A Total e o Governo estão em sintonia: o que vai acontecer é um reforço das medidas de segurança”, referiu uma fonte governamental, na sequência do encontro entre o líder da petrolífera e o Presidente da República sem, no entanto, detalhar os contornos desse reforço, num encontro em que marcaram também presença os ministros dos Recursos Minerais e Energia, Max Tonela, do Interior, Amade Miquidade, e da Defesa, Jaime Neto.
Nesse sentido, e alcançada uma plataforma de entendimento, a mesma fonte acrescenta que “o projecto é para continuar mantendo-se as datas
previstas”, ou seja, início de exploração em 2024 sendo que deverão ser retomados os trabalhos nas próximas semanas. Trata-se do maior investimento privado em curso em África e nele reside uma das principais esperanças de Moçambique se desenvolver nas próximas décadas.
2021 é o ano
Até agora têm decorrido sobretudo actividades de engenharia e aquisições (a designada fase de ‘procurement’, termo que designa a fase de criação de condutas estratégicas e definição de directrizes e regras de relação da companhia com os fornecedores), estando este ano de 2021 estabelecido como o do arranque ‘em força’ da fase de edificação da cidade do gás e zona industrial para liquefacção do GNL extraído das profundezas da bacia do Rovuma.
Ronan Bescond, director-geral da Total em Moçambique, referia numa conferência em Maputo, em Outubro, que “um ambiente seguro e uma rede
de estradas robusta são pré-condições para o projecto cumprir a promessa de catalisar o crescimento e desenvolvimento do distrito de Palma e do País”.
E a paz efectiva, ou a segurança de populações e equipas que se preparam para rumar a Cabo Delgado, é outro dos ‘must have’ de uma complexa operação que irá durar os próximos três anos e meio. Estava previsto que, só no primeiro semestre deste ano, chegassem a Moçambique perto de 20 mil trabalhadores, das mais variadas áreas, provenientes dos quatro cantos do mundo. Não chegarão nos timings previstos mas a boa notícia é que os desmobilizados já começaram a retomar aos postos de trabalho.
Para já, com os trabalhos a retomarem, os processos de recrutamento continuam, apesar de terem abrandado, diz-nos o gestor de uma das empresas de RH directamente relacionada com o projecto. Esta ‘luz verde’ consumada com a retoma do projecto numa conjuntura em que o País atravessa uma fase de “sinal vermelho” devido à pandemia, só pode significar um reavivar da esperança num ano que começou com más notícias — da tempestade tropical Chalane ao agravamento das medidas da pandemia devido à subida vertiginosa dos infectados. Será o gás a acender a chama de esperança no futuro. No papel, mais limpo, saudável e sustentável. Na prática, assim se espera.
Artigo de Pedro Cativelos escrito para a Revista Economia & Mercado