Ao impor diversas formas de confinamento e de distanciamento social, a pandemia veio colocar enorme pressão, ao nível global, sobre os sistemas de ensino. Em Agosto passado, segundo dados da ONU, mais de 160 países tinham fechado as suas escolas, uma medida que afectou mais de mil milhões de estudantes em todo o mundo.
Numa intervenção produzida na altura, António Guterres, secretário geral da Organização das Nações Unidas, consciente de que o regresso à “normalidade” poderá, mesmo nas previsões mais optimistas, levar alguns anos, sublinhava que “enfrentamos uma catástrofe geracional que pode desperdiçar um potencial humano incalculável, minar décadas de progresso e acentuar desigualdades enraizadas”. Mas, como em todas as crises de grande magnitude, António Guterres referia também que esta pode ser “uma oportunidade para redesenhar a educação”. E acrescentava: “As de cisões que os governos e os parceiros tomarem agora terão um impacto duradouro em centenas de milhões de jovens e nas perspectivas de desenvolvimento dos países nas próximas décadas (…) precisamos de investimento na alfabetização digital e em infra-estruturas, de uma evolução no sentido de aprender a aprender, um rejuvenescimento da aprendizagem ao longo da vida e vínculos reforçados entre a educação formal e a não formal.
E precisamos recorrer a métodos flexíveis de aprendizagem, tecnologias digitais e currículos modernizados, garantindo, ao mesmo tempo, apoio contínuo aos professores e às comunidades.
À medida que o mundo enfrenta níveis insustentáveis de desigualdade, precisamos da educação – o grande equalizador – mais do que nunca. Devemos tomar medidas ousadas agora, para criar sistemas educativos inclusivos, resilientes e de qualidade, adequados para o futuro.”
Mercado Global do E-Learning
Vale 200 Mil Milhões de Dólares Já antes da pandemia eclodir, muitos países, conscientes do momento de transição que se está a viver em direcção à chamada 4ª Revolução Industrial, vinham ensaiando novos modelos e abordagens para os sistemas educativos tendo em mente o papel central das tecnologias digitais e, nomeadamente, da Inteligência Artificial.
Algumas organizações, como o World Economic Forum, para citar apenas um exemplo, têm produzido estudos – nomeadamente, o “New Vision for Education: Fostering Social and Emotional Learning Through Technology” e o “Schools of the Future: Defining New Models of Education for the Fourth Industrial Revolution” – que permitem antever as possíveis modalidades que esse redesenho dos sistemas educativos poderiam assumir.
De igual modo, os últimos anos já tinham sido marcados por um crescimento muito significativo no segmento das chamadas “edtechs”, start-ups que se propõem criar soluções inovadoras para a educação, e que têm vindo a surgir em todos os continentes. De acordo com a Software & Information Industry Association, o mercado das “edtechs” nos EUA está avaliado, neste momento, em torno dos 8,4 biliões de dólares. Na América Latina, um dos mercados com maior crescimento em anos recentes, o Brasil destaca-se com mais de 450 start-ups a actuarem neste segmento. Segundo dados relativos a 2019, o mercado global de e-learning já ultrapassou os 200 biliões de dólares prevendo-se um crescimento de mais de 8% entre 2020 e 2026.
Nesta perspectiva, a pandemia está sobretudo a funcionar como um acelerador de uma tendência que já estava em movimento. A necessidade, imperativa, de adopção de modelos de ensino à distância levou a que, subitamente, se tenha assistido a um boom no desenvolvimento de plataformas e aplicativos na perspectiva de responder a uma procura sem precedentes. Para muitos analistas, a pandemia, ao impor este “novo normal”, abriu as portas para uma familiarização massificada com tecnologias que, apesar de tudo, estavam ainda na periferia dos sistemas educativos, mas que agora, na sua perspectiva, vão passar a ocupar um espaço incontornável nas dinâmicas de aprendizagem ainda que, possivelmente, num modelo híbrido (presencial/virtual).
Start-ups tecnológicas de África na primeira linha da inovação
As profundas lacunas existentes no continente africano, no que toca ao acesso à educação, já tinham levado ao aparecimento, muito antes da pandemia, de um grande número de iniciativas, sobretudo impulsionadas por start-ups tecnológicas, que procuravam suprir essas lacunas.
A plataforma foi criada quando Massamba Thiam e Arona Gueye regressaram ao Senegal depois de uma estadia no Canadá onde se familizaram com as diversas tecnologias de e-learning
O projecto Afriboard Education, fundado pelos senegaleses Massamba Thiam e Arona Gueye, é disso um bom exemplo. E reflecte como o e-learning e o desenvolvimento de aplicações digitais se tornaram há muito, no continente africano, um mercado atraente para jovens empreendedores.
A plataforma foi criada quando Massamba Thiam e Arona Gueye regressaram ao Senegal depois de uma estadia no Canadá onde se familizaram com as diversas tecnologias de e-learning.
Desde 2018, a plataforma da Afriboard Education serve inúmeras escolas secundárias e quatro universidades. As salas de aula virtuais são utilizadas para transmitir conteúdos didácticos, fazer testes e realizar fóruns. Os dois jovens senegaleses desenvolveram também uma app que permite navegar offline: “Os alunos fazem login e, se desligarem os dados móveis, continuam a poder navegar e trabalhar. Desenvolvemos uma tecnologia adaptada às situações africanas”, explica Massamba Thiam. “Cada utilizador paga uma pequena taxa de uso pelo serviço”. Sublinhe-se que o Governo do Senegal apoiou o lançamento da plataforma dos dois jovens empresários com um financiamento inicial no âmbito de um programa de incentivo para empresas emergentes promissoras.
Mas a Afriboard Education não é a única iniciativa do género no continente africano. Outros exemplos devem também ser mencionados: a Eneza, no Quénia, uma empresa que também está presente no Gana e na Costa do Marfim, fornece, por via digital, material didático e de aprendizagem para alunos do ensino básico e liceus.
A Ubongo, na Tanzânia, desenvolveu já inúmeros jogos educativos para incentivar o gosto pela aprendizagem. Também no Quénia, a M-Shule oferece cursos de matemática e programas de alfabetização para crianças da escola primária. No Uganda, a Brainshare, uma plataforma de aprendizagem online, disponibiliza aulas particulares.
E na Nigéria, o Talking Bookz desenvolveu o primeiro mercado online de áudio-livros em África. Segundo Rebecca Stromeyer, fundadora da “eLearning Africa” – uma conferência que, desde 2006, tem sido realizada uma vez por ano no continente africano – Quénia, Gana, Senegal, Costa do Marfim, África do Sul, Nigéria e Ruanda estão entre os países onde se tem verificado o maior número de iniciativas. Estes países são líderes de mercado no ensino digital em África.
A qualidade de acesso à internet e, em muitos casos, do acesso a dispositivos tecnológicos adequados ao aprendizado são também desafios complexos que implicam, se não forem adequadamente enfrentados, a criação de barreiras a uma universalização do e-learning
De acordo com Rebecca Stromeyer existem, neste momento, mais de 200 start-ups inovadoras em África e as perspectivas de crescimento do mercado de e-learning pós-pandemia deverão vir a acompanhar o crescimento global a que se está a assistir.
A organização de Rebecca Stromeyer publicou recentemente o relatório “e- Learning Africa Report 2019” o qual, para além de incluir um directório detalhado sobre todos os países do todo o continente, contextualiza o panorama actual e identifica os principais desafios que se colocam em África. No que toca a Moçambique, o relatório refere que, apesar do apoio que tem tido, por exemplo, através do projecto “ICT: Transforming Education in Africa” promovido, desde 2015, pela parceria entre a UNESCO e a KFIT (Korea Funds-In-Trust), e que tem permitido o desenvolvimento de algumas iniciativas, a situação está ainda aquém do potencial existente no País. Importa recordar que os tempos de pandemia estão a ser marcados pela quase total ausência de consensos sobre a implementação do e-learning entre os principais intervenientes.
Os desafios do futuro em África
A pandemia obrigou a uma mudança repentina nos sistemas educativos mundiais. E se é verdade que a conjuntura pode permitir uma transição sem precedentes para novos modelos, também é verdade que se colocam, como já se está a assistir, alguns desafios de monta, em particular uma difícil adaptação quer por parte dos professores, quer no que toca à passagem dos conteúdos educativos para o ambiente digital.
Além disso, a qualidade de acesso à internet e, em muitos casos, do acesso a dispositivos tecnológicos adequados ao aprendizado são também desafios complexos que implicam, se não forem adequadamente enfrentados, a criação de barreiras a uma universalização do e-learning.
Estes problemas estão presentes numa grande maioria de países, mas alguns estão mais bem preparados para avançar mais rapidamente. China, Singapura e Estónia são exemplos de países que podem ser considerados de referência no que diz respeito a uma rápida adaptação ao e-learning em virtude das suas experiências prévias no uso, em larga escala, da tecnologia digital na educação.
No que toca ao continente africano, o relatório identifica alguns dos obstáculos principais ao desenvolvimento do e-learning: o maior continua a ser um adequado acesso à Internet e ao fornecimento de energia.
Outro obstáculo são os investimentos ou os empréstimos bancários, que são difíceis de obter sendo que em muitos países os governos não estão dispostos a ajudar com subsídios.
Por fim, coloca-se um enorme desafio no que diz respeito à mudança de mentalidade por parte dos professores. Como refere Massamba Thiam da Afriboard Education: “O nosso maior desafio é mudar o comportamento dos professores”.
Revista Economia e Mercado