Profundas e rápidas mudanças estão a ocorrer no mundo, nos países e dentro dos países. A partir da segunda metade da década de 1990, os estudos a respeito da questão rural-urbana destacaram-se especialmente na Sociologia, Economia e Geografia, para compreender melhor as novas características do campo, as relações entre o campo e a cidade, a intensificação da pluriactividade, o aumento de actividades não agrícolas em áreas rurais, a mecanização crescente da actividade agro-pecuária, o dinamismo do agro-negócio, as cidades como pólos de crescimento regional, os movimentos socioterritoriais, entre outras temáticas.
A tendência global de crescente industrialização, modernização e urbanização não faz perder de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações de fome, pobreza, falta de acesso aos serviços básicos, desigualdades sociais e reduzidas oportunidades económicas e de empregos, e que a problemática da segurança alimentar e nutricional está na “agenda do dia”.
É muito provável que o mundo em 2050 seja mais rico, mais saudável, mais interconectado, mais produtivo e inovador, com melhor educação, menos desigual entre ricos e pobres e entre homens e mulheres, mais solidário, mais sustentável, com mais estabilidade e com mais oportunidades para milhares de milhões de pessoas. Mas não tenhamos ilusões: o mundo não será a “Comunidade Imaginada” (pedindo emprestada a expressão de Benedict Anderson, 1911) global idílica e harmónica, desprovida de tensões, disrupções, contradições e de velhas e novas conflitualidades.
O mundo está a assistir a uma mudança em grande escala e em distintos domínios, que ocorre a uma velocidade impressionante e nunca antes vista. A tecnologia expande-se incrivelmente depressa, a economia global está a pender para o lado da Ásia, a demografia está a sofrer alterações de grande amplitude, as mudanças climáticas são uma problemática omnipresente nos vários quadrantes do mundo, o desafio energético está visível e foi relativamente contido com o advento da COVID-19 e novas crises económicas e financeiras estão à espreita e ameaçam derramar os seus efeitos nos países, empresas e famílias. Os espaços, rurais e urbanos vão ressentir-se certamente das crises globais, nacionais e dentro dos países.
Por volta de 2050, o mundo será mais urbano, será consideravelmente mais velho (a idade média aumentará de 29 para 38 anos) e será mais africano (cerca de metade dos 2,3 milhares de milhões de pessoas que ainda estão para nascer serão habitantes de África). Mudanças sociais disruptivas surgirão como consequência do rápido desenvolvimento dos países emergentes, reformas vão tornar os Estados mais eficazes e transparentes, e a ciência vai continuar a expandir incessantemente os seu horizontes, em decorrência de uma economia global baseada no conhecimento e assente nas novas tecnologias de informação e comunicação.
Temos pela frente enormes desafios como lidar com as alterações climáticas e as crises epidemiológicas, controlar conflitos por recursos escassos como a água, alimentar os 9 mil milhões de pessoas que existirão em 2050 e gerir a multiplicidade de novas ameaças à nossa segurança e estabilidade. O mundo vai testemunhar, como afiança Nassim Taleb (2007), a passagem de bandos sucessivos de “Cisnes Negros”, sobretudo pela natureza aleatória, contexto de incertezas e marcada por desenvolvimentos imprevisíveis. As áreas rurais e a agricultura vão ter de estar preparadas para alimentar uma população em rápido crescimento e o agro-negócio vai assumir-se como uma actividade que gera riqueza e prosperidade.
Nos países ainda pobres, registam-se melhorias significativas na gestão macroeconómica, na implantação de infra-estruturas, na diversificação das estratégias comerciais e na provisão de alguns serviços essenciais. Persistem, porém, nos países e dentro dos países, desafios relacionados com a erradicação da fome, elevada taxa de pobreza e desnutrição crónica, baixo índice de desenvolvimento humano e de competitividade económica, elevado peso da economia informal, deficiente ambiente de negócios, elevada taxa de desemprego, fardo pesado do endividamento e ainda significativas desigualdades sociais, espaciais e de género (BAD, 2018; Lopes, 2019; Valá, 2019).
A tendência global de crescente industrialização, modernização e urbanização, não faz perder de vista que nas áreas rurais ainda prevalecem situações de falta de acesso aos serviços básicos
Novas doenças vão surgindo, as demandas do sector produtivo nem sempre se ajustam ao perfil de saída dos graduados, surgem novas profissões e novas modalidades de trabalho, a mendicidade e a pobreza urbana têm-se mostrado mais duras e ásperas, o acesso à água potável e à energia para todos é ainda um desafio, como o é a disponibilidade de habitação condigna e mais empregos, particularmente para os jovens. Os assuntos antes aflorados, embora tenham manifestações, dimensões e consequências distintas em cada espaço, estão presentes nas áreas rurais e nas áreas urbanas.
Este artigo procura explorar a dicotomia “rural-urbano”, a dialéctica existente entre os dois espaços e as suas possibilidades de desenvolvimento, tendo em conta que não é possível compreender as relações “campo-cidade” separadamente. Ele argumenta que o rural e o urbano correspondem a representações sociais sujeitas a reelaborações e ressemantizações que vão variar conforme o universo simbólico a que se refere, e que a ruralidade se caracteriza por ser um conceito cuja natureza é territorial e não sectorial, como o é igualmente a noção do urbano. Assim, o campo não é definido apenas pela ligação com a terra, a natureza e a agricultura, assim como a cultura material da cidade não está exclusivamente vinculada à indústria e serviços. Compreender melhor essas problemáticas e endereçar políticas públicas compreensivas, focalizadas e sustentáveis vai ser necessário e urgente, sobretudo porque há uma agenda da globalização a ter em conta, e porque aqueles que tomam as grandes decisões vivem em cidades.
1. Pode-se entender o rural como sinónimo de vulnerabilidade e pobreza?
Conceptualmente, o espaço rural é habitado por pequenas comunidades humanas, com valores mútuos e história comum, que giram ainda em torno da fidelidade e da pertença a um meio e a um território, em que se reencontra uma dinâmica distinta e práticas sociais, culturais e económicas fundadas sobre a proximidade, a convivialidade, a ajuda e a cooperação, associado ao território, às relações e à coesão social. Porém, esta definição sofre ajustes constantes, em razão das mudanças e das diversificações do rural, em que as actividades socioeconómicas se alteram, as paisagens se transformam, a gestão dos territórios muda, bem como a distribuição do povoamento e as relações sociais e de vizinhança. A ruralidade é um modo de vida ligado intimamente ao campo e às práticas e hábitos rurais, ou seja, dedicação principalmente, às actividades socioprodutivas relacionadas com o trabalho da família na terra e, assim, garantir a sua reprodução biológica e social (Veiga, 2000; Graziano da Silva, 1999 e Abramovay, 2003).
É fundamental superar a concepção negativista e a visão estigmatizada acerca do espaço rural e da agricultura como sinónimos de atraso, do arcaico e do subdesenvolvimento. Não se pode deixar de reconhecer que é a própria administração que gera essa perspectiva preconceituosa, ao denominar o rural como o espaço que não é urbano, sendo definido a partir das suas carências e não das suas próprias características.
Os espaços rurais possuem múltiplas valências, entre elas o seu elevado potencial económico, o património cultural e natural, as amenidades rurais, ou seja, o ar puro, as belas paisagens, o contacto com os animais e as plantas, que permitem atrair investimentos da indústria de lazer. Isso tem permitido deslocar a base da economia rural da exportação de produtos primários e manufacturados para a oferta, também, de serviços e importação de pessoas, dinheiro público e renda de origem urbana.
O desenvolvimento do capitalismo e a industrialização da agricultura podem desencadear a urbanização do campo, pela proliferação de actividades não agrícolas no campo, como o turismo, comércio e prestação de serviços, transportes, construção, serviços financeiros, entre outros, bem como a paulatina ocupação do campo pelos “neo-rurais”, servindo como residência de fim-de-semana para os amantes da vida bucólica.
Nos anos 1950, a teoria económica predominante sustentava que os pequenos produtores era atrasados, sem espírito empreendedor, e que por consequência deveriam ser incentivados a mudarem-se para as áreas urbanas, a fim de suprirem o sector industrial de mão-de-obra.
As terras assim ocupadas pelos migrantes deveriam ser organizadas em grandes propriedades mecanizadas e administradas por gerentes como empresas industriais modernas.
A História demonstrou que essa mecanização era inapropriada quando se tinha mão-de-obra abundante e de baixa remuneração, exigindo pesados subsídios para a operacionalização desses empreendimentos, provando inclusive ser insustentável. Ficou evidenciado que os pequenos agricultores aos quais são negados acesso à capacitação, ao crédito, aos mercados, as infra-estruturas e a tecnologias são também menos produtivos.
Durante longo tempo acreditou-se que para incentivar o desenvolvimento rural bastaria simplesmente o desenvolvimento agrícola. A ideia dominante era que a transformação social e económica e a melhoria das condições de vida das populações rurais seria um resultado natural do processo de mudança produtiva decorrente da introdução da tecnologia agrícola. Essa visão teve a sua máxima expressão na chamada “Revolução Verde”, que apostando na modernização agrícola (introdução de máquinas agrícolas, fertilizantes inorgânicos, agro-químicos, sementes melhoradas, instrumentos de produção adequados à pequena escala, fomento da irrigação, etc.) pretendia aumentar a produção e a produtividade permitindo, desse modo, o aumento da renda familiar e, portanto, o desenvolvimento rural.
Os resultados dessas estratégias nas áreas rurais foram globalmente decepcionantes pois, apesar de as novas tecnologias terem permitido o aumento da produção agrícola em diversas regiões do mundo, provocaram simultaneamente o agravamento das condições de vida das populações que aí habitavam. Uma grande parcela da população não pôde ter acesso ao capital necessário para a modernização agrícola, registou-se uma descapitalização daqueles que contraíram dívidas para lograr essa modernização, registaram-se graves problemas de poluição da água, uma redução das áreas florestais, redução do potencial hídrico, empobrecimento dos solos devido ao uso de agro-tóxicos, graves problemas de distribuição da terra, etc., e em geral não se conseguiu reduzir a pobreza.
Há estudos que mostram que as famílias que mais diversificam as suas actividades económicas nas áreas rurais contam-se entre as que fugiram da “armadilha da pobreza”
A adopção dos programas de ajustamento estrutural e de medidas de austeridade, em muitos países, foi marcado pelo desinvestimento do Estado na agricultura, por massivos e apressados programas de privatização, redução dos subsídios à produção e comercialização, remoção das barreiras para a entrada de produtos estrangeiros, bem como foram favorecidos os produtos para exportação em detrimento da produção de alimentos. Paralelamente, registou-se uma maior dependência dos pequenos produtores às grandes empresas (de grande capital, através de empresas de fomento de certas culturas de rendimento), níveis muito baixos de poupança dos pequenos produtores (vulnerabilidades essas agravadas pelas calamidades naturais cíclicas), o que fez com que o êxodo rural ganhasse novos ritmos e contornos mais complexos.
Quando se refere erroneamente que o rural é sinónimo do agrícola está a fazer-se confusão entre um espaço geográfico e um sector de actividade. Um número significativo de pessoas que residem em áreas rurais desenvolvem actividades extra-agrícolas, bem como existem famílias rurais ligadas à agricultura que desenvolvem também outras actividades económicas, como produção e venda de carvão, pequenos negócios, mineração artesanal, pesca, trabalho assalariado, etc., como estratégia de sobrevivência, aversão ao risco ou de acumulação.
Há estudos que mostram que as famílias que mais diversificam as suas actividades económicas nas áreas rurais contam-se entre as que fugiram da “armadilha da pobreza”.
Embora se reconheça que a actividade agrícola continue a ser vital para a economia rural, o seu peso tem vindo a reduzir-se gradualmente e ela já não determina, isoladamente, os rumos da demografia no campo (Valá, 2012; Valá, 2017; MEF, 2016; MPD, 2012). José Negrão (2005 & 2008) dá uma importante contribuição ao questionar alguns pressupostos relacionados com o comportamento económico da família rural, que influenciam e condicionam as decisões dos pequenos agricultores moçambicanos, como: a) a substituição do conceito de economia de subsistência pelo de economia familiar, pois as famílias rurais estão integradas no mercado e têm como objectivo reforçar as redes sociais minimizadoras de riscos e multiplicar a produtividade marginal de cada factor; b) para os habitantes rurais, a agricultura representa uma indispensável, mas não exclusiva, fonte de rendimento e a especificidade do comportamento de cada unidade singular é parte de um todo no qual reside a garantia da reprodução social e de seguro contra riscos; c) a adjudicação do tempo de trabalho disponível da família na agricultura para o consumo não é substituível pelo trabalho fora do sector agrário e para o mercado, gerando padrões de divisão de trabalho no seio da família que muitas vezes revelam relações de género não equilibradas; d) a terra para a produção de rendimento em espécie não é arrendada, hipotecada ou alienada, sob o risco de comprometer a reprodução física da família, daí a necessidade de garantir o acesso e posse da terra para todas as famílias rurais moçambicanas) a adjudicação dos recursos pela família nuclear tem em consideração a sua pertença às redes de segurança social, tornadas praticáveis através de meios de coacção das linhagens do marido e da mulher.
Assim sendo, Negrão chama a atenção para a relação entre a utilização do tempo na agricultura e noutras actividades económicas, a adjudicação de tempo para a produção para o mercado e para fora do mercado, a relação entre o uso da terra para a produção em espécie e o uso para a obtenção de dinheiro e a adjudicação de recursos pela família nuclear e pela linhagem, que são elementos vitais para compreender os processos de tomada de decisões das famílias rurais africanas em relação à adjudicação de recursos.
Essa visão toma em conta as mudanças que ocorrem no campo, a relação entre a cidade e o campo e como as estratégias económicas das famílias rurais levam em conta a dinâmica de mudança em curso.
Importa, pois, clarificar os termos de desenvolvimento agrícola, agrário e rural, que muitas vezes são usados de forma ambígua, confusa e difusa. O desenvolvimento agrícola refere-se as condições da produção agrícola e às suas características, no sentido estritamente produtivo, identificando as suas tendências num dado período de tempo. O desenvolvimento agrário diz respeito às interpretações acerca do “mundo rural” nas suas relações com a sociedade maior, em todas as suas dimensões, e não apenas à estrutura agrícola. Refere-se às condições de produção (o desenvolvimento agrícola, pecuário e florestal) não apenas numa faceta, mas centrando-se a análise também nas instituições, nas políticas adoptadas, nas disputas entre classes, nas condições de acesso e uso da terra, nas relações de trabalho e suas mudanças, nos conflitos sociais e nos mercados.
A expressão “desenvolvimento rural” diferencia-se das duas anteriores por se tratar de uma acção previamente articulada que induz mudanças num determinado ambiente rural. Em consequência, o Estado sempre esteve presente à frente de qualquer proposta de desenvolvimento rural como seu agente principal.
A determinação do que seja exactamente desenvolvimento rural tem variado ao longo do tempo, embora normalmente nenhuma das propostas deixe de destacar a melhoria do bem-estar das populações rurais como o
objectivo final.
As diferenças surgem nas estratégias seleccionadas, na hierarquização das prioridades e nas ênfases metodológicas (Navarro, 2001; MPD, 2007; Valá, 2006; Valá, 2009).
Em muitos casos, o lento desenvolvimento rural se deve à combinação da falta de desenvolvimento agrícola e também do não agrícola.
Na verdade, se uma determinada região possui cidades com dinâmicas geradoras de emprego e renda, essas mesmas dinâmicas tendem a reflectir-se no seu entorno rural, daí a necessidade de superar-se a dicotomia “rural-urbano“
e agrícola-não agrícola, e pensarmos no desenvolvimento do local, do território, da região.
E as cidades têm de fazer parte desse movimento, pois o desenvolvimento não pode ser encarado como apenas rural e, muito menos, como exclusivamente agrícola. O rural, longe de ser um espaço diferenciado pelas relações exclusivamente com a terra, natureza e ambiente, está profundamente relacionado com o urbano que lhe é contíguo.
Artigo publicado na Edição de Agosto da Revista Economia & Mercado. A segunda parte deste texto de opinião será publicado na edição de Setembro da revista.