A criação, comércio e consumo de animais selvagens surgiu para responder à grande fome. Agora, é uma indústria só para ricos e levou ao tráfico de espécies protegidas. Serão esses mercados a origem de todos os surtos de coronavírus que o mundo conhece?
Ao longo das últimas semanas, talvez no último mês, Donald Trump criou, para consumo próprio, uma espécie de sinónimo de coronavírus: “the vírus from China” ou “the chinese vírus”, ou seja, o vírus da China ou o vírus chinês. A expressão foi motivo de notícia na imprensa norte-americana e internacional e foi tópico de debate na opinião pública.
Até que, há cerca de duas semanas, uma jornalista decidiu perguntar directamente ao Presidente dos Estados Unidos porque é que se referia ao coronavírus dessa forma — e se não pensava que se tratava de uma afirmação xenófoba. Trump, muito rapidamente, explicou-se pelo facto de o vírus ter sido descoberto na China. “Porque veio da China”, disse.
A resposta do Presidente norte-americano, à qual se somavam as semanas consecutivas a atribuir uma nacionalidade à pandemia mundial, como forma de responsabilizar os chineses, trouxe-lhe várias críticas e acusações. Afinal, há muito que o coronavírus deixou de ser um problema somente da China e do continente asiático.
E há já algum tempo que é um problema global. Por isso, e pela ideia de que o mundo se uniu para combater um inimigo comum que destrói fronteiras mas que ironicamente as levantou por todo o lado, há muito que já ninguém pensa no coronavírus como o vírus chinês ou o vírus da China.
Actualmente, a indústria da criação e comércio de animais selvagens está controlada pelos interesses comerciais de quem ainda lucra bastante com este sector
Ainda assim, uma das primeiras perguntas que surgiram assim que o surto se tornou notícia foi precisamente a dúvida sobre a origem do vírus. A resposta foi bastante simples, indicando que o vírus propagou-se a partir de um animal.
Mas que animal? As primeiras suspeitas apontaram para os morcegos, mas rapidamente se virou a atenção para o pangolim. Estudos consequentes descartaram a hipótese – e responsabilizaram novamente os morcegos, “reservatórios naturais” de coronavírus.
O que deverá ter acontecido, indicam as últimas investigações, é que um segundo animal terá servido de ponte entre os morcegos e os seres humanos, acabando por propagar de forma descontrolada o vírus.
E é nesta cadeia de transmissão — morcego/segundo animal/ser humano — que chegamos ao epicentro do problema. Pouco depois de o surto na província chinesa de Wuhan ser publicamente conhecido, no final de Dezembro de 2019, as autoridades do país acabaram por revelar que trinta dos primeiros infectados com o novo coronavírus tinham estado no mesmo mercado, conhecido como um dos chamados “mercados molhados”, que ganharam esse nome precisamente porque o chão está sempre molhado devido às lavagens de bancas cheias de carne, marisco ou vegetais.
A reacção do Governo chinês foi ordenar a proibição do comércio e consumo de animais selvagens e o encerramento temporário dos mercados que comercializam animais vivos — encerramento esse que ainda se mantém.
Os mercados que têm fruta, verduras, lontras e até lobos
Estes mercados, autênticos viveiros de contacto entre seres humanos e animais selvagens vivos, são um dos pontos terminais (há outros) de uma indústria chinesa que é inicialmente e originalmente legal, mas que tem cada vez mais meandros ilícitos.
A 27 de Janeiro, quando o mundo se quer imaginava que enfrentaria uma das piores, senão a pior, crise da história recente, uma correspondente do New York Times na China descreveu um destes mercados no jornal norte-americano.
“O mercado típico na China tem frutas e verduras, carne de vaca, porco e cordeiro, frangos inteiros sem penas, assim como caranguejos e peixes vivos, que atiram água para fora dos aquários. Alguns mercados vendem coisas menos usuais, como serpentes vivas, tartarugas e grilos, ratazanas, doninhas, ouriços, lontras, gatos-civeta e até lobos”, escreveu Giulia Marchi.
Um segundo animal terá servido de ponte entre os morcegos e os seres humanos, acabando por propagar de forma descontrolada o vírus
Todos esses animais estão enjaulados em conjunto com dezenas de outros, em caixas amontoadas umas em cima das outras, sem qualquer tipo de higiene e junto aos próprios excrementos, que escorrem dos que estão em cima para os debaixo, durante vários dias.
Pode dizer-se que, em linhas gerais, este comércio é legal na China. Aliás, é uma indústria bem organizada que tem nesta altura cerca de 20 mil empresas de criação em funcionamento, emprega 14 milhões de funcionários e envolve 54 espécies selvagens cuja criação, desenvolvimento, comercialização e consumo são permitidos no país. O seu impacto no Produto Interno Bruto chinês, contudo, é quase irrisório.
Como explica Simon Evans, professor de Ecoturismo na Universidade Anglia Ruskin, em Inglaterra, o problema é que é praticamente impossível regular e travar a coexistência do comércio tradicional com um mercado ilegal de animais selvagens no mesmo espaço — e às vezes na mesma banca. Este mercado paralelo, que as Nações Unidas avaliaram em 23 milhões de dólares a nível mundial, além de ser de grande perigo para a saúde pública, como também para a própria sobrevivência de alguns destes animais.
Várias espécies em vias de extinção são das mais procuradas e valiosas, como é o caso do pangolim, que em 2013 foi a espécie não humana mais traficada no mundo inteiro.
Várias espécies em vias de extinção são das mais procuradas e valiosas, como é o caso do pangolim, que em 2013 foi a espécie não humana mais traficada no mundo inteiro. As razões são muitas, desde o uso na medicina tradicional chinesa, aos efeitos que se acredita que o seu consumo possa ter na saúde ou em outras questões particulares.
Trata-se de um mercado ilegal que pode estar a escapar à proibição implementada pelo Governo chinês como resposta ao surto. A falta de recursos das autoridades locais, assim como as penas leves aplicadas aos traficantes de animais selvagens, permite a continuação das operações mesmo com os mercados encerrados e as transacções legais paradas.
“Estamos muito certos de que a transmissão do vírus aconteceu devido ao contacto entre animais e pessoas, algo semelhante ao que aconteceu em contágios anteriores, como no caso do ébola, da gripe das aves ou dos SARS. Em todos estes casos, a existência de grandes mercados de animais selvagens, com condições pouco saudáveis e mal regulados, criava um contexto ideal para que as doenças se transmitissem entre espécies.
Num país como a China, que tem uma cultura onde o consumo de animais selvagens é algo completamente habitual, este contágio pode propagar-se rapidamente e foi o que aconteceu”, acrescenta Simon Evans, num artigo publicado pelo El Español.
O SARS — Síndrome Respiratória Aguda e Severa — propagou-se no início do século XXI e também teve origem na China, tendo morto 774 pessoas em um universo de mais de oito mil infectados em 29 países diferentes. E é precisamente devido ao SARS que Peter Li, cidadão chinês que é professor na Universidade de Houston, nos Estados Unidos, não ficou surpreendido com o despoletar de uma nova epidemia no país asiático.
“Quando o vírus conhecido como SARS se propagou no mundo entre 2002 e 2003 e foi relacionado com os gatos-civeta vendidos e consumidos no sul da China, perto de Hong Kong, os cientistas provaram que os criadores tinham sido contagiados por animais selvagens e o disseminaram pela população. Por isso, exigiram ao Governo a proibição da criação de animais selvagens porque, se não acontecesse, tudo isto aconteceria outra vez”, começa por explicar ao Noticias Telemundo.
“Quando o vírus conhecido como SARS se propagou no mundo entre 2002 e 2003 e foi relacionado com os gatos-civeta vendidos e consumidos no sul da China, perto de Hong Kong
Peter Li explica ainda que, em 2010, a comunidade científica voltou a encontrar em Wuhan e Hong Kong um novo coronavírus proveniente de animais selvagens.
“Os cientistas disseram rapidamente que os mercados deveriam ser encerrados, porque o coronavírus típico não infecta as pessoas, tem de sofrer mutações entre diferentes espécies de animais. Isto foi há dez anos. Por isso, não fiquei surpreendido”, termina a dizer.
Um hábito que começou nos anos 80 para combater a fome
A legalização da criação e comercialização de animais selvagens foi implementada na China nos anos 70, no início da era Deng Xiaoping e no pós-Mao Tsé-Tung. Quando Mao chegou ao poder, implementou a agricultura colectiva que erradicou o direito de propriedade e não permitia aos cidadãos ter actividades económicas individuais e autónomas.
A legalização da criação e comercialização de animais selvagens foi implementada na China nos anos 70, no início da era Deng Xiaoping e no pós-Mao Tsé-Tung
Em 1978, dois anos depois da morte de Mao, e já com Xiaoping à frente do país, a China acordou para a própria realidade. Era um país pobre, a morrer de fome, sem qualidade de vida e o sistema político comunista em perigo, caso a população faminta e a chorar os mortos por falta de alimentos ou por terem incumprido as ordens se revoltasse.
Para combater a pobreza e a fome — e também para evitar o espoletar de eventuais sublevações de cidadãos —, Deng Xiaoping decidiu abolir as políticas de agricultura colectiva e permitiu, a partir de 1980, que todos os camponeses pudessem desenvolver as próprias actividades, incluindo a criação e o comércio de animais selvagens, que muitos tinham entretanto começado a consumir para sobreviver.
A actividade, porém, não existia antes da necessidade de combater a fome dos anos 80 do século passado. Segundo Peter Li, a esmagadora maioria dos chineses só come tartarugas ou sapos que apanha pessoalmente nas próprias propriedades.
“Mas estes não são perigosos. Estão saudáveis quando os consumimos, não ficam fechados em grandes quantidades em jaulas durante 20 ou 30 dias”, acrescenta. Nesta altura, menos de 5% da população chinesa está dedicada à criação de animais selvagens. A maioria cultiva arroz, tabaco ou gado.
“Eu cresci na China e a minha mãe nunca trouxe uma serpente para casa para o jantar. Agora, o propósito é que alguns façam dinheiro, não é que as pessoas comam”, diz o professor da Universidade de Houston.
Para combater a pobreza e a fome — e também para evitar o despoletar de eventuais sublevações de cidadãos —, Deng Xiaoping decidiu abolir as políticas de agricultura colectiva e permitiu, a partir de 1980, que todos os camponeses pudessem desenvolver as próprias actividades, incluindo a criação e o comércio de animais selvagens.
A afirmação de um status e a ligação à medicina tradicional
Com o passar dos anos e com a mudança de século, a indústria dos animais selvagens tornou-se uma produção acessível a apenas uma franja mais abonada da população — associada ou sinónimo de riqueza e status.
“Os animais selvagens são muito caros. Se ofereceres um animal selvagem a alguém, é considerado uma homenagem”, explicou uma jovem chinesa à CNN. Um pavão, uma das espécies mais procuradas nos mercados chineses, pode chegar a custar 800 iuanes, mais de 130 euros.
“Os animais selvagens que as pessoas endinheiradas consomem na China são geralmente répteis grandes como serpentes, pangolins e lagartos, assim como veados e javalis. Os criadores compram as serpentes a quem as caça, a 10 dólares cada 500 quilos. Depois vendem as serpentes aos restaurantes por 70 ou até 100 dólares. E o restaurante vende as serpentes aos clientes por 200. Só os ricos podem pagar isto”, explica Peter Li.
Espécies em vias de extinção são das mais procuradas e valiosas, como é o caso do pangolim, que em 2013 foi a espécie não humana mais traficada em todo o mundo
Mais do que uma espécie de comprovativo de riqueza, os animais selvagens transportam consigo uma ligação directa à medicina tradicional chinesa e à crença da população de que o consumo de algumas espécies — ou de partes desses animais — serve como tratamento natural para uma série de problemas de saúde. Alguns são estimulantes sexuais, outros combatem o cancro, uns ajudam na pressão arterial. Os famosos pangolins, por exemplo, são encarados como especialmente benéficos para as mães que estão a amamentar.
Actualmente, a indústria da criação e comércio de animais selvagens está controlada pelos interesses comerciais de quem ainda lucra bastante com este sector.
Esses mesmos interesses comerciais acabam por ter uma grande influência junto do Governo de Xi Jinping, tornando difícil a tomada de decisões mais extremas como a proibição definitiva da compra e venda de animais selvagens. Ou a sua criação.
Peter Li, acrescenta que muitos dos empresários ligados a esse negócio invocam a “ajuda ao desenvolvimento económico” do país, indica que “os donos das quintas [onde os animais são criados e desenvolvidos] representam os interesses da indústria” e querem “fazer crer que a captura e criação destas espécies é benéfica porque ajuda a salvar vidas a partir dos medicamentos que se obtêm com elas”.
Outra questão adicional — e problemática — é a da alegada corrupção na obtenção de licenças para captura, criação e vendas destes animais, que atingiu agora uma “quantidade excessiva”. “Quando se pedem tantas licenças, algo estranho se está a passar”, conclui Peter Li.
“Os criadores compram as serpentes a quem as caça, a 10 dólares cada 500 quilos. Depois vendem as serpentes aos restaurantes por 70 ou até 100 dólares. E o restaurante vende as serpentes aos clientes por 200. Só os ricos podem pagar isto”.
Considerando que apenas uma limitada e restrita faixa da população consome efectivamente os animais selvagens criados, assume-se que a principal origem da disseminação de vírus entre animais, dos animais para as pessoas e das pessoas para o resto do mundo está nos mercados. Nos mercados onde os animais selvagens ficam durante dias, por vezes semanas, fechados em jaulas sem quaisquer condições de segurança ou limpeza.
Logo depois de o Governo de Xi Jinping ter anunciado o encerramento temporário dos mercados, abriu-se a porta à possibilidade, depois do SARS e do Covid-19, de a comercialização e de o consumo de animais selvagens nestes mercados se tornar definitivamente proibida — algo que Peter Li não dá como adquirido.
“O governo tem a obrigação de abolir a lei. Mas temos de olhar para a forma como será revista. Não podemos ter falsas expectativas. Há outros componentes nesta lei que provavelmente não vão mudar, como a criação de animais para a medicina tradicional ou para os laboratórios e os ensaios clínicos. Uma proibição que abranja todas essas esferas seria demasiado para o Governo da China”, explica o professor.
Ainda assim, o precedente está aberto, pois, Shenzhen, no sul da China, tornou-se, no início do mês, a primeira cidade do país a proibir de forma definitiva o comércio e o consumo de carne de cão e gato.