Sociedade civil moçambicana aplaude declaração do estado de emergência para combater a propagação do novo coronavírus no país, mas pede consciencialização e apoio aos mais desfavorecidos para que regras sejam cumpridas.
Em Moçambique, ainda há quem não esteja ciente de que deve evitar ao máximo sair de casa durante o mês de Abril. Para outros, o isolamento social nem é uma hipótese: ficar em casa significa não ter o que comer. São estas as grandes preocupações de algumas organizações da sociedade civil, que aplaudem, no entanto, a decisão do Presidente Filipe Nyusi de decretar o estado de emergência nacional para tentar travar a propagação do novo coronavírus.
O país tem neste momento oito casos confirmados de Covid-19 e os analistas entrevistados concordam: as medidas anunciadas são necessárias para travar a cadeia de transmissão.
O problema que se coloca é a capacidade que as autoridades têm de garantir uma boa administração dessas medidas, sem violar os direitos essenciais
“O estado de emergência era de se esperar, devido à conjuntura actual. Já é aceite em todos os cantos do mundo que, independentemente de haver muitos ou poucos casos, tomar decisões de forma tardia pode implicar custos muito mais elevados”, considera Celeste Banze, investigadora do Centro de Integridade Pública (CIP). “O ponto que não ficou muito claro na mensagem do chefe de Estado foi quais serão as medidas específicas” – que deverão ser conhecidas brevemente.
“O maior problema é a falta de consciência e o risco iminente: a rápida propagação do vírus e mortes. É o que se quer evitar. Temos de estar todos conscientes de que cada um de nós tem um papel crucial nesta batalha”, sublinha.
Luís Bitone, presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), concorda. “Há muita informação sobre o mal do coronavírus, mas há muitas pessoas que não acompanham as notícias e não estão nem aí. O receio é que estas pessoas desafiem o estado de emergência, que saiam à rua sem autorização” das autoridades.
Isolamento social – só para alguns?
Com restrições à circulação e proibição de todos os eventos públicos, há que garantir o sustento de cerca de “88% da população economicamente ativa” que “trabalha no sector informal”, diz o CIP.
Celeste Banze considera que “o Governo ainda não deixou muito claro quais são as alternativas viáveis, a curto prazo”, para a sobrevivência de um sector em que também “há um grande risco de propagação do vírus”.
Importante, frisa Celeste Banze, é acautelar a consciencialização das camadas mais desfavorecidas da população. “A mensagem do Presidente foi transmitida para um pequeno grupo da sociedade que é mais instruído, tem mais consciência do que é a Covid-19. Aquelas pessoas que saem de casa todos os dias para procurar o que comer não recebem esta mensagem”, sublinha.
Isto não é uma medida que vai ser tomada de um dia para o outro. É preciso tempo para tentar criar estes mecanismos
Uma ideia reforçada pelo presidente da CNDH: “Estamos a viver num país pobre, onde as pessoas, para se alimentarem, precisam de sair de casa e ganhar o seu dinheiro para comprar o essencial para aquele dia.
Não há, em algumas famílias, condições de fazer reservas, comprar alimentação em quantidade suficiente para uma semana ou duas. Serão sempre obrigados a sair, mesmo com as limitações que o estado de emergência exige”.
Filipe Nyusi destacou o reforço das medidas de higienização e a proibição de aglomerados com mais de 10 pessoas, “mas nós sabemos qual é o cenário nos mercados em Moçambique”, lembra Celeste Banze.
“Não existe ainda um mecanismo para transmitir a mensagem a estas pessoas, de que devem respeitar o distanciamento. Há aqui uma obrigatoriedade de dar sinal aos presidentes dos municípios para que possam fiscalizar este processo do comércio nos mercados”.
Incentivos aos trabalhadores informais
Para o CIP, garantir o cumprimento das medidas de prevenção terá de passar pela criação de “estímulos” para os trabalhadores informais ficarem em casa. Por outras palavras, subsídios pagos pelo Estado para a “segurança de rendimento, protecção social e protecção de emprego”.
As propostas da organização passam por um pagamento único aos trabalhadores informais inscritos no Instituto Nacional de Segurança Social (INSS) e à duplicação do subsídio actual, durante os próximos seis meses, para quem está inscrito ou em lista de espera no Instituto Nacional de Acção Social (INAS).
Medidas que, segundo Celeste Banze, “iriam minimizar o número de pessoas que saem à rua para buscar o que comer”.
E quem está fora do sistema? Para essa “grande maioria”, considera a investigadora, “tem de haver reforço das associações dos informais, a nível dos bairros, de modo a identificar essas pessoas e, se possível, o Estado providenciar cestas básicas para incentivar as pessoas a ficarem em casa”.
É importante que o Estado veja como pode intervir para atenuar estas dificuldades
“Isto não é uma medida que vai ser tomada de um dia para o outro. É preciso tempo para tentar criar estes mecanismos, que seriam até muito atractivos para os financiadores, se o Estado apresentasse um plano e mostrasse a real situação do país”, sublinha Celeste Banze. “Houve saldo de mais-valias e outros que transitaram para 2020 e é preciso clarificar e apresentar um plano para se aferir quanto é que o Estado moçambicano precisa para implementar estes mecanismos”.
Também Luís Bitone espera que o Governo olhe para os grupos mais vulneráveis da sociedade moçambicana, que “não conseguem ficar em casa por causa da sua subsistência”. Para o presidente da CNDH, é importante que o Estado veja como pode intervir para atenuar estas dificuldades.
“Sabemos que o Estado não tem meios para garantir que as condições cheguem a toda a gente, mas o Conselho de Ministros deve debruçar-se sobre este aspecto. Se isso não acontecer, vai acontecer uma violação do estado de emergência, o mais provável é que estas pessoas saiam para procurar o seu sustento”, sublinha.
Certo, diz Celeste Banze, é que a economia vai registar uma queda significativa: “Mas se todos cumprirmos as normas, pelo menos a recuperação vai ser rápida. Neste momento, há um grande esforço de investimento no setor da saúde. Se o Governo também optar por garantir a produção nacional, por incentivos a uma produção acelerada de produtos alimentares, no final, a recuperação será rápida”, considera a investigadora.
Salvaguardar direitos essenciais
Apesar das incertezas, o estado de emergência é “uma medida positiva” para a CNDH, embora coloque um importante desafio a Moçambique, um país onde “a cultura de direitos humanos ainda é nova e incipiente”: é preciso consciencializar as Forças de Defesa e Segurança (FDS) “para que saibam quais são os limites de um estado de emergência”, considera o presidente da comissão.
“É verdade que podemos limitar direitos como a circulação, a concentração, a diversão, mas há outros que em nenhuma circunstância podem ser limitados, como o direito a não ser torturado, a não ser maltratado, o direito à vida, à consciência e religião”, lembra Luís Bitone. “O estado de emergência é necessário e todos estamos interessados em que o movimento de pessoas seja limitado, que as reuniões em grande escala não aconteçam, que as pessoas não fiquem em lugares de diversão nesta fase muito complicada. O problema que se coloca é a capacidade que as autoridades têm de garantir uma boa administração dessas medidas, sem violar os direitos essenciais”.
Sabemos que o Estado não tem meios para garantir que as condições cheguem a toda a gente, mas o Conselho de Ministros deve debruçar-se sobre este aspecto
O trabalho das organizações de defesa dos direitos humanos passará, por isso, nos próximos tempos, pela fiscalização do trabalho das forças de segurança, para garantir que as medidas anunciadas surtam o efeito desejado. “Onde começa a preocupação da sociedade civil é como é que as forças responsáveis pela implementação dessas medidas vão cumprir à risca os termos do estado de emergência. É esta a nossa concentração neste momento: olhar para eles, denunciar qualquer arbitrariedade e também tentar elevar a consciência das pessoas”, explica Luís Bitone.
Outro problema, lembra o presidente da CNDH, é que as forças de segurança não têm capacidade para estar em todos os pontos do país a fiscalizar o cumprimento das directivas do estado de emergência. O CIP lembra também que os conflitos nas zonas centro e norte de Moçambique deixam “pouco espaço para reforço das FDS para garantir isolamento total de atividades e circulação de pessoas e bens”.